Por: André | 21 Março 2014
Ou seja, sem um milagre comprovado após sua beatificação. Trata-se de um procedimento excepcional, poucas vezes usado na história. Mas o Papa Francisco recorreu a ele com uma frequência sem precedentes.
A reportagem é de Sandro Magister e publicada no sítio Chiesa, 19-03-2014. A tradução é de André Langer.
Ao receber em audiência D. Bernardo Álvarez Afonso, bispo de San Cristóbal de la Laguna, em Tenerife, nas Ilhas Canárias, o Papa Francisco anunciou que no próximo dia 02 de abril proclamará santo a um ilustre filho dessas ilhas: o jesuíta José de Anchieta (1534-1597), definido como o Apóstolo do Brasil.
A notícia já foi antecipada no final de fevereiro pelo cardeal Raymundo Damasceno Assis, arcebispo de Aparecida e presidente da CNBB.
Mas D. Álvarez divulgou a notícia no sítio da sua diocese no mesmo dia da audiência, no dia 8 de março, proporcionando ulteriores detalhes do evento.
Com efeito, explicou que Anchieta será incluído na lista dos santos junto com dois beatos nascidos na França e que tiveram um desempenho de suma importância na evangelização do Canadá: a mística missionária Maria da Encarnação, cujo nome de batismo é Marie Guyart (1599-1672), e o bispo Francisco de Montmorency-Laval (1623-1708).
Os três foram beatificados no dia 22 de junho de 1980 por João Paulo II junto com outros dois veneráveis que viveram na América, que, entretanto, já foram canonizados pelo procedimento ordinário: Pedro de Betancour (1626-1667) e a jovem virgem indígena Catarina Tekakwitha (1656-1680), proclamados santos, respectivamente, por João Paulo II, no dia 30 de julho de 2002, e por Bento XVI, no dia 21 de outubro de 2012.
Tudo normal? Não. O bispo de Tenerife revelou que os três beatos serão proclamados santos não pelo procedimento ordinário, que exige o reconhecimento canônico de um milagre atribuído à sua intercessão, mas através de um canal extraordinário historicamente definido como “canonização equivalente”.
Em que consiste este procedimento especial, que “esteve sempre esteve presente na Igreja e efetuado regularmente, embora não de forma frequente”, ilustrou no L’Osservatore Romano de 12 de outubro de 2013 o cardeal Angelo Amato, prefeito da Congregação para a Causa dos Santos.
Explica o cardeal: “Para este tipo de canonização, segundo a doutrina de Bento XIV, requerem-se três elementos: a possessão antiga do culto, o testemunho constante e comum de historiadores dignos de fé sobre as virtudes ou sobre o martírio e a fama ininterrupta de prodígios”.
E o cardeal Amato prossegue dizendo: “Caso se cumprirem estas condições – é doutrina também do Papa Prospero Lambertini – o Sumo Pontífice, por sua autoridade, pode recorrer à ‘canonização equivalente’, ou seja, estender à Igreja universal a oração do ofício divino e a celebração da missa [em honra do novo santo], ‘sem nenhuma sentença formal definitiva, sem ter concluído algum processo jurídico, sem ter cumprido as cerimônias habituais”.
Com efeito, o próprio Papa Lambertini – em um volume da sua monumental obra De servorum Dei beatificatione et beatorum canonizatione agora disponível também em italiano em uma edição da Libreria Editrice Vaticana – enumera 12 casos de santos canonizados deste modo antes do seu pontificado (1740-1758).
São eles: Romualdo (canonizado em 1595), Norberto (em 1621), Bruno (em 1623), Pedro Nolasco (em 1655), Ramón Nonato (em 1681), Estevão da Hungria (em 1686), Margarida da Escócia (em 1691), Juan de Mata e Félix de Valois (em 1694), Gregório VII (em 1728), Wenceslau da Boêmia (em 1729), Gertrudes de Helfta (em 1738).
