Por: Cesar Sanson | 21 Outubro 2015
"Provavelmente, o termo 'conflito' não seja o mais apropriado para descrever o que aqui se passa, pois os contornos são de um franco massacre étnico. Onde estão etnias Guarani Ñandeva e Kaiowá, o local é designado como a Faixa de Gaza brasileira, dado o ultrajante cenário de violação de direitos sofridos por aquelas minorias étnicas", afirmam os servidores da Funai do Mato Grosso do Sul em carta aberta à opinião pública, reproduzida pelo portal do Conselho Indigenista Missionário - Cimi, 20-10-2015.
Segundo os servidores da Funai do MS, "a impunidade recorrente sobre tais violências já é tão notória que as redes sociais transbordam de discursos ameaçadores que falam em morte de indígenas, surras a servidores da Funai e do Cimi e seus autores não se preocupam em nenhum momento em esconder seus rostos ou identidades, pois sabem que não haverá nenhuma punição".
Destacam ainda que "essa tragédia foi e é anunciada em gritos sufocantes e sufocados pelo movimento indígena, por movimentos sociais criminalizados, e por nós servidores muitas vezes calados pela natureza estatal da Fundação".
Eis a Carta.
Cumprimentando-os(as) cordialmente, servidores e servidoras da Fundação Nacional do Índio lotados(as) no Estado do Mato Grosso do Sul, vimos, por meio desta, explicitar nossa indignação frente aos últimos acontecimentos tocantes ao conflito fundiário no MS. Provavelmente, o termo “conflito” não seja o mais apropriado para descrever o que aqui se passa, pois os contornos são de um franco massacre étnico. Como é internacionalmente sabido, a gravidade dos impasses na resolução da situação fundiária no Estado se arrasta há décadas, com alarmante foco na região do Cone-Sul, onde estão as etnias Guarani Ñandeva e Kaiowá, local designado como a Faixa de Gaza brasileira, dado o ultrajante cenário de violação de direitos sofridos por aquelas minorias étnicas.
No último sábado, vinte e nove de agosto, presenciamos mais um brutal ataque contra os Kaiowá e Ñandeva em processo de retomada de seus territórios tradicionais, no tekoha Ñande Ru Marangatu, localizado no município de Antônio João, área que se encontra homologada desde 2005, com o processo paralisado no STF.
Conforme relataram os próprios indígenas, por meio de denúncias publicadas na página do Aty Guasu nas redes sociais, o atentado foi orquestrado e executado por lideranças ruralistas do município tendo à frente a Srª Rozeli Ruiz Silva, presidente do Sindicato Rural de Antônio João, esposa do ex-prefeito do município, cuja família é titular de áreas que incidem sobre o território reivindicado pelos indígenas. Rozeli e sua filha, a advogada Luana Ruiz Silva, vêm, há tempos, promovendo uma campanha de calúnias contra os indígenas, à Funai e a organizações indigenistas, culminado agora com a divulgação de boatos que davam conta de que os indígenas tomariam de assalto e ateariam fogo à cidade. Tais absurdas acusações têm o claro propósito de instaurar o pânico e incitar a população de Antônio João contra os Guarani Kaiowá, como se já não fosse suficiente o forte sentimento de preconceito e ódio étnico direcionado aos indígenas na região.
Tendo sido acompanhado por autoridades políticas estaduais, a investida da parte dos ruralistas resultou em vários indígenas feridos e no óbito de Semião Vilharva, Kaiowá, vinte e quatro anos, atingido na cabeça por projétil de calibre vinte e dois. Contrariando as acusações disseminadas em veículos de mídia locais de que os indígenas estariam armados e até a fantasiosa hipótese de que teriam recebido treinamento em táticas de guerrilha por parte do Exército Popular Paraguaio (EPP), não há relatos de fazendeiros ou capangas que tenham sido feridos. Assim como ocorreu com os assassinatos de Marçal de Souza, morto há trinta e dois anos no mesmo tekoha, da nhandesi (rezadora e líder religiosa) Xurete Lopes, dos irmãos Rolindo e Genivaldo Vera, do cacique Nísio Gomes e de tantas outras lideranças ao longo das últimas décadas, tememos que mais este crime permaneça impune. Lembramos que, embora haja acusações de ambos os lados, havia pessoas armadas, o simples porte de armas é ilegal e já geraria prisão, e mesmo com viaturas e efetivo do DOF, PM e Força Nacional não houve a prisão de nenhum infrator da lei mesmo com vítimas fatais.
