17 Fevereiro 2014
A tese central do cristianismo é a Encarnação: "O Verbo se fez carne" (João 1, 14). Portanto, no cristianismo, tem-se um entrelaçamento entre fé e história e, por isso, um contato entre religião e vida política e social.
Publicamos aqui a conferência do cardeal Gianfranco Ravasi, presidente do Pontifício Conselho para a Cultura, por ocasião do Átrio dos Gentios realizado em Budapeste, Hungria, na Universidade Corvinus, entre os dias 4 e 6 de fevereiro, com o tema Moral, economia e sociedade secular no século XXI.
O texto foi publicado no sítio do Pontifício Conselho para a Cultura, 06-02-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
O horizonte temático sugerido pelo trinômio "moral, economia, sociedade secularizada" – ou, ampliando o olhar, "fé, cultura, sociedade" – é evidentemente imenso e admite infinitos percursos de análise e múltiplos resultados de avaliação e de síntese. Não há dúvida, portanto, de que a nossa reflexão poderá ser apenas emblemática, dentro da qual se abrem espaços em branco, passíveis de mais e amplas considerações.
Uma premissa
Iniciamos com uma premissa. "Economia" é uma palavra grega que significa "a lei da casa" do mundo, na qual devem ser consideradas sobretudo as pessoas antes de qualquer realidade financeira. Finanças e economia não são, portanto, sinônimos. O elemento fundamental é reconhecer que a figura central que domina o horizonte é a pessoa humana. As finanças são apenas um instrumento que deve estar a serviço da economia, que é a regra da vida social da humanidade inteira.
Em momentos difíceis, há a necessidade de reencontrar alguns valores culturais e éticos fundamentais. Como homem da Igreja e como exegeta bíblico, gostaria de partir da visão cristã profundamente inervada dentro da sociedade e da cultura, de modo a constituir uma presença imprescindível nelas. De fato, como se sabe, a tese central do cristianismo é a Encarnação: "O Verbo se fez carne" (João 1, 14). Portanto, no cristianismo, tem-se um entrelaçamento entre fé e história e, por isso, um contato entre religião e vida política e social.
Tratar, portanto, de um tema semelhante diz respeito aos próprios fundamentos da experiência judaico-cristã e, portanto, da Bíblia, que, dentre outras coisas, também é o "grande Código" da nossa cultura ocidental. Goethe considerava o cristianismo como a "língua materna" da Europa, porque representa uma espécie de "imprinting" que todos nós carregamos conosco. Para alguns, talvez, pode ser um peso; para muitos, ao invés, continua sendo uma herança preciosa. Pois bem, para desenvolver o tema, embora de modo simplificado, nos confiaremos a quatro componentes ou princípios emblemáticos fundamentais, deixando entre parênteses outros igualmente relevantes.
1. O princípio personalista
A primeira concepção radical que propomos poderia ser definida como o "princípio personalista". O conceito de pessoa, a cujo nascimento também contribuíram outras correntes de pensamento, adquire no judaico-cristão uma configuração particular através de um rosto que tem um duplo perfil e que agora representamos, referindo-nos a dois textos bíblicos essenciais que são quase o incipit absoluto da antropologia cristã e da própria antropologia ocidental.
O primeiro texto provém do Gênesis 1, 27, portanto, das primeiras linhas da Bíblia: "Deus criou o homem à sua imagem; à imagem de Deus ele o criou; e os criou homem e mulher". Aparece aqui a primeira dimensão antropológica: ela é "horizontal", ou seja, a grandeza da natureza humana está situada na relação entre homem e mulher. Trata-se de uma relação fecunda que nos torna semelhantes ao Criador ("imagem de Deus"), porque, gerando, a humanidade, em certo sentido, continua a criação. Eis, então, um primeiro elemento fundamental: a relação, o ser em sociedade é estrutural para a pessoa. O ser humano não é uma mônada fechada em si mesma, mas é por excelência um "eu ad extra", uma realidade aberta. Só assim ele alcança a sua plena dignidade, tornando-se a "imagem de Deus". Essa relação é constituída pelos dois rostos diferentes e complementares do homem e da mulher que se encontram (é relevante a esse respeito a reflexão de Levinas).
