26 Setembro 2015
No início da manhã do dia 16 de novembro de 1989, soldados de um batalhão de elite do Exército de El Salvador entraram na capela de uma universidade jesuíta e mataram todos os que aí se encontravam.
A reportagem é de Jonathan M. Katzsept, publicada por The New York Times, 13-09-2015. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Os assassinatos – seis sacerdotes, a trabalhadora doméstica deles e sua filha – quebrou o estupor de um mundo acostumado com os banhos constantes de sangue da guerra civil salvadorenha (1979-1992), terminando por apressar o fim do apoio americano ao regime militar e abrindo caminho para um acordo de paz.
Vinte e seis anos depois, o governo dos Estados Unidos, que gastou mais de 4 bilhões de dólares em ajuda aos militares daquele país durante o conflito – incluindo o treinamento da Batalhão Atlacatl, que massacrou os jesuítas –, está agora trabalhando para levar à Justiça alguns dos oficiais com os quais, certa vez, havia sido parceiro.
Esta mudança silenciosa, que vem acontecendo via debates não divulgados e em tribunais quase vazios, é um sinal do quanto mudou – e do quanto não mudou – desde o fim da Guerra Fria. Defendido por apoiadores dos direitos humanos e condenado por críticos que dizem que isso equivale a trair velhos aliados, o movimento em curso tem a ver com a relação, cada vez mais complicada, entre a política externa americana e os direitos humanos em todo o mundo.
Durante meses, o exemplo mais destacado desta mudança foi o desejo de extraditar Inocente Orlando Montano Morales, ex-vice-ministro da Defesa acusado de participar na reunião em que foi dada a ordem para matar o Pe. Ignacio Ellacurría (reitor da Universidade Centro-Americana José Simeón Cañas) e para não deixar testemunhas vivas. Os oficiais acreditavam que o Pe. Ellacurría, que estava atuava como um mediador de paz no país, era também um líder intelectual de esquerda.
O Departamento de Justiça está agora pressionando para que o Sr. Montano, que está sob custódia americana depois de violar as regras imigratórias, seja extraditado à Espanha, onde ele e outros 19 ex-oficiais são acusados de assassinato e terrorismo no massacre. Cinco dos seis sacerdotes assassinados eram cidadãos espanhóis.
“O governo americano passou de uma era em que ajudávamos a dar vistos para acolher os militares salvadorenhos no país para uma era em que estamos apoiando a deportação e extradição deles com base em acusações criminais”, disse Geoff Thale, diretor do Washington Office on Latin America e um antigo analista de El Salvador. “Estamos diante de uma mudança muito significativa”.
Montano, que vivia em Massachusetts e foi preso por agentes federais em 2011, é o único réu em custódia. Em uma audiência em 19 de agosto deste ano, a juíza do caso disse que, nas próximas semanas, iria emitir uma decisão sobre o pedido de extradição do réu. Se Montano for enviado para a Espanha, outros réus poderão ser julgados in absentia.
Os que estão familiarizados com o processo contra o Sr. Montano dizem que ele começou como um resultado dos esforços de defensores dos direitos humanos e de uma unidade especializada do Departamento de Justiça dos Estados Unidos – a Seção de Direitos Humanos e de Processos Especiais. Porém, este processo não teria chegado tão longe sem o apoio do alto escalão governamental.
O movimento coincide com um compromisso renovado por parte do governo Obama na América Central – especialmente na região de Honduras, El Salvador e Guatemala –, impulsionado em parte por surtos migratórios recentes de pessoas fugindo da violência e da pobreza nestes países. O plano do governo exige uma triplicação dos gastos com programas americanos na região que chega à casa de 1 bilhão de dólares, concentrando-se em áreas como a da cooperação militar, desenvolvimento de negócios, educação e redução da corrupção policial. Ainda assim, um alto funcionário do Departamento de Estado disse que os processos judiciais contra Montano e outros encontram-se em cursos separados e independentes.
“Eu diria que esses casos refletem o compromisso dos Estados Unidos em realizar o devido processo legal e não reflete nenhuma agenda política em particular que venhamos a ter com El Salvador”, disse o funcionário, que pediu para não ser identificado.
No entanto, nem todo mundo nos Estados Unidos apoia os esforços em processar ex-oficiais. Houve protestos nos últimos meses quando o Gen. Carlos Eugenio Vides Casanova, ex-ministro da Defesa de El Salvador que vivia na Flórida há 25 anos, foi deportado depois que um tribunal de imigração decidiu que ele era o responsável pelo estupro e assassinato de três freiras americanas e uma missionária, violência cometida por tropas sob o seu comando em dezembro de 1980.
Elliott Abrams, secretário-assistente de Estado para assuntos interamericanos durante a era do presidente Ronald Reagan, e Edwin G. Corr, ex-embaixador americano em El Salvador, argumentou, em um artigo publicado no Wall Street Journal, que estes oficiais militares salvadorenhos eram aliados americanos e que as autoridades americanas, hoje, estavam se esquecendo das “circunstâncias em que eles atuaram e das dívidas para com aqueles que tornaram possível o sucesso americano em todo o mundo”.
O governo Reagan considerava o regime salvadorenho de direita como um baluarte contra a formação de um governo de esquerda que poderia ter-se alinhado à União Soviética. Este pequeno país, hoje o lar de 6,3 milhões de pessoas, foi de longe o que mais recebeu ajuda americana na América Latina na década de 1980.
O Sr. Vides, o general acima citado, continua vivendo como um homem livre em El Salvador, onde há uma hesitação semelhante em revisitar o passado nacional. Uma lei de anistia, de 1993, proíbe processos por violações de direitos humanos cometidos durante a guerra.
Os dois únicos oficiais militares responsabilizados pelo massacre e que chegaram a ser presos em El Salvador foram libertados assim que a lei foi aprovada. Analistas dizem que alguns políticos, incluindo aliados do governo esquerdista do presidente Salvador Sánchez Cerén, temem serem retaliados caso a lei de anistia venha a ser modificada ou suspendida.
Outros pensam de forma diferente. Em uma pesquisa de opinião de 2014 envolvendo 1.267 salvadorenhos, viu-se que 76% deles disseram ser a favor de uma investigação governamental sobre os graves abusos dos direitos humanos cometidos durante a guerra. A pesquisa tem uma margem de erro de 3 pontos percentuais, para mais ou para menos.
Confrontar o passado é parte essencial em lidar com a presente conturbado de El Salvador, disse Jeannette Aguilar, diretora do Instituto de Opinião Pública da Universidade do Centro-Americana, departamento que conduziu a pesquisa.
Rompeu-se uma trégua entre duas gangues locais – a Mara Salvatrucha (ou MS-13) e a Barrio 18. Em agosto, o país registrou a mais alta taxa de homicídios em um mês desde a guerra.
Estas gangues remontam suas origens à cidade de Los Angeles, onde ex-guerrilheiros se juntaram com jovens imigrantes a fim de proteger a vizinhança e cometer crimes. Muitos dos membros destas gangues foram, em seguida, deportados de volta para El Salvador. (“Salvatrucho” era o apelido destes guerrilheiros.)
“Para além desta crise, deste estado de violência em que o país se encontra, é fundamental olhar para o futuro em termos tendo presente essa grande dívida, esses déficits históricos, desfazendo esta sensação de impunidade”, completou Aguilar.
“Para mim, esta questão da extradição envia uma mensagem”, continuou ela. “Envia a mensagem de que os Estados Unidos não irão apoiar os violadores dos direitos humanos, embora, no passado, houve governos e políticos que apoiaram esse tipo de abuso”.
A unidade do Departamento de Justiça que está levando adiante o processo contra o Montano é uma espécie de sucessora do Escritório de Investigações Especiais, criado para julgar criminosos de guerra nazistas que se escondiam nos Estados Unidos; hoje a seção está focada de forma mais ampla sobre indivíduos violadores dos direitos humanos.
Os promotores usaram uma das táticas mais antigas do Escritório para levar Montano em custódia: acusando-o de ter mentido em um pedido de imigração sobre o seu passado militar e sobre a data de entrada nos Estados Unidos. O coronel aposentado declarou-se culpado de seis acusações de fraude imigratória e perjúrio em 2012. Em sua audiência em Boston, Montano negou ter envolvimento nos assassinatos.
“Não pretendo negar que houve violações dos direitos humanos em El Salvador nas mãos dos soldados, oficiais ou comandantes”, disse ele, de acordo com as transcrições do tribunal. Mas, acrescentou, “a instituição é composta de indivíduos que estavam sujeitos a cometer erros”.
Agora com 73 anos de idade, caminhando com a ajuda de um andador, Montano está sendo mantido no Centro de Detenção do Condado de Pitt, perto de Greenville, na Carolina do Norte. Montano aguarda uma decisão a respeito de sua deportação em sua cela, a duas horas de Fort Bragg, onde certa vez os membros do Batalhão Atlacatl foram treinados.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
EUA quer que ex-aliado salvadorenho seja julgado por massacre de jesuítas em 1989 - Instituto Humanitas Unisinos - IHU