13 Novembro 2015
Nos discursos de Francisco, ressoa a liberdade da poesia de Borges, o neorrealismo do cinema italiano, a força da grande literatura europeia e norte-americana dos séculos XIX e XX. Ele não mereceria o Nobel da Paz, mas um doutorado honoris causa em literatura italiana, como reconhecimento por parte do humanismo italiano em relação a uma voz que, mesmo vindo do fim do mundo – ou talvez precisamente por causa disso – soube dar uma leitura dele tão cheia de autoridade quanto original.
A opinião é do teólogo leigo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu S. Anselmo, de Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, de Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Giustina, de Pádua.
O artigo foi publicado no seu blog Come Se Non, 11-11-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
No discurso dessa terça-feira, em Florença, o bispo de Roma deu prova não só de sabedoria pastoral, de pensamento teológico, de clarividência eclesial, mas também de elegância e eficácia no modo de moldar a "forma retórica" do seu dizer.
Há algum tempo, eu notava que, nos seus "discursos" – nos EUA ou em Scampia, no Palácio de Vidro da ONU ou no Seminário St. Charles da Filadélfia, mas também, cotidianamente, em Santa Marta – os "conteúdos", muitas vezes fortes, surpreendentes, tocantes, edificantes, dependem não raramente de uma "forma estudada", de uma finíssima tessitura do discurso.
Por ocasião das palavras que ressoaram nessa terça-feira em Santa Maria del Fiore, as reações, nos jornais ou nas redes sociais, extrapolaram imagens individuais impressionantes – a menção de "Don Camillo e Peppone" ou a denúncia das "tentações", a recentragem na humildade e o desinteresse ou a ênfase na "Igreja acidentada" –, mas, com maior e compreensível dificuldade, souberam reconhecer os méritos de uma "estrutura" retórica de grandíssima potência e de complexa concepção.
O discurso é "simples", as frases individuais são lineares e incisivas, deixam-se citar com facilidade, mas escondem uma trama de "figuras retóricas", de "sequências argumentativas" e de "repentinas mudanças de registo", com eficácia totalmente surpreendente. Qualquer pessoa que assim falasse provocaria espanta. Se é um papa que o faz, a gama das reações vai do silêncio à comoção ao pranto. Muitos, especialmente no Facebook, escreveram: "Eu chorei".
Eu gostaria de começar entendendo o porquê e o como desse efeito muito singular do discurso papal. Não é frequente tudo isso: eu poderia citar, de memória, o famoso discurso de João XXIII na prisão Regina Coeli ou o discurso, muito curto, mas fulminante, de Abraham Lincoln, em Gettysburg. Diante dessa excepcionalidade, tentemos entender alguma coisa – e despretensiosamente – em torno do segredo dessas palavras inesquecíveis.
A "sequência" ordenada, mas transgressiva
O último discurso, como muitos dos anteriores, se baseia em uma estrutura linear e elementar. A antropologia cristã centrada em três pontos e duas tentações: humildade, desinteresse e bem-aventurança, contra o pelagianismo e o gnosticismo.
Cada um desses pontos, dentro dessa ordem elementar, no entanto, é desenvolvido em um entrelaçamento refinado entre "texto bíblico", "leitura sapiencial" e "associações inesperadas", que muitas vezes beiram o "senso comum". O fascínio particular do tom está escondido nessa mistura, todas as vezes diferente e imprevisível. Um exemplo disso pode ser lido neste "sumário", colocado perto do fim do discurso, que, de repente, se abre a imagens inesperadas:
"Pode-se dizer que hoje não vivemos uma época de mudança, mas sim uma mudança de época. As situações que vivemos hoje, portanto, colocam novos desafios que, para nós, às vezes, são até mesmo difíceis de compreender. Este nosso tempo requer que vivamos os problemas como desafios e não como obstáculos: o Senhor está ativo e em obra no mundo. Vocês, portanto, saiam pelas ruas e vão às encruzilhadas: todos os que encontrarem, chamem-nos, sem excluir ninguém (cf. Mt 22, 9). Sobretudo, acompanhem aqueles que ficaram à beira da estrada, 'coxos, aleijados, cegos, surdos' (Mt 15, 30). Onde quer que estejam, nunca construam muros nem fronteiras, mas praças e hospitais de campanha."
