Por: Cesar Sanson | 06 Fevereiro 2014
A última foto brutal, que remonta à época da escravidão, mostra um rapaz negro, pelado, espancado e esfaqueado na orelha, amarrado a um poste pelo pescoço com uma trava de bicicleta.
A reportagem é de María Martín e Francho Barón e publicado pela edição brasileira do El País, 06-02-2014. Foto: Yvonne de Mello (Facebook)
O Brasil se contorce por imagens, cada vez mais fortes. Elas parecem gravar-se a fogo nas pupilas dos receptores, criam debate e, em seguida, são esquecidas diante da brutalidade da próxima foto. Assim aconteceu com aquela imagem do policial ferido por uma pedra durante as manifestações de junho, com o rosto roxo de uma jornalista ferida por uma bala de borracha, com as decapitações no presídio de Pedrinhas, no Maranhão, ou com as cacetadas dos policiais nos negros da periferia que curtiam um rolê em um shopping de São Paulo.
A última imagem poderosa, que rememora também uma outra época, a da escravidão que durou até 1888 no Brasil, mostra um adolescente negro, pelado, espancado e esfaqueado na orelha, amarrado a um poste pelo pescoço com uma trava de bicicleta. O rapaz, sem nome conhecido e com três passagens por roubo segundo a polícia, foi amarrado à vista de todos por um suposto grupo de justiceiros na Zona Sul do Rio. Foi apenas uma mulher, Yvonne Bezerra de Melo, de 66 anos, quem ligou para os bombeiros para libertá-lo. Yvonne, embora defendida por muitos, foi insultada por meio das redes sociais por ter libertado um bandido.
Em todas essas imagens o debate acaba sendo o mesmo. De um lado se clama para que essa –ou aquela- foto não se repita nunca, porque lembra a escravidão, a ditadura, e que não tem lugar em uma democracia. Do outro ainda se ouve o velho discurso de “bandido bom, é bandido morto”.
Os roubos aumentaram 60% no bairro (Charge do Sisejufe - Sindicato dos Servidores do Judiciário Federal)
Diante da recente recuperação dos índices de criminalidade e de uma sensação generalizada de crescente insegurança, o Rio de Janeiro acaba de ressuscitar o velho fantasma dos grupos de civis justiceiros que aplicam a lei e a ordem à vontade.
Em resposta à avalanche de críticas, a Polícia Militar do Rio abordou na última segunda-feira um grupo de 14 indivíduos, de idades entre 15 e 22 anos, autodenominados “Justiceiros do Flamengo” e vizinhos de vários bairros de classe média, acusados de tentar agredir dois jovens de uma favela próxima. A delegada responsável por ambos os casos, Monique Dias, declarou que podem existir conexões entre as duas agressões e que suas equipes trabalham para identificar os responsáveis.
Conforme alguns depoimentos, este grupo diz ter sua origem no descontentamento da comunidade do Flamengo pelos constantes assaltos em um precioso parque que o separa da Baía de Guanabara. Flamengo é um bairro que serve de ponte entre a nobre zona sul do Rio e o centro da cidade. Antigamente, viveu períodos de esplendor e seus aristocráticos edifícios orientados para o mar albergam amplos apartamentos difíceis de se encontrar em outras zonas do Rio. Deles, é possível contemplar uma imponente vista do Pão de Açúcar e da sinuosa Baía de Guanabara. Hoje, no entanto, suas ruas se tornaram um local pouco recomendável para passear a certas horas da noite.
Há anos que o Parque do Flamengo é palco de ondas de assaltos. Segundo o Instituto de Segurança Pública do Rio, os roubos a pedestres registrados nesta área aumentaram mais de 60% em 2013 em comparação com o mesmo período do ano anterior (de janeiro a outubro).
A apresentadora do SBT Rachel Sheherazade apoiou em horário de máxima audiência o que para essa gangue seria uma tentativa de impor a ordem no bairro. Sheherazade disse que a atitude é “até compreensível” por conta da onda de violência que vivemos no Brasil e que, frente à omissão do Estado, resta ao “cidadão de bem” se defender. Seu discurso foi elogiado nas redes sociais junto a mensagens de amor incondicional, enquanto outros a criticaram. Esses mesmos grupos de justiceiros teriam também a missão de limpar a região dos gays e dos negros, conforme o relato de um vizinho do Aterro do Flamengo que foi alvo dos ataques da gangue.
"Estas questões sempre existiram, a grande diferença é o processo de comunicação. Esse processo de globalização de informação banalizou o sofrimento e as cenas têm uma conotação quase que virtual... tudo é muito imediato e descartável", afirma a socióloga Elza Pádua, autora da tese Esquizofrenia Social.
"Como a sociedade brasileira esta se comportando a respeito disso? Estamos tão horrorizados quanto com a guerra de judeus contra árabes, quanto a mulher que é estuprada na Índia... O que apenas diferencia esses caos dos nossos é a proximidade. É o sentimento de pânico pela proximidade. Estamos realmente no limite, agora começa um problema muito sério, que é como você lida com uma realidade como esta sem enlouquecer", completa Pádua.
"E a única forma de lidar é sair desse principio individualista que a gente tem, pensar que o que acontece lá fora é nossa responsabilidade também. É urgente que a gente perceba isso e saia dos processos individualistas. Só no olhar do outro como parte de você, só se preocupando com outro como parte de você, vai dar possibilidade de mudar o caos ao que chegamos. Não tem uma outra maneira de produzir uma mudança, senão considerar essa mudança fundamental para si mesmo".
A imagem daquele rapaz de 16 anos foi superada poucos dias depois pelo brutal registro de uma chacina da PM do Rio em uma operação contra o tráfico em uma favela. Seis cadáveres – negros - e rios de sangue. Mas a plateia já parece anestesiada.
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O Brasil se revolta a cada imagem - Instituto Humanitas Unisinos - IHU