Além disso, e sempre segundo o L'Osservatore Romano de 12 de outubro passado, o cardeal Amato enumera também as "canonizações equivalentes" posteriores a Bento XIV: Pedro Damião e Bonifácio mártir (canonizados em 1828); Cirilo e Metódio, da Salônica (1880); Cirilo de Alexandria, Cirilo de Jerusalém, Justino mártir e Agostinho de Canterbury (1882); João Damasceno e Silvestre Abade (1890); Beda o venerável (1899); Efrén o sírio (1920); Alberto Magno (1931); Margarida da Hungria (1943); Gregório Barbarigo (1960); João de Ávila e Nicolas Tavelic e três companheiros mártires (1970); Marcos de Križevci, Esteban Pongrácz e Melchor Grodziecki (1995).
Como se pode ver, João Paulo II, que também proclamou sozinho mais santos e beatos que todos os seus antecessores juntos – desde o momento em que os Papas reservaram para si tal poder –, utilizou uma única vez o procedimento da “canonização equivalente”.
Também Bento XVI o utilizou apenas uma vez, com Hildegarda de Bingen, proclamada santa no dia 10 de maio de 2012.
Mas o Papa Francisco já utilizou duas vezes este procedimento excepcional. Em 9 de outubro de 2013 com Ángela de Foligno (1248-1309) e em 17 de dezembro com o jesuíta Pedro Fabro (1506-1546).
E a usará pela terceira vez, proclamando três novos santos, também no próximo dia 2 de abril com o jesuíta Anchieta, com a religiosa Maria Guyart e com o bispo Francisco de Montmorency-Laval.
Na prática, em apenas um ano de pontificado, o atual Papa recorreu a esta modalidade especial em uma quantidade de casos inferior apenas a Leão XIII, que a utilizou um pouco mais, embora em um arco de 20 anos (entre 1880 e 1899) e aplicando-a a personalidades do primeiro milênio da era cristã, com a única exceção de Silvestre Abade, que viveu no distante século XIV.
Em síntese, embora goste de utilizar o título de simples bispo de Roma, o Papa Francisco exercita plenamente as prerrogativas que lhe pertencem na qualidade de sumo pontífice da Igreja universal, também na política das canonizações. Política particularmente delicada, porque não obstante as opiniões contrárias presentes entre os teólogos e segundo a doutrina em vigor, as canonizações – ao contrário das beatificações – comprometem o magistério infalível da igreja.
Efetivamente, quando em 1989 promulgou-se o Motu Proprio de João Paulo II, Ad tuendam fidem, em uma posterior Nota Doutrinal anexa, assinada pelo então cardeal Joseph Ratzinger, “as canonizações dos santos” foram explicitamente citadas entre “as doutrinas propostas infalivelmente” pela Igreja “de modo definitivo”, junto com outras doutrinas, como a ordenação sacerdotal, que há de reservar-se exclusivamente a varões, a ilicitude da eutanásia, a ilicitude da prostituição e da fornicação, a legitimidade da eleição de um Papa ou da celebração de um Concílio Ecumênico e a declaração de Leão XIII sobre a invalidade das ordenações anglicanas.
Neste campo, então, resulta clamorosa também a decisão tomada pelo Papa Francisco de proceder à canonização de João XXIII – que será celebrada no próximo dia 27 de abril – pelo procedimento ordinário, mas sem que tenha sido canonicamente comprovado um milagre atribuído à sua intercessão e tenha acontecido depois da sua beatificação.
Trata-se de uma derrogação particularmente assombrosa. É precisamente no exercício do poder de sumo pontífice que Francisco decidiu que para canonizar Angelo Roncalli, de forma totalmente excepcional, não é necessário o milagre e basta a perseverante fama de santidade que rodeia sua figura e a “fama signorum”, isto é, as graças a ele atribuídas, que seguem sendo testemunhadas, embora nenhuma delas tenha sido canonicamente certificada como verdadeiro milagre e próprio.
Na prática, também aqui Francisco aproveitou ao máximo o poder pontifício de que dispõe enquanto cabeça da Igreja universal, para assumir uma decisão que não parece ter precedentes no que diz respeito a causas não referidas a mártires.
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Em poucos meses, seis novos santos canonizados fora das regras - Instituto Humanitas Unisinos - IHU