Um raciocínio "teórico" (mas alimentado pelo jogo de palavras entre "época" e "mudança"), depois, é traduzido na linguagem evangélica da "estrada" e das "encruzilhadas", para depois retornar, de repente, dos muros e das fronteiras, às "praças" e aos "hospitais de campanha". Em cinco linhas, o registro muda três vezes, mas com uma graça e uma elegância tão grandes quanto quase imperceptíveis.
As aproximações surpreendentes
Ao lado dessa "ordem" (que, simplisticamente, diríamos ser "jesuíta"), portanto, encontramos, continuamente, um princípio de "desordem", especialmente nas aproximações repentinas, assim como nos saltos de registro.
Isso faz com que se alcance um ótimo efeito, mesmo apenas citando uma única frase – e os jornais de hoje estão repletos de citações literais. Mas o significado pleno se obtém somente a partir da leitura da sequência e do contexto. E é essa sequência que é irresistível, tocante, comovente, impressionante, estupefaciente. Aqui, não se pode deixar de citar aquela passagem que causou espanto: ou seja, a citação de "Don Camillo e Peppone". Vejamos onde ela cai:
"A Igreja italiana tem grandes santos cujo exemplo podem ajudá-la a viver a fé com humildade, desinteresse e alegria, de Francisco de Assis a Filipe Neri. Mas pensemos também na simplicidade de personagens inventados como Don Camillo, que faz par com Peppone. Chama-me a atenção que, nas histórias de Guareschi, a oração de um bom pároco se une à evidente proximidade com as pessoas. Don Camillo dizia de si mesmo: 'Sou um pobre padre do interior, que conhece os seus paroquianos um por um, os ama, que sabe as suas dores e alegrias, que sofre e sabe rir com eles'. Proximidade com as pessoas e oração são a chave para viver um humanismo cristão popular, humilde, generoso, feliz. Se perdemos esse contato com o povo fiel de Deus, perdemos em humanidade e não vamos a lugar algum."
A santidade italiana e os seus exemplos reais cedem ao fascínio de uma "ficção" que supera a realidade. Don Camillo torna-se princípio de identificação do "pastor", que está perto das pessoas na oração. Até chegar à expressão, de jargão, mas muito eficaz: sem o contato, perdemos em humanidade e "não vamos a lugar algum". Sequência fulminante.
A mudança de sujeito e o discurso como roteiro
Nos pontos mais altos do discurso, acontece, quase sempre, uma mudança de sujeito. No discurso dessa terça-feira, por exemplo, a terceira pessoa, a primeira pessoa do singular e a primeira do plural estavam continuamente em movimento. A partir de uma leitura "impessoal", passava-se sempre à "primeira do singular" e, logo depois, à "primeira do plural". "Ele", "eu" e "nós" se alternavam com um efeito de vertigem.
Como exemplo, pode-se ler este trecho, muito poderoso, pelo uso de um "crescendo" de intensidade, até o "clímax" da identificação do "nós" que fala com os seus discípulos, passando pelo "sentir a sua saliva na ponta da nossa língua"!
"Vemos Jesus que come e bebe com os pecadores (Mc 2, 16; Mt 11, 19); contemplamos enquanto Ele conversa com a samaritana (Jo 4, 7-26); espiamo-Lo enquanto se encontra à noite com Nicodemos (Jo 3, 1-21); provamos com afeto a cena d'Ele, que se deixa ungir os pés por uma prostituta (cf. Lc 7, 36-50); sentimos a sua saliva na ponta da nossa língua que assim se solta (Mc 7, 33). Admiramos a 'simpatia de todo o povo' que rodeia os Seus discípulos, isto é, nós, e experimentamos a sua 'alegria e simplicidade de coração' (At 2, 46-47)."
Quase como em um "plano-sequência" cinematográfico, as palavras levam à identificação de quem escuta com aquele e aqueles de quem se fala. No estilo dos Padres da Igreja, sem uma rígida distinção entre sujeito e objeto. O objeto somos nós, e o sujeito torna-se Cristo!
A ironia contagiosa e a emergência dos "casos sérios"
Também poderia surgir a ideia de que esses textos são aprovados, assumidos, mas não redigidos por Francisco. Mas há um elemento que, sem excluir compreensíveis e necessárias colaborações, tenderia a excluir essa hipótese.
De fato, nas entrevistas, que certamente são "espontâneas", aparecem com muita evidência os mesmos elementos retóricos que aparecem nos discursos. Quem ousaria delinear as tarefas da "Igreja italiana" a partir da nossa "tradição" de exploradores?
"Que a Igreja italiana se deixe levar pelo seu sopro poderoso e, por isso, às vezes, inquietante. Que assuma sempre o espírito dos seus grandes exploradores, que nos navios se apaixonaram pela navegação em mar aberto e não se assustaram com as fronteiras e as tempestades. Que seja uma Igreja livre e aberta aos desafios do presente, nunca na defensiva por medo de perder alguma coisa. E, encontrando-se com as pessoas ao longo das suas estradas, assuma o propósito de São Paulo: 'Fiz-me fraco para os fracos, para ganhar os fracos; fiz-me tudo para todos, para salvar a todo o custo alguns deles' (1Coríntios 9, 22)."
Ou, ainda, quem teria representado a comunhão e o diálogo eclesial como um "trabalhar e um enraivecer-se juntos"?
"Recomendo-lhes, de modo especial, a capacidade de diálogo e de encontro. Dialogar não é negociar. Negociar é tentar obter a própria 'fatia' da torta comum. Não é isso que eu quero dizer. Mas é buscar o bem comum para todos. Discutir juntos, ousaria dizer enraivecer-se juntos, pensar nas melhores soluções para todos. Muitas vezes, o encontro se encontra envolvido no conflito. No diálogo, se dá o conflito: é lógico e previsível que seja assim. E não devemos temê-lo nem ignorá-lo, mas aceitá-lo. 'Aceitar suportar o conflito, resolvê-lo e transformá-lo no elo de ligação de um novo processo' (Evangelii gaudium, 227)."
Para concluir essa breve resenha de observações sobre um "fenômeno" como o dos discursos de Francisco, nunca se deveria esquecer que essa "perícia retórica" deriva de um interesse muito antigo e muito cultivado por Jorge Mario Bergoglio.
Como ele poderia construir hoje discursos tão poderosos, se ele não tivesse se posto, já quando jovem, na escola dos grandes romancistas da literatura espanhola, italiana, russa; se não tivesse olhado com interesse o grande cinema italiano; e se não tivesse, quando jovem professor, convidado para o seu colégio Jorge Luis Borges, o grande poeta argentino, para dar cursos de "escrita criativa"?
Nesses discursos "oficiais", ressoa a liberdade da poesia de Borges, o neorrealismo do cinema italiano, a força da grande literatura europeia e norte-americana dos séculos XIX e XX.
Alguns disseram – e escreveram – depois de algumas semanas da eleição que esse papa "não era uma sumidade" (sic!). Não o Nobel da Paz, mas um doutorado honoris causa em literatura italiana seria agora totalmente apropriado, e quase devido, como reconhecimento por parte do humanismo italiano em relação a uma voz que, mesmo vindo do fim do mundo – ou talvez precisamente por causa disso – soube dar uma leitura dele tão cheia de autoridade quanto original.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
O segredo de "sermões" de Francisco: a forma inquieta dos discursos e a sua "orationis ratio". Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU