29 Outubro 2015
No Sínodo, não passaram os conservadores, a autoridade do Papa Francisco é maior do que antes, as soluções adotadas são opacas, a reforma é muito lenta, mas já começou.
Publicamos aqui a declaração do Nós Somos Igreja Itália, publicada no sítio do movimento, 26-10-2015.
Eis o texto.
No Sínodo, não passaram os conservadores, a autoridade do Papa Francisco é maior do que antes, as soluções adotadas são opacas, a reforma é muito lenta, mas já começou.
Os 94 parágrafos do Relatório Final do Sínodo dos bispos sobre "A vocação e a missão da família na Igreja e no mundo contemporâneo" merecem ser lidos várias vezes. Esperamos, para o documento conclusivo que o Papa Francisco vai assinar, uma maior capacidade de síntese. Façamos algumas observações.
O Sínodo
Acima de tudo, a sua composição: 270 homens, célibes e votantes diante de um milhão de freiras representadas por três superioras gerais não votantes e nomeadas. As mulheres quase ausentes sobre uma temática em que a "vivência" é também masculino, mas muito feminina. Hervé Janson, superior dos Irmãozinhos do Evangelho, era o único não padre que votou e denunciou, na coletiva de imprensa, essa absurda composição do Sínodo, que é idêntica à de qualquer outra sessão anterior, apesar do Papa Francisco.
Outra coisa anormal e curiosa: nos 94 parágrafos, não se lembra, em nenhuma passagem (exceto em uma referência semi-invisível), que nada menos do que dois questionários propostos pela Secretaria do Sínodo fizeram com que uma parte consistente do povo de Deus discutisse, em todo o mundo, por meses.
Outra coisa particular: na Relatio, a descrição do magistério da Igreja no tempo começa no Concílio Vaticano II. Dos 19 séculos anteriores, não se diz nada, talvez porque, se se tivesse dito alguma coisa, nos daríamos conta de que a doutrina e a pastoral variaram bem ao longo do tempo e que, portanto, os conservadores que falam de verdades imutáveis escritas no Evangelho deveriam ser mais prudentes.
Dito tudo isso, esse Sínodo teve "características conciliares", muito diferentes dos do passado, quando ele parecia pouco mais do que um simples encontro de eclesiásticos que se encontravam para se conhecer e discutir em uma trilha já definida e de resultado deixado à completa discrição do papa. O que estava em jogo este ano era muito alto; confirmam isso os diversos ataques dos inimigos do papa (que, porém, se revelaram não influentes) e a atenção inédita da mídia. Podemos dizer que, seja qual for a opinião que se possa dar sobre isso, esse Sínodo, no entanto, discutiu questões que a área "conciliar" da Igreja tinha levantado há muito tempo, e que o sistema eclesiástico, salvo exceções, tinha silenciado durante anos.
Do Sínodo, sai muito fortalecida a autoridade do Papa Francisco, pelos seguintes motivos: a sua vontade de percorrer um caminho conciliar para a Igreja (mesmo que, por enquanto, com um instrumento totalmente insuficiente) teve sucesso, os ataques dos conservadores não serviram para nada, e, por fim, o resultado das votações e a qualidade do documento conclusivo disseram que o Papa Bergoglio não está em minoria. Mas, sobretudo, sai fortalecida uma ideia diferente de Igreja: menos hierárquica, menos papocêntrica, menos ocidental, precisamente mais sinodal, com todas as aberturas de visão e de comportamentos que isso implica, e que não faltarão de se ampliar e de produzir efeitos em tudo níveis, seja nas hierarquias, seja nos fiéis.
As questões gerais que dizem respeito à família
No Sínodo extraordinário de outubro de 2014, a sociedade em que "vive" a família quase não estava presente. Agora, a situação é diferente. Já no Instrumentum laboris, e ainda mais nesse relatório final, os problemas sociais com que a vivência da generalidade das famílias tem a ver, não só das cristãs, vieram à tona. Usou-se um método indutivo: na primeira parte dessa Relatio, em vez de expor os grandes princípios e a doutrina, examinou-se a realidade. Por um lado, as situações externas: a pobreza, o trabalho, a casa, as migrações, a ausência de políticas para a família, a exclusão social. Por outro, as situações internas à família, a terceira idade, a viuvez, os portadores de deficiência, as crianças e a educação dos filhos, a condição da mulher, os jovens.