Há cerca de dois meses, ataque semelhante ocorreu contra os indígenas em situação de retomada no tekoha Kurusu Ambá, município de Amambai. Registros audiovisuais mostram fazendeiros arremetendo suas camionetes em direção aos indígenas, com a patente intenção de atropelá-los. O acampamento onde os Kaiowá se encontravam foi totalmente incendiado, dezenas de indígenas foram feridos e duas crianças desapareceram.
No mesmo dia do ataque, colegas da Coordenação Regional de Ponta Porã, CR à qual são jurisdicionadas as áreas acima mencionadas foram ameaçados por fazendeiros e capangas em frente às suas residências, cena que deixa evidente o quadro de insegurança extrema em que se encontram os(as) servidores(as) do órgão no MS.
Dias após o atentado, uma viatura da Funai que transportava indígenas ao possível local do desaparecimento das crianças, acompanhada por agentes da Força Nacional, foi truculentamente abordada por fazendeiros e impedida de seguir seu trajeto. Os mesmos agiram com imenso desrespeito frente aos agentes da FN, bradando gritos de “fora”, “saiam da nossa propriedade”, atos que, se oriundos de indivíduos de camadas sociais menos favorecidas, certamente teriam gerado resposta bem mais severa por parte do aparelho de segurança do Estado. O ocorrido pode ser assistido em registro audiovisual feito pelos próprios fazendeiros e publicado na internet.
Há dois anos, a Coordenação Regional de Campo Grande atravessou situações semelhantes às agora enfrentadas pela CR de Ponta Porã. Durante a execução da reintegração de posse nas fazendas reivindicadas como território tradicional pelos indígenas Terena da TI Buriti, ação executada pela Polícia Federal com o reforço da Polícia Militar, o indígena Oziel Gabriel, trinta e dois anos, foi fatalmente alvejado por projétil de arma de fogo. O uso da força policial na operação foi flagrantemente desproporcional, tendo havido inclusive a detenção de indígenas gestantes, idosos e menores de idade, no momento em que, após a operação, estes tentavam retornar a pé para suas aldeias.
O corpo de Oziel foi submetido às pressas ao exame de necropsia e, nessa perícia foi apontado que a bala teria atravessado seu corpo, mas, a camisa que Oziel utilizava e que teria comprovado que a bala não teria de fato atravessado seu corpo sumiu. Seu corpo foi embalsamado com tanto formol que destruiu qualquer vestígio que ajudaria numa prova de balística, comprometendo a idoneidade de instituições como o hospital municipal e o instituto médico legal de Sidrolândia que receberam o corpo e deram o tratamento para liberar o corpo para enterro à família em tempo recorde em se tratando de morte por crime violento. Foi solicitado pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República e por insistência da Presidência da Funai, um perito designado pela Polícia Federal veio diretamente de Brasília para fazer uma necropsia com mais cuidado e mais afinco para que se pudesse apontar o real assassino do Oziel, já que em um caso de uma reintegração de posse tão desastrosa resultando uma morte o Estado deveria se responsabilizar.
Mas em um processo de mais de 1000 laudas não se aponta culpados. A imprensa local noticiou o caso de forma inteiramente parcial, como de costume, com a franca intenção de culpabilizar e criminalizar os indígenas, atingindo o ápice do desrespeito e desumanidade ao afrontar a família e amigos de Oziel, em pleno velório do mesmo, com uma cópia do mandado de reintegração de posse, apenas para obter mais manchetes desfavoráveis à comunidade e à sua luta pela terra.
Nos dias subsequentes, outro indígena da comunidade sofreria um atentado à vida. Josiel Gabriel, primo de Oziel, foi alvejado por capangas dos fazendeiros, ficando tetraplégico em decorrência do ferimento. Crime pouco investigado, criminosos impunes.
Ainda naquele ano, no mês de novembro, a Coordenação Regional passou um dos momentos mais tensos e violentos de sua história. Às oito horas da manhã do dia dezenove, a CR foi invadida por dezenas de ruralistas, em ato orquestrado pela Famasul (Federação da Agricultura e Pecuária de MS). Os fazendeiros ou mais visivelmente, seus empregados, desde o início proferiam diversas ofensas morais e palavras de baixo calão contra as servidoras e servidores, os indígenas e o órgão agindo todo o tempo com a truculência que lhes é habitual, causando inclusive danos materiais ao prédio. Até mesmo insultos de cunho sexual foram proferidos contra as servidoras mulheres que aqui estavam.
Adotamos postura apaziguadora e urbana, como compete a servidores públicos no exercício de sua função, embora em claro momento de desacato, não obtendo, todavia, o arrefecimento dos ânimos. O andar térreo do prédio foi ocupado e servidores encurralados ao longo de toda a manhã. Um indígena que estava presente foi vítima de uma tentativa de agressão física por parte de um fazendeiro. Contatada, a Polícia Federal alegou que não enviaria efetivo para salvaguardar a integridade física dos servidores, pois se tratava de um “protesto pacífico”. Não foi o que testemunhamos. Apenas dois policiais militares foram deslocados para intervir na situação e quando chegaram ao local, preocuparam-se em ouvir a versão dos invasores em primeiro lugar e solicitaram aos servidores que ficassem calados passivos às agressões.
Já neste ano, na cidade de Miranda, um fazendeiro e dono de um supermercado local atirou contra o indígena Terena Jolinel Leôncio da Aldeia Mãe Terra, quando este retornava do trabalho na roça junto com seus irmãos.
Toda essa violência, sob a forma física ou simbólica, já é uma constante em MS. Os métodos de propaganda da elite rural via mídia estendem sua influência hegemônica sobre a opinião de parte da população comum do estado, portanto não proprietária de títulos, que acaba por reproduzir esse discurso de ódio e preconceito aos índios e funcionários de órgãos de estado que trabalham com as populações indígenas, reforçando atitudes que negam direitos originários ao seu território, direitos consagrados nos artigos 231 e 232 da Constituição Federal de 1988 e demais direitos de cidadania que lhes são fundamentais.
A impunidade recorrente sobre tais violências já é tão notória que as redes sociais transbordam de discursos ameaçadores que falam em morte de indígenas, surras a servidores da Funai e do Cimi e seus autores não se preocupam em nenhum momento em esconder seus rostos ou identidades, pois sabem que não haverá nenhuma punição e acham de total legitimidade o que acreditam ser suas meras opiniões, principalmente quando acham que simples fato de declarar que não se trata de “índios mas paraguaios” é argumento legitimo para negar cidadania e dignidade a um ser humano.
O conjunto de todos os fatos acima narrados, além daqueles que aqui foram omitidos para não nos repetirmos excessivamente, demonstram o quanto a omissão do Estado brasileiro junto a essas populações, associado ao sucateamento e desmonte da estrutura da Funai, deixam os indígenas do Mato Grosso do Sul em situação de extrema vulnerabilidade.
Essa situação está longe de ser resolvida com uma simples mudança na legislação, com uma reunião ou uma mesa de negociação. A irresponsabilidade de governos de décadas, da falta de estrutura ética e moral dentro dos aparelhos de Estado para lidar com uma diversidade étnica e cultural carente de cidadania em extremo caso de vulnerabilidade social à mercê de graves casos de violência urbana, do tráfico de drogas e tráfico humano nas fronteiras, das mais terríveis mazelas da pobreza e da miséria só vai se resolver com sérios e longos investimentos em programas na infância de crianças que convivem com sangue, suicídio, ódio de classes, fronteiras sem leis de uma comunidade que há várias gerações não tem futuro.
O esgotamento de todas as instâncias jurídicas, o sucateamento e inércia das instâncias executivas e a morosidade das instâncias legislativas das esferas municipais, estaduais e federais em resolver as mazelas sociais enfrentadas pela segunda maior população indígena da República Federativa Brasileira, em um dos estados que apresenta os maiores índices de homicídio e suicídio das populações indígenas do mundo levará inevitavelmente a um julgamento por crime contra a humanidade em instâncias internacionais, e essa tragédia foi e é anunciada em gritos sufocantes e sufocados pelo movimento indígena, por movimentos sociais criminalizados, e por nós servidores muitas vezes calados pela natureza estatal da Fundação.
Com profunda tristeza e pesar,
Servidores da Funai, de Campo Grande – Mato Grosso do Sul
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O estado atual do massacre étnico no Mato Grosso do Sul - Instituto Humanitas Unisinos - IHU