Permanecendo ainda no âmbito desse primeiro princípio personalista fundamental, passemos a outra dimensão não mais horizontal, mas "vertical", que ilustramos recorrendo ainda a outra frase do Gênesis: "O Senhor Deus modelou o homem com o pó do solo". Isso é típico de todas as cosmologias orientais e é uma forma simbólica para definir a materialidade do homem. Mas se acrescenta: "E soprou nas suas narinas um sopro de vida, e o homem tornou-se um ser vivente" (2, 7).
Para intuir o verdadeiro significado do texto, é necessário voltar ao original hebraico: nishmat hayyîm, locução que ocorre 26 vezes no Antigo Testamento e, curiosamente, é aplicada somente a Deus e ao ser humano, nunca aos animais (rûah, o espírito, a alma, o sopro vital, para a Bíblia, ao invés, está presente também nos animais). Essa categoria antropológica específica é explicada por uma passagem do livro bíblico dos Provérbios: a nishmat hayyîm no ser humano é "uma lâmpada do Senhor, que ilumina as profundezas do ser" (20, 27).
Como se pode imaginar, mediante tal simbólica, chega-se a representar a capacidade do ser humano de se conhecer, de ter uma consciência e até mesmo de entrar no inconsciente (o hebraico usa a imagem forte de "câmaras escuras do ventre"). Trata-se da representação da interioridade última, profunda, aquela que a Bíblia em outros pontos descreve simbolicamente com os "rins". O que, portanto, Deus insufla em nós? Uma qualidade que só Ele tem, e que nós compartilhamos com Ele e que podemos definir como "autoconsciência", mas também "consciência ética". Logo depois, de fato, ainda na mesma página bíblica, o ser humano é apresentado sob "a árvore do conhecimento do bem e do mal", uma árvore evidentemente metafórica, metafísica, ética, como representação da moral.
Temos, assim, identificada outra dimensão: o ser humano possui uma capacidade transcendente que o leva a estar unido "verticalmente" com Deus mesmo. É a capacidade de penetrar em si mesmo, de ter uma interioridade, uma intimidade, uma espiritualidade. A dupla representação ético-religiosa da pessoa até agora descrita na relação com o próximo e com Deus poderia ser delineada com uma imagem muito sugestiva de Wittgenstein, que, no prefácio do Tractatus Logico-Philosophicus, ilustra o escopo do seu trabalho.
Ele afirma que a sua intenção era investigar os contornos de uma ilha, ou seja, o ser humano circunscrito e limitado. Mas o que ele descobriu no fim foram as fronteiras do oceano. A parábola é clara: se caminharmos sobre uma ilha e olharmos apenas para um lado, para a terra, conseguimos circunscrevê-la, medi-la e defini-la. Mas, se o olhar é mais vasto e completo, e se volta também para o outro lado, descobrimos que naquela linha de fronteira também batem as ondas do oceano. Substancialmente, como afirmam as religiões, na humanidade, há um entrelaçamento entre a finitude limitada e algo de transcendente, ou como se quiser defini-lo.
2. O princípio de autonomia
O segundo princípio do mapa socioantropológico ideal que estamos delineando é paralela ao anterior e é, como aquele, duplo. Poderia ser chamado "de autonomia", e, para ilustrá-lo, recorreremos a um texto que é fundamental não só na religiosidade, mas também na própria memória da cultura ocidental, embora nem sempre tenha sido corretamente interpretado. Trata-se de uma celebérrima passagem evangélica: "Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus" (Mateus 22, 21).
Uma formulação lapidar, o único verdadeiro pronunciamento político-social de Cristo, enquanto todos os outros são mais indiretos e menos explícitos. Para compreender corretamente essa afirmação, é preciso entrar na mentalidade semita que recorre muito frequentemente às chamadas "parábolas em ação", através das quais a mensagem é formulada com um gesto, com uma série de comportamentos simbólicos, e não só com as palavras.
Cristo, de fato, no início, diz aos seus interlocutores: "Mostrem-me a moeda", fazendo seguir uma pergunta fundamental: "De quem é a imagem e a inscrição?". E a resposta é: "De César". Em consequência: "Dai a César o que é de César". A primeira parte da frase de Cristo reconhece, portanto, uma autonomia à política. Uma verdadeira concepção cristã deveria sempre excluir qualquer tipo de teocracia sagrada. Não pertence ao autêntico espírito cristão a união entre trono e altar, embora na história, infelizmente, o cristianismo a tenha favorecido em muitas ocasiões.
A concepção jurídica islâmica na forma mais conhecida da shariyyah é estranha ao espírito cristão: o Código de Direito Canônico não pode ser automaticamente o código do direito civil ou penal, assim como a carta constitucional de um Estado nacional não pode ser o Evangelho. Trata-se de realidades que devem permanecer sempre bem distintas. A política, a economia, a sociedade civil têm o seu próprio espaço de autonomia, dentro do qual se desenvolvem normas, escolhas, atuações dotadas de sua própria imanência, nas quais outros âmbitos externos não devem interferir.
Mas as palavras de Cristo não terminam aí: há uma segunda parte implícita, sempre baseada no tema da "imagem". Jesus, de fato, perguntando de quem é a "imagem" a propósito da moeda, indiretamente faz referência ao texto bíblico citado acima referente ao ser humano como "imagem" de Deus. Eis, então, uma segunda dimensão: a criatura humana deve, sim, respeitar as normas próprias da polis, da sociedade, mas, ao mesmo tempo, não deve se esquecer de que é dotada de uma dimensão adicional. Esse é o âmbito específico da religião e da moral, na qual surgem as questões da liberdade, da dignidade humana, da realização da pessoa, da vida, da interioridade, dos valores, do amor.
Todos esses temas têm a sua própria autonomia específica e não admitem prevaricações e abusos por parte do poder político-econômico. Se fato, se é verdade que não deve haver uma teocracia, é igualmente inadmissível uma estatolatria que incumba secularisticamente sobre o outro âmbito, esvaziando-o ou até mesmo anulando-o. É fácil compreender como é complexa e até mesmo árdua a declinação concreta dessa autonomia, assim como o contraponto entre essas duas esferas, porque único é o sujeito ao qual ambas se dedicam, ou seja, a pessoa humana, individual e comunitária.
3. O princípio de solidariedade, justiça e amor
Chegamos assim ao terceiro princípio que é fundamental para o cristianismo e para todas as outras religiões, embora com ênfases diferentes. Voltamos ao retrato do rosto humano, que, como dissemos, tem a dimensão de homem e de mulher, ou seja, tem como base a relação interpessoal. No capítulo 2 do Gênesis, a verdadeira hominização não ocorre apenas com a citada nishmat hayyîm, que torna a criatura transcendente; também não ocorre somente com o Homo technicus que "dá o nome aos animais", ou seja, se dedica à ciência e ao trabalho.
O homem está realmente completo em si mesmo quando encontro – como diz a Bíblia – "uma ajuda que lhe seja semelhante", em hebraico, kenegdô, literalmente "que esteja diante dele" (2, 18.20). O homem, portanto, tende para o alto, para o infinito, para o eterno, para o divino, segundo a concepção religiosa, e pode tender também para baixo, para os animais e a matéria. Mas torna-se realmente ele mesmo somente quando se encontro com "os olhos nos olhos" do outro. Eis de novo o tema do rosto. Quando encontra a mulher, ou seja, o seu semelhante, ele pode dizer: "Esta é realmente carne da minha carne, osso dos meus ossos" (2, 23), é a minha própria realidade.
E aqui temos o terceiro ponto cardeal que formulamos com um termo moderno, cuja substância está na tradição judaico-cristã, isto é, "o princípio da solidariedade". O fato de que são todos "humanos" é expressado na Bíblia com o vocábulo "Adão", que, em hebraico, é ha-'adam, com o artigo (ha-), e significa simplesmente "o homem". Por isso, existe em todos nós uma "adamicidade" comum.
O tema da solidariedade, então, é estrutural à nossa realidade antropológica de base. A religião expressa essa unitariedade antropológica com dois termos que são duas categorias morais: justiça e amor. A fé assume a solidariedade, que também está na base da filantropia secular, mas vai além. De fato, de acordo com o Evangelho de João, na última noite da sua vida terrena, Jesus pronuncia uma frase estupenda: "Não há maior amor do que aquele que dá a vida pela pessoa que ama" (João 15, 13).