Não se falou apenas do casal e se tentou defrontar com as rápidas mudanças dos últimos anos ainda em curso. Tal mudança de abordagem e de sensibilidade é, em parte, efeito e, em parte, causa da consulta, desejada pelo Papa Francisco, que foi feita com os bem conhecidos questionários, mesmo que as respostas, infelizmente, nunca tenham sido comunicadas (senão por algumas Conferências Episcopais). Essa abordagem permitiu que a maioria dos Padres sinodais não usasse módulos pré-confeccionados, mas fosse à fonte inexaurível da fé e superasse a barreira constituída pelos princípios imutáveis que estariam contidos no Evangelho que é erigida pelos guardiões do "sábado" contra o homem, e discutisse também a partir do encontro de Jesus com a adúltera, com a samaritana, com a estrangeira.
Outra observação geral: lendo a Relatio, tem-se uma dimensão da universalidade da Igreja que não se tivera no ano passado, porque se compreendem as tantas diferenças de situações e de costumes presentes no universo católico. A esse respeito, teria sido ainda melhor se todas as intervenções individuais tivessem sido tornadas públicas. Aumentou a consciência de que as culturas são muito diferentes entre si, e que "todo princípio geral precisa ser inculturado, se quiser ser observado e aplicado (…) a inculturação não enfraquece os valores verdadeiros, mas demonstra a sua verdadeira força e a sua autenticidade, porque eles se adaptam sem mudar, ou, melhor, eles transformam pacífica e gradualmente as várias culturas" (discurso do Papa Francisco no fim do Sínodo).
Divorciados recasados
Prevaleceu substancialmente a chamada solução alemã, embora com um texto complexo e não imediatamente explícito, no que diz respeito à admissão à Eucaristia dos divorciados recasados. Trata-se da escolha de confiar ao fiel individual, acompanhado por um presbítero, o discernimento e a revisão pessoal, de "consciência", do próprio caso.
É o que já é praticado por um certo número de fiéis que se encontram nessa condição, acompanhado muitas vezes pela orientação de padres nos quais se tem confiança e que foi proposto há muito tempo pelos cristãos de base, por ilustres teólogos como Bernard Häring e, no passado, em 1993, pelos bispos alemão Oskar Saier, Karl Lehmann e Walter Kasper (foi rejeitado pelo cardeal Ratzinger, prefeito da ex-Santo Ofício).
Ela se apoia na melhor teologia moral que considera que todo ato deve ser eticamente avaliado com base nas circunstâncias concretas em que ocorreu ou ocorre, mas sem nenhuma concessão a formas, diretas ou indiretas, de laxismo ou de cômodo subjetivismo.
Essa solução, como descrita no Relatio, tem limites. Não é explícita ao conceder a admissão à Eucaristia do divorciado recasado e se presta a interpretações rigoristas por parte dos inimigos de qualquer mudança, não prevê o seu acolhimento explícito na comunidade, muito menos a bênção das novas bodas (como, ao contrário, acontece desde sempre na tradição das Igrejas Ortodoxas, como Giovanni Cereti amplamente documentou).
Sobre esse ponto, em particular, será importante a receptio no âmbito das Igrejas locais, a fim de evitar discrepâncias nos comportamentos por parte dos ministros. Nesse sentido, na exortação apostólica que se seguirá, o Papa Francisco poderá enfatizar e esclarecer a escolha sinodal, levando-a a uma maior clareza.
Uma prova de que essa solução, contudo, não foi indolor é a forte oposição que ela encontrou. Contra o parágrafo 85, que trata da questão, organizou-se a dissidência no Sínodo, que provavelmente diz respeito a outros aspectos do pontificado de Bergoglio, e que nessa questão teve a oportunidade para se manifestar.
O testemunho de que a situação dos divorciados recasados pode começar a se desbloquear, em várias formas e procedimentos, também é dado pelo motu proprio Mitis Iudex Dominus Iesus, de agosto passado, que confia aos bispos competências em matéria de nulidade do vínculo. Esse texto não foi adequadamente considerado pela opinião pública católica nos seus aspectos positivos; no entanto, é uma decisão muito importante, até porque indica a vontade de descentralizar o poder na Igreja, para fazer uma modificação real de exercício do primado de Pedro.
Homossexuais
A moderada abertura da Relatio post disceptationem do Sínodo anterior acabou na cesta do lixo. Nenhuma modificação para a linha anterior foi aprovada. O cardeal Schönborn disse explicitamente, na coletiva de imprensa, que as diferenças de posição eram muitas e que não restava nada mais senão permanecer firmes. Todas as modificações e propostas que, há anos, foram elaboradas pelos grupos de fiéis homossexuais e compartilhadas por tantos outros foram ignoradas.
A brusca confirmação da não equiparação das uniões homossexuais com o matrimônio deverá ainda se deparar com uma opinião contrária que vai se espalhando por toda a parte. Podíamos esperar, ao menos, que o casal homossexual estável fosse considerado como positivo (ou não negativo), ou, ao menos, que se deixasse, para as situações eclesiásticas locais, a possibilidade de uma abordagem pastoral diferente.
Também é discutível o fechamento para a possibilidade de adoção por parte de casais homossexuais. No entanto, parece-nos que ao menos o problema das pessoas homossexuais na Igreja, agora, foi posto com muita força, e temos muita certeza de que ele ainda será objeto de uma necessária contradição na vida das nossas comunidades cristãs. Elas deverão se defrontar com a experiência de tantas irmãs e irmãos, começando a praticar realmente uma posição de completa aceitação e de ativa intervenção contra toda discriminação dentro da Igreja e também fora dela.
As irmãs e irmãos homossexuais irá manter a esperança de que as coisas mudam, porque sabem que as palavras do Evangelho de acolhida e de fraternidade vão abrir caminho para modificar as posições oficiais que não são aceitáveis. Onde foi parar o "Quem sou eu para julgar?" do Papa Francisco?
Humanae vitae
Não parece que se tenha discutido muito sobre essa encíclica, e não sabemos os motivos. Talvez, pelo constrangimento de ter que reconhecer que ela já está, de fato, fora do magistério crível e aceito pelo povo de Deus, ao menos na sua principal prescrição normativa contrária aos anticoncepcionais artificiais.
Ela é citada três vezes (nos parágrafos 43, 50 e 63), mas não nas passagens contestadas. Esperamos que ela seja progressiva e oficialmente superada e que o critério da aceitação completa das suas indicações não seja mais usado, como no passado recente, como critério determinante para atestar a ortodoxia plena daqueles que eram destinados a funções magisteriais, por exemplo, para a nomeação a bispo ou para a docência nas faculdades teológicas.
Casais não casados, casamento civil
A Relatio deste ano repete o que já foi escrito positivamente na do Sínodo anterior. A consulta das bases seguramente confirmou e facilitou esse passo em frente. No parágrafo 70, diz-se explicitamente que essas situações devem ser abordadas de modo construtivo, tentando transformá-las em oportunidades rumo à plenitude do matrimônio e da família, à luz do Evangelho.
Em tempos relativamente recentes, os conviventes more uxorio ou casados apenas civilmente eram definidos como "pecadores públicos" e, nos documentos do Concílio, não existe nenhuma referência aos casais não casados. Gostaríamos de lembrar tudo isso àqueles que continuam falando de doutrina e de pastoral imutáveis no tempo e no espaço.
A mulher na Igreja
A análise da condição da mulher é descrita, especialmente no parágrafo 27, com uma certa eficácia. Mas não tem uma evidência suficiente em relação à sua importância e à gravidade das situações difíceis em que a mulher está envolvida em grande parte dos países do mundo, mesmo naqueles onde existe uma ampla presença da Igreja.
As reflexões e as propostas poderiam ter sido diferentes e mais ricas com uma presença direta no Sínodo de representantes do universo feminino, que, em todas as partes, sustenta no mundo, de modo determinante, a vida das comunidades cristãs. No fim do parágrafo, deseja-se "uma maior valorização das suas responsabilidades na Igreja"... Serão as habituais palavras ao vento? O Papa Francisco, até agora, também não fez nada de concreto nessa direção.
Muitas outras questões importantes
Sobre outras questões que estão conectadas com a vida da família e que são de grande relevância ética e social, o Sínodo diz poucas palavras, confirmando a posição tradicional da Igreja; assim é para o aborto (parágrafo 64), para a barriga de aluguel e o mercado dos gametas e dos embriões (27), para a eutanásia e o suicídio assistido (20; essa é uma questão que não pode ser resolvida sumariamente).
Quanto à procriação assistida, o parágrafo 33 descreve a situação diante da qual a Igreja "adverte a necessidade de dizer uma palavra de verdade e de esperança". Surpreendentemente, não se diz mais nada. Talvez, os Padres sinodais ainda não se sentem à altura para falar sobre essa realidade tão difícil e em rápido desenvolvimento, que paira sobre a família e, digamo-lo também, sobre toda a humanidade.
Sobre a pedofilia (parágrafos 26 e 78), depois de dizer palavras óbvias, diz-se: "Na Igreja, seja mantida a tolerância zero nesses casos, junto com o acompanhamento das famílias". E é isso. O que significa "seja mantida"? Significa que, no passado, havia essa tolerância zero e, agora, trata-se apenas de mantê-la? Quem escreveu essa frase E a pedofilia do clero com o sistema, generalizado nos episcopados por toda a parte, de acobertar de várias formas as denúncias contra o clero? Não nos lembramos da realidade disso no mundo e na Itália?
Nós tínhamos pedido que o Sínodo fosse a ocasião para que a Igreja, por parte dos seus máximos responsáveis no mundo, expressasse um ato de profundo arrependimento pelo que aconteceu e pedisse perdão às vítimas e às suas famílias. Isso não aconteceu.
Por fim, o Sínodo denuncia, no parágrafo 8, a existência "da 'ideologia do gender', que nega a diferença e a reciprocidade natural de homem e de mulher. Ela prospecta uma sociedade sem diferenças de sexo e esvazia as bases antropológicas da família".
Estamos de acordo que alguns aspectos da cultura da chamada secularização tem seus aspectos negativos. Mas essa questão é outra coisa bem diferente. Esse medo do gender nos parece quase exclusivamente fruto de uma enfatização, por parte de movimentos fundamentalistas, de aspectos totalmente marginais e isolados de alguns fragmentos da cultura feminista e queer.
Eles encontraram, na campanha contra o fantasma do gender, motivo de identidade e de confronto contra um inexistente complô da cultura "radicalgay", na ausência das suas campanhas anteriores em defesa dos famosos "valores inegociáveis", que não agradam ao Papa Francisco (e a nós).
Essa passagem da Relatio sobre o gender parece ter sido copiada do relatório do grupo Italicus C da primeira semana do Sínodo, inspirado pela cúpula da Conferência Episcopal Italiana (CEI), que há meses não deixa de bater nesse ponto, contribuindo para criar ansiedades injustificadas nos pais das nossas escolas e a dar origem às condições para uma atitude de discriminação contra os jovens que tenham tendências homossexuais.
O discurso final do Papa Francisco
Aconselhamos a leitura na íntegra do discurso final, na noite do dia 24 de outubro, do Papa Francisco, porque ali emerge, com particular clareza, o ponto de vista novo com que ele quer guiar a Igreja.
Ele nos lembra as melhores intervenções do Papa João XXIII. Há muitas pedras preciosas: "O Evangelho continua sendo para a Igreja a fonte viva de eterna novidade, contra aqueles que querem 'doutriná-lo' em pedras mortas a serem jogadas contra os outros", a Igreja quer "defender e difundir a liberdade dos filhos de Deus, para transmitir a Novidade cristã, às vezes coberta pela ferrugem de uma linguagem arcaica ou simplesmente não compreensível", "os verdadeiros defensores da doutrina não são aqueles que defendem a letra, mas o espírito; não as ideias, mas o homem; não as fórmulas, mas a gratuidade do amor de Deus e do seu perdão".
As palavras do Papa Francisco continuam nos dando muita esperança para o futuro.
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"A autoridade do papa é maior do que antes. A reforma é lenta, mas já começou." Uma análise do relatório final do Sínodo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU