01 Mai 2014
Vou lhe dizer que ouvi todas as palavras, as frases, os conceitos que o Papa Bergoglio esteve dizendo nesses 13 meses desde que subiu ao sólio de Pedro. Ouvi as pausas, as hesitações, os destoamentos da sua linguagem, incluindo o seu embaraço ao construir uma lógica lexical. E posso lhe assegurar que nunca há mentira em tudo o que ele vai dizendo.
A opinião é do escritor, dramaturgo e comediante italiano Dario Fo (na foto, à esquerda), prêmio Nobel de literatura, em artigo para o jornal Il Fatto Quotidiano, 29-04-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Na sexta-feira, 25 de abril, durante a gravação televisiva do programa Otto e Mezzo, dirigido por Lilli Gruber – na qual eu apresentava o meu primeiro romance sobre a vida dos Borgia e, particularmente, sobre Lucrécia, "filha do papa" – explodiu um vigorosa disputa entre mim e o convidado no estúdio, Pietrangelo Buttafuoco, conhecido jornalista do jornal Il Foglio.
O pretexto do conflito de opinião nascia da minha leitura do discurso que repropunha a intervenção feita em 1498 pelo Papa Borgia no consistório de todos os cardeais e bispos reunidos para ouvi-lo enquanto ele dava a notícia do assassinato do seu filho, Juan, que foi encontrado boiando sem vida de madrugada, alguns dias antes, nas águas do Tibre.
O papa expressou a sua devastação dilacerante e declarou que estava convencido de que essa morte era a justa condenação à sua obra. Então, advertiu que tudo a partir daquele momento mudará na Igreja: "Chega de bancos e de negócios pessoais de todos os grupo de negócios dentro do Vaticano. Chega de acúmulo de poderes, terras e dinheiro! Cessemos com a exibição de prebendas e salários de marajás! O que temos nós, tão ligados ao poder econômico, a ver com o Evangelho de Cristo e com as suas regras?"
No fim do drástico anúncio por mim recitado – em que o papa, tomando emprestadas as invectivas de Savonarola contra a infâmia dos poderosos, impõe uma verdadeira revolução estrutural –, o jornalista, que evidentemente tem o papel de expressar a sua discordância com o que eu estava dizendo, declarou que a crise e a vontade de renovação expressadas pelo papa Borgia parecem-lhe totalmente sinceras e emblemáticas de uma vontade renovadora no mundo cristão.
Ainda "o antagonista", surpreendendo-nos, declarou que, ao contrário, não acha absolutamente sincera e crível a atitude posta em cena pelo novo papa, Bergoglio, que, em sua opinião, exibe um disfarce, interpretando o papel de Francisco de Assis em uma operação que, a seu ver, é de puro marketing.
Em poucas palavras, segundo o nosso detrator, o papa de raça italiana criada na Argentina veio ao nosso encontro propondo-nos um personagem fora de todo costume. A fim de parecer modesto e mortificado, ele rejeita as suntuosas vestes da velha liturgia, coloca-se no pescoço uma cruz de ferro, calça sapatos totalmente normais, até mesmo um pouco desajeitados (recusa, portanto, as pantufas vermelhas e leves do papa demissionário), move-se arrastando uma maleta totalmente comum, anda por aí sem escolta e se senta em um ônibus junto com seus outros prelados, desloca-se em um carro de série qualquer e, sobretudo, com os seus discursos proferidos talvez aos políticos do governo forçados a se levantar às 6h da manhã para ouvir a santa missa oficiada por ele, os agride com gestos de dissidência bastante pesadas e no limite da provocação.
Neste ponto, está claro que essa metamorfose é fruto de uma encenação recitada para épater le bourgeois, ou seja, para pasmar os simples boca-abertas da fé, isto é, a grande massa dos fiéis!
Chocado com a surpresa, tentei refutar essa visão gratuita expressada pelo meu interlocutor livre e exclamei:
"Mas é estupendo! O nosso amigo destruidor vem nos revelar que o nosso novo pontífice é completamente desprovido de sinceridade e modéstia e, ao contrário, demonstra ser um espertalhão que faz as vezes de inovador, propulsor de frugalidade e humildade. Quando o vemos na fila do refeitório entre os padres da comunidade, estamos assistindo a uma representação em benefício dos crédulos bobos que, comovidos, exclamarão: 'Deus é grande e nos deu um santo no papel de papa!'.
"E também é uma encenação o fato de descobrir esse fanfarrão que repete o roteiro da recusa de um palácio à sua disposição, preferindo viver em um simples apartamento de dois quartos; que se encontra na Páscoa com prostitutas provenientes da comunidade de mulheres que sofreram violência e vexação; que na Quinta-Feira Santa lava os pés de mendigos fedorentos, pondo-se de joelhos diante deles e beijando-os... na face, naturalmente, imagine nos pés! Mas nada é sincero nessa representação, é tudo um teatrinho!".
E eis que, ferido, o meu antagonista me desfere um golpe baixo, dizendo: "Sim, você disse certo, trata-se de um teatrinho. Teatrinho representado para convencer milhões de cristãos a se confrontarem com uma fotocópia perfeita de São Francisco de Assis, o santo da absoluta pobreza".
Mas o que você está me dizendo? É incrível... e na sua opinião eu também teria caído nessa? Eu que, por toda a vida, isto é, há 60 anos, venho recitando em centenas de teatros, na televisão, diante de uma câmera, pela Itália e pelo mundo, milhares de mistérios engraçados, trágicas comoções, gestos amor, tentando comover e envolver com a ficção cênica milhões de espectadores, eu, de minha parte, teria caído na armadilha.
Mas não! Essa condição você não pode me impor. Saiba que todo ator profissional – como pessoalmente eu me iludo de ser – entende imediatamente pelo modo de dizer e encenar qualquer discurso se o próprio interlocutor está lhe dizendo a verdade ou se está dizendo uma mentira construída para enganá-lo como um tolo.
E então eu vou lhe dizer que ouvi todas as palavras, as frases, os conceitos que o Papa Bergoglio esteve dizendo nesses 13 meses desde que subiu ao sólio de Pedro. Ouvi as pausas, as hesitações, os destoamentos da sua linguagem, incluindo o seu embaraço ao construir uma lógica lexical.
E posso lhe assegurar que nunca há mentira em tudo o que ele vai dizendo. Para a sua tranquilidade, asseguro-lhe que ninguém jamais conseguiu me enganar; levei uma vida inteira para aprender a encontrar os mentirosos e você não pode jogá-la na latrina com uma declaração sua, dita ao acaso. Mas diga-me, qual o propósito dessa calúnia?
"Do que você está falando? – responde-me Buttafuoco – Por que você chama isso de calúnia?".
E eu, em resposta: "E você, então, como chamaria essa operação que está sendo posta em ação em torno do papa em questão, se não bravata destruidora? Fique tranquilo, você não é o único a cavalgar esse alvoroço, mesmo que, devo admitir, você foi mais baixo, quero dizer... chegar a rotular esse novo Francisco como um trapaceiro travestido de bom samaritano que faz 'papa marketing'!
"No mínimo, a única coisa que posso fazer é me perguntar por que você está colocando em ação essa operação. Não é preciso ser águia para identificar nos inimigos do novo pontífice os mesmos bispos e cardeais que encontramos na praça da fé e da política. Basta notar como eles reagiram ao ouvir as declarações de Bergoglio sobre os bancos vaticanos, sobre os privilégios despudorados exibidos pelo alto clero, sobre as camarilhas do poder eclesial e civil que se tiram para dançar no mundo cristão, sobre a vergonha obscena da pedofilia encoberta e mascarada por anos pelas próprias autoridades da Igreja (em todo o mundo católico! para chegar a se dar conta da razão que hoje leva os poderosos de todos os níveis a temer aterrorizados essa total transformação que o pontífice tem em mente para impulsionar como nova consciência de fé."
Portanto, eis que os guardiões do inamovível pântano em que boia todo poder colocam em campo a arma que desde sempre é a mais eficaz para destruir todo homem justo que atenta para essa estabilidade de sono constante. Qual? Ora, é a máquina do lodo! Infalível quando se trata de caluniar até o impossível qualquer um que se mova contracorrente, "façamo-lo passar por maníaco da perseguição e da destruição do status quo, da vida comum e dos costumes civis e legais já sagrados".
Além disso, é uma técnica que o mundo dos conformistas (hoje, chamam-se moderados) usou com grande vantagem séculos e séculos até aqui: se formos ver, trata-se de uma caterva de "loucos exibicionistas" esfolados vivos até a berlinda e o patíbulo, começando por Giordano Bruno, Savonarola, Joana d'Arc, Jan Hus, Frei Dolcino e a sua esposa, Galileu Galilei, Jacopone da Todi, para chegar até ao próprio Francisco, chamado de Saltimbanco de Deus, cuja autêntica vida narrada pelos seus discípulos e escrita por Tomás de Celano foi censurada apenas 40 anos depois da sua morte e substituída por outra figura, essa sim completamente inventada, sobre o modelo de outros santos que não tinham nada a ver com a loucura extraordinária do credo do santo de Assis.
E, como sempre, a história se repete.
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O lodo do poder para frear o papa. Artigo de Dario Fo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU