26 Outubro 2015
Os médicos dos papas ocuparam um papel fundamental na vida da corte papal, cada vez mais com novos privilégios. Dá conta disso a própria história do título, que, de "médico do papa", tornou-se "arquiatra", que significa, literalmente, o médico principal, o protomédico. Ou, se se preferir, o primeiro dos médicos.
O comentário é do historiador italiano Agostino Paravicini Bagliani, professor da Università Vita-Salute San Raffaele, de Milão, ex-scriptor da Biblioteca Apostólica Vaticana e ex-professor da Escola Vaticana de Paleografia, Diplomática e Arquivística. O artigo foi publicado no jornal La Repubblica, 22-10-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
A notícia de que Francisco estaria afetado por um tumor benigno trouxe novamente à tona um problema que já havia se tornado agudo nos últimos anos do pontificado de João Paulo II (1978-2005): a saúde do papa e as informações que lhe dizem respeito.
A saúde do papa é um problema de importância fundamental, desde sempre – ao mesmo desde que fontes disponíveis nos permitem conhecer algo das doenças dos papas, da presença de médicos na corte papal e dos cuidados por eles dispensados. Isso não antes dos últimos séculos da Idade Média.
O primeiro "médico do papa" apareceu em torno do ano 1200, durante o pontificado de Inocêncio III (1198-1215): Giovanni Castellomata, de uma família de Salerno, ligado à célebre escola médica daquela cidade, que também tivera no passado muitos vínculos com o mundo da Cúria.
Castellomata participou da redação do mais antigo tratado medieval sobre como retardar a velhice, rejuvenescer, manter a memória. O aparecimento, em torno do ano 1200, do termo "médico do papa" testemunho um interesse talvez novo em relação à saúde do papa, em torno da qual, a partir de então, observou-se uma contínua sucessão de informações.
Os médicos dos papas ocupariam um papel fundamental na vida da corte papal, cada vez mais com novos privilégios. Dá conta disso a própria história do título, que, de "médico do papa", torna-se "arquiatra", que significa, literalmente, o médico principal, o protomédico. Ou, se se preferir, o primeiro dos médicos.
Assim, a partir do ano 1200, falarão sobre a saúde do papa embaixadores e cronistas, pregadores e teólogos. Quando Pio V (1566-1573) ficou doente – a sua doença é a doença papal mais bem documentada de todo o século XVI –, o embaixador de Mântua relatou ao seu duque: "É voz pública que o papa está muito fraco e que ele mesmo desconfia da sua vida".
E o embaixador veneziano Paolo Tiepolo também conseguira ficar sabendo como o papa havia sido tratado: "Ele começou a tomar leite de burra, todas as manhãs uma grande taça", escreveu ao seu doge.
Embaixadores e observadores da vida da corte papal também dispunham de detalhes minuciosos: "O papa usa diversos gargarejos para se livrar do catarro". O embaixador veneziano Girolamo Soranzo tinha ficado sabendo que os médicos haviam encontrado "a natureza de Sua Santidade tão apta a resistir ao mal, que se poderia prometer que ele ainda vai se manter com vida por um longo tempo" (1563). E assim por diante.
As receitas médicas para os papas são copiadas e recopiadas nos manuscritos e circulam de uma corte à outra. O eletuário para os olhos que Inocêncio IV (1243-1254) teria feito com que se confeccionasse para ele, para recuperar a visão, tornou-se célebre. O rei da França enviou ao Papa Gregório IX (1227-1243) um unguento "que serve para tratar fístulas, úlceras, apostemas e todo endurecimento".
O célebre cirurgião de Filipe, o Belo (1285-1314), Enrico de Mondeville, que conhecia bem os ambientes médicos da corte pontifícia, transcreveu uma receita de um "unguento precioso" que Bonifácio VIII teria adquirido de um certo Anselmo de Gênova, para depois revendê-la ao rei da França.
Alguns tratamentos causaram sensação e provocaram fortes discussões na Cúria e além. Para tratar Bonifácio VIII do cálculo renal de que ele sofria, o catalão Arnaldo de Villanova (1240-1312), o mais famoso dos seus médicos, lhe prescreveu um selo astrológico, usando uma receita que figurava em um tratado de magia mais antigo, o famoso Picatrix. Toda a Cúria – e particularmente os cardeais – estavam a par disso. Mas os "cardeais se admiraram muito", escreveu o embaixador do rei de Aragão ao seu soberano, ainda mais pelo fato de que teria sido o próprio o papa que tornou a questão pública.
Mas esse também é um elemento que atravessa a história das doenças dos papas: ou seja, o fato de que, muito frequentemente, foram precisamente os papas que falaram das suas doenças.
João Paulo II, certamente, é o papa que, no último século, mais do que qualquer outro, forneceu informações sobre o seu estado de saúde. É uma confirmação a mais de como a saúde do papa é – há séculos – um fato destinado a se tornar de domínio público.
No seu Vivir para contarla: memorias, o Prêmio Nobel de Literatura Gabriel García Márquez conta como ele e o amigo José Salgar iam "no carro pelas estradas da planície, com o rádio conectado para seguir sem pausa o ritmo do soluço" de que era vítima Pio XII (1938-1958). Nunca a enfermidade de um papa havia conhecido uma celebridade tão ampla, até mesmo afetuosa.
Um imenso escândalo, ao contrário, foi provocado pela impiedosa publicação de duas fotos de Pio XII agonizantes, tiradas pelo seu médico pessoal, Riccardo Galeazzi-Lisi (foto).
Com dor ficou-se sabendo dos primeiros sinais da doença de João XXIII, desde a abertura do Concílio Vaticano II (25 de dezembro de 1961). E, no dia 4 de novembro de 1967, quando o jornal Il Messaggero publicou a notícia da iminente cirurgia de Paulo VI, a repercussão foi mundial. Mas também foi a última vez que um papa foi operado no Vaticano.
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"Unguentos preciosos": os segredos e escândalos dos médicos dos papas. Artigo de Agostino Paravicini Bagliani - Instituto Humanitas Unisinos - IHU