Evitando longas análises, embora necessárias, ilustramos agora, simbolicamente, em chave religiosa, as duas virtudes morais da justiça e do amor com dois exemplos referentes a culturas religiosas diferentes.
O primeiro exemplo é um texto surpreendente que diz respeito à justiça: "A terra – [é o tema da destinação universal dos bens e, portanto, da justiça] – foi criada como um bem comum para todos, para os ricos e para os pobres. Por que, então, ó ricos, vocês se arrogam um direito exclusivo sobre o solo? Quando ajudas o pobre, tu, rico, não lhe dás o que é teu, mas lhe restituis o que é dele. De fato, a propriedade comum que foi dada em uso a todos, só tu a usas. A terra é de todos, não só dos ricos. Portanto, quando tu ajudas o pobre, tu restituis o que lhe é devido, não dispensas um dom teu". Realmente sugestiva essa declaração, que remonta ao século IV e é formulada por Ambrósio de Milão, no seu escrito De Nabuthe.
Esse forte senso da justiça deveria ser um aviso e um espinho que a fé insere no flanco da sociedade, o anúncio de uma justiça que é implementada na destinação universal dos bens. Ela não exclui um saudável e equitativo conceito de propriedade privada, que, no entanto, continua sendo apenas um meio – frequentemente contingente e insuficiente – para aplicar o princípio fundamental do dom universal dos bens a toda a humanidade por parte do Criador. Nessa linha, querendo recorrer mais uma vez à Bíblia, é espontâneo ouvir novamente a voz de autoridade e severa dos Profetas (leia-se, por exemplo, o poderoso livreto de Amós, com as suas pontuais e documentadas denúncias contra as injustiças do seu tempo).
O segundo testemunho que queremos evocar refere-se ao amor e, no espírito de um diálogo inter-religioso, tomamo-lo do mundo tibetano, mostrando assim que as culturas religiosas, embora diferentes, no fundo, têm pontos de encontro e de contato. Trata-se de uma parábola em que se imagina uma pessoa que, caminhando no deserto, entrevê algo de confuso ao longe. Por isso, começa a ter medo, já que, na solidão absoluta da estepe, uma realidade obscura e misteriosa – talvez um animal, uma fera perigosa – só pode inquietar. Avançando, o viajante descobre, porém, que não se trata de uma fera, mas sim de um homem. Mas o medo não passa, ao contrário, aumenta com o pensamento de que aquela pessoa pode ser um ladrão. No entanto, é forçoso prosseguir, até que se está na presença do outro. Então, o viajante levanta os olhos e, com surpresa, exclama: "É o meu irmão que eu não via há tantos anos!".
A distância gera temores e pesadelos; o homem deve se aproximar do outro para vencer esse medo, por mais compreensível que seja. Recusar-se a conhecer o outro e a encontrá-lo equivale a renunciar àquele solidário que dissolve o terror e gera a verdadeira sociedade. Aqui floresce o amor que é o apelo mais alto do cristianismo para a edificação de uma polis diferente (a referência óbvia é ao célebre hino paulino ao ágape-amor, presente no capítulo 13 da Primeira Carta aos Coríntios).
4. O princípio de verdade
O vocábulo "cultura" tornou-se, em nossos dias, uma espécie de palavra-chave que abre as fechaduras mais diversas. Quando o termo foi cunhado, no século XVIII alemão (Cultur, que depois se tornou Kultur), o conceito subjacente era claro e circunscrito: ele abraçava o horizonte intelectual alto, a aristocracia do pensamento, da arte, do humanismo. Há décadas, no entanto, essa categoria se "democratizou", ampliou as suas fronteiras, assumiu características antropológicas mais gerais, no rastro da conhecida definição criada em 1982 pela Unesco, tanto que já se adota o adjetivo "transversal"para indicar a multiplicidade de âmbitos e experiências humanas que ela "atravessa".
É nessa luz que se compreendem as reservas feitas pelo sociólogo alemão Niklas Luhmann, convicto de que o termo "cultura" é "o pior conceito jamais formulado", e a ele ecoaria o colega norte-americano Clifford Geertz, quando afirmaria que "ele é destituído de toda capacidade heurística". No entanto, essa indeterminação, ou, se quiserem, "generalismo" nos traz de volta para a concepção clássica, quando estavam em vigor outros termos sinonímicos muito significativos: pensamos no grego paideia, no latino humanitas, ou no nosso "civilização".
Nesse ponto, é natural entrar – embora sempre de modo muito essencial – na questão do nexo mais específico e das interações entre as diversas culturas que entram em contato entre si. Ora, foi justamente no século XVIII o alemão, em que – como dito acima – havia sido cunhado o termo Cultur/Kultur, que também se começou a falar de "culturas" no plural, lançando assim as bases para reconhecer e compreender esse fenômeno que agora é definido como "multiculturalidade".
Quem abriu esse caminho foi Johann Gottfried Herder com as suas “Ideias sobre a filosofia da história da humanidade” (1784-1791). A emergência de um pluralismo cultural – com algumas simplificações – via se cruzarem etnocentrismo e interculturalidade. De fato, foi constante a oscilação entre esses dois extremos, e nós ainda somos testemunhas disso.
O etnocentrismo se exaspera em âmbitos políticos ou religiosos de marca integralista, agarrados ferozmente à convicção do primado absoluto da própria civilização, em uma escala de gradações que chegam até a depreciação de outras culturas classificadas como "primitivas" ou "bárbaras". Lapidar era a afirmação de Tito Lívio nas suas Histórias: "Guerra existe e sempre existirá entre os bárbaros e todos os gregos" (31, 29). Essa atitude é reproposta nos nossos dias sob a fórmula do "choque de civilizações", codificada no já famoso livro de 1996 do cientista político Samuel Huntington, falecido em 2008, “O choque de civilizações e a reconstrução da ordem mundial”.
Nesse texto, eram listadas oito culturas (ocidental, confuciana, japonesa, islâmica, hindu, eslavo-ortodoxa, latino-americana e africana), enfatizando as suas diferenças, de modo a disparar no Ocidente um sinal de alarme para a autodefesa do próprios tesouro de valores, assediado por modelos alternativos e pelos "desafios das sociedades não ocidentais". Era significativa nessa visão a intuição de que, sob a superfície dos fenômenos políticos, econômicos, militares, tinha-se um núcleo duro e profundo de matriz cultural e religiosa. É certo, porém, que, se adotarmos o paradigma do "choque de civilizações", entra-se na espiral de uma guerra infinita, como Tito Lívio já havia intuído.
A perspectiva mais correta, tanto humanista, quanto teologicamente, é, ao invés, a da interculturalidade, que é uma abordagem bem diferente da "multiculturalidade". Ela se baseia no reconhecimento da diversidade como um florescimento necessário e precioso da raiz comum "adâmica", mas sem perder a própria especificidade. Propõe-se, então, a atenção, o estudo, o diálogo com civilizações antes ignoradas ou remotas, mas que agora se assomam prepotentemente em uma ribalta cultural até agora ocupada pelo Ocidente (pense-se, além do Islã, na Índia e na China), uma exposição que é favorecida não só pela atual globalização, mas também por meios de comunicação capazes de atravessar todas as fronteiras (a rede informática é o seu símbolo capital).
Essas culturas, "novas" para o Ocidente, exigem uma interlocução, muitas vezes imposta pela sua presença imperiosa, tanto que já se tende a falar de "glocalização" como novo fenômeno de interação planetária. Portanto, deve-se falar de um compromisso complexo de debate e de diálogo, de intercâmbio cultural e espiritual.
Chegamos, assim – depois desse longo itinerário preliminar nas várias dimensões do conceito de "cultura" – ao quarto princípio, que denominaremos com um termo que se tornou, se não obsoleto, certamente uma fonte de equívocos e de contraste, o de "verdade". A cultura, de fato, se fundamenta essencialmente no conhecimento que envolve justamente o importante perfil da verdade, categoria base do conhecer.
Se seguirmos o percurso cultural desses últimos séculos, podemos dizer que o conceito de verdade se tornou cada vez mais subjetivo, até chegar ao "situacionismo" do século passado. Pense-se, por exemplo, na famosa frase bastante significativa e muitas vezes citada, retirada do Leviatã de Hobbes: Auctoritas, non veritas facit legem. Em última análise, é esse o princípio do contratualismo, segundo o qual a autoridade, seja civil, seja religiosa, pode decidir a norma e, portanto, indiretamente, a verdade, com base nas conveniências da sociedade e nas vantagens do poder.
Tal concepção fluida da verdade já está bastante assumida, basta pensar na antropologia cultural. O filósofo francês Michel Foucault, estudando as diversas culturas, convidava calorosamente a acentuar essa dimensão subjetiva e mutável da verdade, semelhante a uma medusa cintilante, que muda de aspecto continuamente, de acordo com os contextos e as circunstâncias. Esse subjetivismo é substancialmente o que Bento XVI chama de "relativismo": é curioso notar como a pensadora norte-americana Sandra Harding imitava a célebre frase do Evangelho de João (8, 32): "A verdade vos libertará", afirmando, ao contrário, em um conhecido livro seu, que "A verdade não vos libertará", já que ela é concebida como uma capa de chumbo, como uma pré-compreensão, como uma esterilização da dinamicidade e da incandescência do pensamento.
Todas as religiões, e em particular o cristianismo, ao invés, têm uma concepção transcendente da verdade: a verdade nos precede e nos excede; ela tem um primado de iluminação, não de domínio. Embora o pensamento de Theodor Adorno fosse em uma direção bem diferente, é sugestiva uma expressão sua tirada dos Minima moralia. O filósofo alemão fala da verdade comparando-a à felicidade e declara: "A verdade não se tem; se está nela", ou seja, estamos imersos nela. Musil, no seu famoso romance O homem sem qualidades, faz com que o protagonista diga uma frase interessante: "A verdade não é como uma pedra preciosa que se coloca no bolso. A verdade é como um mar no qual imergimos e navegamos".
Fundamentalmente, trata-se da clássica concepção platônica expressada no Fedro, mediante a imagem da "planície da verdade": a biga da alma corre nessa planície para conhecê-la e conquistá-la, enquanto, na “Apologia de Sócrates”, para além das objeções que alguns especialistas poderão fazer no que concerne à tradução da passagem em questão, lê-se: "Uma vida sem busca não vale a pena ser vivida", e é justamente esse o itinerário a ser feito no horizonte "dado" da verdade.
Desse ponto de vista, as religiões são claras: a verdade tem um primado que nos supera, a verdade é transcendente; a tarefa do ser humano é ser peregrino dentro do absoluto da verdade. E isso é tão decisivo a ponto de fazer com que o cristianismo aplique a Cristo a identificação com a verdade por excelência (João 14, 6: "Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida").
Conclusão
A tetralogia de princípios que delineamos de modo discursivo certamente não esgota a complexidade das relações e das próprias tensões que intercorrem entre fé, cultura e sociedade. Poder-se-ia anexar outros princípios, igualmente relevantes e delicados. Pensemos, por exemplo, em outra tetralogia que se poderia desenvolver e que condiciona fortemente o debate contemporâneo sobre o tema: a categoria "natureza", o conceito de "bem comum", a questão da relação ética-direito, a perspectiva projetual da "utopia".
Essa foi apenas uma introdução nossa, um pouco óbvia, a quatro eixos antropológicos. No centro, de fato, há sempre a pessoa humana na sua dignidade, na sua liberdade e autonomia, mas também na sua relação fora de si mesmo e, portanto, rumo à transcendência. Manter unidas as várias dimensões da criatura humana no âmbito da vida social e política muitas vezes é difícil, e a história hospeda uma constante atestação das crises e das dilacerações.
Porém, a necessidade de manter juntas "simbolicamente" (syn-bállein) essas diferenças é indiscutível, se quisermos edificar uma polis autêntica, não despedaçada "diabolicamente" (dià-bállein) em fragmentos fundamentalisticamente opostos um ao outro. É isso que delineamos sinteticamente, em conclusão, recorrendo a outro testemunho de índole ético-religioso derivado mais uma vez de uma cultura diferente da nossa ocidental. Referimo-nos a um setenário proposto por Gandhi que define de modo fulgurante essa "simbolicidade" de valores necessária para impedir a destruição da convivência social.
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Fé, cultura e sociedade. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU