28 Agosto 2015
O que nos torna impuros? Ao colocar esta questão, Jesus nos interroga sobre o que verdadeiramente vem a ser religião: simples tradição? Rituais a seguir?
A reflexão é de Marcel Domergue, sacerdote jesuíta francês, publicada no sítio Croire, comentando as leituras do 22º Domingo do Tempo Comum, do Ciclo B. A tradução é de Francisco O. Lara, João Bosco Lara e José J. Lara.
Eis o texto.
Referências bíblicas:
1ª leitura:«Nada acrescenteis à palavra que vos digo, mas guardai os mandamentos do Senhor»(Deuteronômio 4,1-2.6-8)
Salmo: Sl. 14 (15) - R/ Senhor, quem morará em vossa casa e no vosso santo monte habitará?
2ª leitura:«Sede praticantes da palavra e não meros ouvintes»(Tiago 1,17-18.21-22.27)
Evangelho:«Vós abandonais os mandamentos de Deus para seguir a tradição dos homens» (Marcos 7,1-8.14-15.21-23)
O que significa "ser puro"?
Nada que venha do exterior pode tornar o homem "impuro", ou seja, pode impedi-lo de caminhar rumo à perfeição da sua criação à imagem de Deus. "Puro" é o que não tem divisão, o que não se deixa alterar por uma mistura de finalidades e intenções. Em linguagem corrente, por exemplo, podemos falar de "vinho puro". Um homem impuro é o que, sem capacidade de decisão, deixa-se atrair por interesses contraditórios; é o homem do "sim-não", do "sim, mas..." Por isso o Salmo 86, versículo 11, nos faz dizer: "Unifica meu coração para temer o teu nome". A pureza legal é uma coisa muito diferente: consiste em cumprir certo número de ritos que, aliás, não são destituídos de significado. O problema de todo rito é que podemos permanecer no gesto apenas, sem chegarmos ao seu significado. A ablução exterior, o lavar-se, significa escolher a pureza interior, assim como acabamos de descrever. Daqui vem a prática da higiene, que, desta forma, encontra-se gratificada com um sentido religioso. E para que este sentido não seja esquecido, é comum que os gestos rituais se façam acompanhar de palavras que explicitem o que buscamos com as nossas práticas. Temos o coração dividido, impuro, quando nos voltamos a uma só vez para Deus e para os ídolos. Jesus, no final do evangelho, faz aos discípulos uma enumeração que corresponde às práticas idolátricas: culto ao dinheiro, ao sexo, a vontade de dominar, etc. São as "potestades e dominações" que, como diz Paulo, o Cristo pôs debaixo dos seus pés.
Ao mesmo tempo homicidas e "puros"
Naturalmente, estas potestades e dominações, mesmo se vindas do exterior, podem nos agredir com muita violência. De fato, elas não nos deixam incólumes. Jesus não havia dito, no entanto, que o que vem de fora não pode verdadeiramente nos prejudicar? Não exatamente. Na realidade, os ídolos podem fazer-nos muito mal; o próprio Cristo foi vítima deles, quando a inveja e o medo de perder o poder levaram os chefes do seu povo a fazer com que o crucificassem. Quando Jesus nos diz que o que entra em nós, “vindo de fora”, não pode nos corromper, está explicando exatamente o que irá acontecer na cruz: nada poderá levá-lo a separar-se do amor, que é a sua própria natureza. Pelo contrário, quanto mais a perversidade humana se incrementa, mais este amor revela a glória da sua gratuidade absoluta. É onde descobrimos o que é o amor "em estado puro". Em geral, muitos de nós somos capazes de admitir isto "intelectualmente", mas tudo se complica quando se trata de, num caso concreto, perdoarmos uma afronta ou um ato de hostilidade: a vontade de vingança aparece com frequência quando nos defrontamos com o que não tem justificativa. O "impuro" passa, então, a tomar a palavra dentro de nós. Ao lado do discípulo de Cristo, revela-se em nós um personagem diferente, um outro nós mesmos que estivera até então oculto, dissimuladamente "escondido atrás da nossa porta", assim como o pecado de que fala Gênesis 4,7 a propósito da pulsão homicida de Caim.
O único mandamento
Jesus repreende os escribas por deixarem de lado o mandamento de Deus para se apegarem à tradição dos homens. De modo consciente ou não, estes ilustres senhores exercem um julgamento, portanto, ao escolherem isto ao invés daquilo. O exercício da liberdade está, portanto, na origem desta degradação da relação com Deus. Não pode haver impureza sem liberdade. Creio que foi Malraux quem dizia que temos de escolher uma parte de nós mesmos, para privilegiá-la. Nem tudo o que sai do coração do homem tem o mesmo valor. Há em nós personagens aos quais não somos forçados a dar a palavra, não importa o que pensem certos ideólogos da espontaneidade. Espontaneidade, forçosamente, não é a verdade. Nosso texto termina com uma enumeração das condutas perversas que correspondem às proibições do Decálogo. Todas estas proibições referem-se finalmente a diversas formas de assassinato: o assassinato de Deus, do Filho do homem e de não importa qual homem. Diante disto, o mandamento único (notemos o singular do versículo 8), que evidentemente é o mandamento do amor a Deus, só pode ser observado através do amor aos homens e se levanta contra todas as figuras do homicida. Os ritos, as celebrações diversas, as cerimônias, os jejuns e abstinências… perdem todo o valor se não são expressão desta escolha fundamental e um encorajamento para praticá-la.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Puro ou impuro? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU