03 Agosto 2015
“A luta nossa, menina, tem sido pesada demais”, descreve o pescador Ademar Leôncio, que em seguida passa a palavra para a lavadeira Jovecília de Jesus continuar a história. Sentados em uma mesa da casa do extrator de pedra e areia Reinaldo Oliveira, o Reinaldão, os três contam como foi a chegada da hidrelétrica de Itapebi, em Salto da Divisa, Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais. O município, com 7 mil habitantes, está localizado às margens do rio que dá nome à região. Mas o que sobrou dele depois da construção da barragem, em 2003, foi um grande lago sujo, infestado de aguapé, planta que se espalha em águas poluídas. Até mesmo a cachoeira Tombo da Fumaça, um dia tombada como patrimônio histórico estadual e municipal, foi alagada e sumiu. Das promessas feitas pela empreiteira, poucas foram cumpridas. Menos da metade dos extratores e dos pescadores recebeu indenização. A cidade não viu o prometido desenvolvimento. Pelo contrário, a sensação é que Salto da Divisa parou no tempo.
A reportagem é de Alice Maciel, publicada pela site Agência Pública e reproduzida pelo portal Envolverde, 30-07-2015.
A empresa que elaborou o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) da hidrelétrica – que omitiu o alagamento de cachoeiras, subestimou o número de trabalhadores atingidos pela barragem e não previu a interrupção da pesca – é conhecida do público. Foi a Engevix Engenharia S.A.
A Engevix tem como foco a construção civil, mas também atua na área de meio ambiente. Ela participou, por exemplo, da realização dos estudos das comunidades, terras e áreas indígenas do Relatório de Impacto Ambiental (Rima) e do EIA da hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu (PA). Foi a responsável pelo pré-cadastro socioeconômico, pesquisa censitária e amostral do patrimônio arqueológico, cultural e paleontológico na região afetada pela usina. Ao mesmo tempo, a Engevix Engenharia e a Engevix Construções – do mesmo grupo – participam junto com a Toyo Setal do consórcio de montagem eletromecânica da hidrelétrica a um custo de R$ 1,038 bilhão. Ou seja, além de fazer o EIA-Rima, a Engevix se beneficia da construção do empreendimento.
Hoje, a empresa é alvo da Operação Lava Jato, que investiga denúncias de corrupção na Petrobras. Ela é acusada de participar do cartel de contratos que teria desviado mais de R$ 6 bilhões da maior estatal brasileira. De acordo com denúncia do Ministério Público Federal (MPF), a Engevix teria pago propina ao ex-diretor de abastecimento da Petrobras Paulo Roberto Costa por intermédio de empresas vinculadas ao doleiro Alberto Youssef. A propina teria vindo do lucro obtido com licitações fraudulentas.
O mercado de dissimular impactos ambientais
Não é à toa que a Engevix esteve profundamente envolvida em diversas grandes licitações e na construção de Belo Monte, segunda maior hidrelétrica do país. Ela faz parte de um seleto clube de três empresas que há duas décadas se revezam na elaboração dos estudos de impacto desse tipo de obra.
Das 71 hidrelétricas que entraram em operação desde o primeiro ano de governo Fernando Henrique Cardoso, em janeiro de 1999, pelo menos 42 contaram com a participação das empresas Engevix Engenharia, Leme Engenharia e CNEC WorleyParsons Engenharia, sendo que elas foram responsáveis pelos estudos de impacto social e ambiental de 22 delas. Esses estudos são pré-requisitos para o licenciamento da construção das usinas desde 1986, seguindo a resolução do Conama.
As mesmas empresas fizeram os estudos ambientais das demais grandes hidrelétricas que estão em construção atualmente: Teles Pires (PA-MT), Baixo Iguaçu (PR) e São Manoel (MT), além de São Luiz do Tapajós (PA) que está em fase de planejamento.
Porém, contratadas e pagas pelo empreendedor, as três têm como atividade principal a construção civil. Ou seja, além de ter de agradar ao freguês com relatórios que sejam aprovados pelos órgãos ambientais, elas estão entre as interessadas na liberação da obra. Muitas vezes essas empresas fazem os estudos e, posteriormente, participam do processo de construção das hidrelétricas.
Na lista de clientes que as contratam pelo know-how na área de meio ambiente, estão as construtoras Andrade Gutierrez, Camargo Corrêa e Odebrecht, que também são parceiras da Engevix, da Leme e da CNEC na construção de grandes obras país afora. Como exemplo, a Engevix participou com a Odebrecht do consórcio construtor da usina hidrelétrica de Baguari (rio Doce-MG); a CNEC é parceira da Camargo Corrêa na implantação da refinaria de Abreu e Lima; enquanto a Leme Engenharia participou do consórcio construtor da usina hidrelétrica Capim Branco I e II (rio Araguari-MG) com Andrade Gutierrez, Odebrecht e Engevix.
Além dos contratos com o setor privado, elas têm negócios com a Empresa de Pesquisa Energética (EPE), autarquia do Ministério de Minas e Energia responsável por “desenvolver estudos de impacto social, viabilidade técnico-econômica e socioambiental para os empreendimentos de energia elétrica e de fontes renováveis”, de acordo com a Lei n° 10.847, de 15 de março de 2004. A EPE contratou, por exemplo, a Leme Engenharia (em consórcio com a Concremat) para fazer os estudos das usinas de São Manoel (PA) no rio Teles Pires e da hidrelétrica Teles Pires (PA/MT), no rio de mesmo nome. Só de recursos da EPE, a Engevix recebeu de 2008 a 2015 R$ 6,2 milhões, nas rubricas Estudos de Inventário para Expansão de Energia Elétrica e Planejamento do Setor Energético, de acordo com levantamento no Portal da Transparência do Governo Federal. Já a CNEC Engenharia recebeu, no mesmo período, R$ 7,8 milhões, enquanto a Leme Engenharia, R$ 5 milhões.
Para acelerar o início das obras das usinas hidrelétricas vale tudo: esconder a existência de florestas, de espécies de animais em risco de extinção e até mesmo de impactos sobre tribos indígenas. Denúncias por falhas e omissões em EIA e Rima fazem parte do histórico da Engevix, da Leme e da CNEC. A consequência: biomas destruídos e direitos humanos desrespeitados, estragos irreversíveis. Apesar disso, nada impediu, até hoje, que elas continuem atuando na área.
Engevix: um histórico de omissões
No final da década de 1990, a Engevix Engenharia protagonizou um dos casos mais emblemáticos de fraude em EIA no país. Omitiu a existência de uma floresta de quase 6 mil hectares de araucárias alagada com a construção da hidrelétrica Barra Grande, no rio Pelotas, divisa de Santa Catarina com Rio Grande do Sul. Hoje, no Brasil, restam apenas 3% de remanescentes de floresta de araucária, ecossistema que pertence à Mata Atlântica. Junto com a floresta, também foi extinta a bromélia Dyckia distachya.
“A maior parte a ser encoberta é constituída de pequenas culturas, capoeiras marginais baixas e campos com arvoredos esparsos”, alegou a Engevix em relatório que serviu de base para o Ibama dar a licença de instalação da usina, em 2001. A licença de operação saiu em 2005, mesmo ano em que o órgão federal autuou a empresa em R$ 10 milhões e a proibiu de elaborar estudos ambientais para novos empreendimentos no Brasil por omitir a existência da floresta de araucárias. Uma decisão do Tribunal Regional Federal (TRF) da 4ª Região, em 2012, suspendeu as penalidades, de acordo com informações da assessoria de imprensa do Ibama.
Em 2007, a empresa foi alvo da Operação Navalha, cujo objetivo era desmontar uma quadrilha que fraudava licitações de obras públicas. Na época, o lobista Sérgio Sá, contratado da empreiteira, foi preso na operação. Isso, no entanto, não impediu que a empresa mantivesse contratos com o poder público. Em novembro do ano passado, um dos sócios da Engevix, Gerson Almada, foi preso na Operação Lava Jato. Em entrevista à Folha de S.Paulo em março deste ano, o presidente da Engevix, Cristiano Kok, admitiu ter pago cerca de R$ 10 milhões para o doleiro Alberto Youssef.
Kok está na presidência da Engevix desde 1989. Engenheiro mecânico, ele começou a trabalhar ali em 1972. Em 1997 comprou-a com outros dois diretores, José Antunes Sobrinho e Gerson de Mello Almada. Fundada em 1965, a Engevix nasceu com a missão de fazer projetos para a Servix Engenharia, empreiteira especializada em obras de hidrelétricas. Isso porque a legislação de 1964 impedia as empresas de atuar tanto na elaboração do projeto quanto na construção.
Nos primeiros anos de vida, a Engevix fez projetos de engenharia das hidrelétricas do Paranapanema e Jurumirim (SP), além de subestações, linhas de transmissão e obras de irrigação. A Engevix Engenharia faz parte do Grupo Engevix, formado por mais cinco empresas que atuam em diferentes áreas de negócios: a Engevix Engenharia S.A. opera nas áreas de energia, indústria e infraestrutura; a Desenvix Energias Renováveis S.A. desenvolve empreendimentos e investe no setor de energia renovável; a Ecovix – Engevix Construções Oceânicas S.A. atua em construção naval e instalações off shore para a indústria de óleo e gás; a Infravix Empreendimentos S.A. dedica-se à infraestrutura em obras de transporte, saneamento básico e desenvolvimento imobiliário; a Engevix Sistemas de Defesa Ltda. trabalha com a demanda dos grandes projetos na área de defesa do Brasil; a Engevix Construções Ltda. atende às demandas de construção do Grupo Engevix, trabalha em paralelo com a Engevix Engenharia e possui contratos próprios, prestando serviços a outras empresas.
A CNEC – WorleyParson
A CNEC foi criada em 1959 por um grupo de professores da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo. Em 1969, foi adquirida pelo Grupo Camargo Corrêa e passou a projetar boa parte das hidrelétricas construídas pela empreiteira. Ao lado da Engevix, ela foi uma das principais empresas projetistas de engenharia do país durante a ditadura militar. “O amordaçamento de mecanismos fiscalizadores, como a imprensa, o Parlamento e parte da sociedade civil, permitia aos empreiteiros maximizar seus lucros com práticas ilícitas e tocar obras com rapidez, agilidade e sem preocupação com os impactos do empreendimento”, afirma Pedro Henrique Pedreira Campos, na tese de doutorado apresentada na Universidade Federal Fluminense: “A ditadura dos empreiteiros: as empresas nacionais de construção pesada, suas formas associativas e o Estado ditatorial brasileiro, 1964-1985”.
No mesmo estudo, realizado em 2012, ele ainda observa: “Nos últimos dez anos, fomos surpreendidos com a retomada de vários projetos encetados no período ditatorial, além de empreendimentos novos que reproduzem certas características daquele modelo de desenvolvimento. Assim, vimos a retomada da construção das grandes centrais hidrelétricas – como Belo Monte, projetada na ditadura, e as usinas do rio Madeira, de projeto final mais recente –, com seu grande impacto sócio-ambiental”.
Em 1980, a CNEC começou a prestar serviços na área ambiental. Ainda na década de 1980, fez o mapeamento de projetos de construção de usinas em diversos afluentes do rio Amazonas, incluindo os rios Xingu e Tapajós.
Em 2010, a CNEC foi adquirida pelo grupo australiano WorleyParsons, consultoria de energia que atua em 45 países nos cinco continentes. Mesmo passando para as mãos de outro grupo econômico, a CNEC permaneceu com projetos no Xingu e Tapajós. Ela foi contratada pela Norte Energia para a implantação e gerenciamento de programas socioambientais da usina hidrelétrica de Belo Monte, no Xingu. Também foi a CNEC WorleyParsons Engenharia a responsável por elaborar o EIA/Rima da usina São Luiz do Tapajós, finalizados ano passado.
O documento feito pela empresa no Tapajós, no entanto, não convenceu o Ibama. O órgão apontou diversas falhas no estudo, em avaliações divulgadas entre novembro de 2014 e o início de março. Para ter uma ideia, durante a análise realizada, o Ibama detectou até mesmo informações controversas. No decorrer do texto do EIA, a empresa, de acordo com o instituto, informou dados diferentes da área preventiva de desmatamento e limpeza do reservatório. O órgão solicitou à Eletrobrás a reformulação do estudo e apontou mais de 180 pontos que precisam ser aprofundados. Um detalhamento maior sobre o modo de vida, infraestrutura, educação, segurança e pesca nas áreas diretamente afetadas pelo projeto estão entre os citados. A CNEC Engenharia WorleyParsons preferiu não comentar o caso.
As falhas nos estudos ambientais da usina de São Luiz do Tapajós não são um caso isolado no histórico da CNEC. Ainda integrante do Grupo Camargo Corrêa, em 2006, a empresa foi denunciada em um esquema de fraude e manipulação nos estudos de impacto ambiental da usina hidrelétrica de Mauá, no rio Tibagi (PR) – a empresa, vencedora da concorrência em 2008, fez também a revisão dos estudos de inventário da bacia hidrográfica do rio Tibagi. Com investimentos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), do governo federal, e financiada pelo BNDES, a obra da usina de Mauá custou R$ 1,4 bilhão.
Em depoimento ao MPFPR, técnicos responsáveis pelo levantamento do EIA/Rima constaram que a CNEC adulterou as informações do texto final do relatório entregue ao IAP, órgão responsável pelo licenciamento. Os especialistas trabalhavam para a Igplan – Inteligência Geográfica Ltda., contratada pela CNEC para fazer o levantamento.
Os trabalhos dos técnicos, após interrupção de dois anos, foram levados a cabo em julho de 2004. De acordo com a ação civil pública impetrada pelo MPF, a empresa tinha três meses para concluir os trabalhos. Isso porque se pretendia incluir o empreendimento no leilão previsto inicialmente para janeiro de 2005 (mas que acabou ocorrendo em dezembro).
Com o prazo reduzido, a CNEC passou a acompanhar os trabalhos dia e noite e colocou uma funcionária para revisar os textos e alterar o conteúdo dos trabalhos técnicos, “muitas vezes em desacordo com seus atores”, diz a ação. Em depoimento ao procurador-geral do estado do Paraná, João Akira Omoto, a antropóloga contratada pela Igplan para fazer o levantamento de impactos sobre populações indígenas, Maria Fernanda Campelo Maranhão, alegou que aguardava o texto final do EIA/Rima quando foi informada de que seu trabalho não seria incluído, a pedido da CNEC. Ela foi procurada por um funcionário do Departamento de Meio Ambiente da empresa para assinar um resumo do seu trabalho, de aproximadamente três páginas. “[…] a declarante se negou ao proposto pela empresa CNEC, tendo dito que um resumo não atenderia a complexidade da questão antropológica; que apenas entregaria o texto integral do seu trabalho”, registra o procurador.
O biólogo Euclides Selvino Grando Jr., responsável pela consolidação dos dados levantados pela equipe técnica da Igplan, declarou ao MPF que houve alterações nos dados do EIA/Rima na sua parte. No depoimento, ressaltou que um dos resultados do levantamento determinou que “com a construção da barragem deveriam ser localmente extintas espécies como o dourado e o pintado, que constam na lista paranaense de espécies ameaçadas de extinção”. De acordo com Grando Jr., o texto foi substituído por outro que desvaloriza essas espécies no contexto nacional, mencionando tratar-se de espécies de grande distribuição geográfica e omitindo a ameaça da extinção local.
Segundo ele, em dois momentos ocorreram alterações ou interferências nos resultados do trabalho: “No primeiro momento, as interferências dessa apontada funcionária da CNEC na fase de consolidação dos textos e, em um segundo momento, as alterações verificadas nos textos entregues”, afirmou. O biólogo contou que, em reunião com representantes da CNEC em São Paulo, ouviu que os trabalhos apresentados não atendiam ao padrão CNEC e que o texto ou a avaliação de impactos feita pela equipe não interessavam ao empreendedor. Dos 17 impactos relacionados pelos estudiosos dos peixes, apenas três foram mantidos no documento final ou EIA/Rima, de acordo com ele.
O mesmo ocorreu com os dados apresentados pelo biólogo especialista em biologia vegetal Alexandre Uhlmann, que também constatou que parte do seu relatório foi omitida no EIA. Ele descreveu 14 impactos positivos e negativos, mas alguns foram omitidos e outros, minimizados. Ao MPF, o biólogo ornitólogo Marcos Ricardo Borsnschein declarou que o trabalho apresentado pelo IAP é “completamente diferente” do desenvolvido por ele. Segundo Marcos, o trabalho do EIA entregue ao órgão ambiental “é paupérrimo dado que as consultas bibliográficas foram restritas a menos de 10 fontes”, e ele havia levantado mais de 90 fontes de informações sobre aves na bacia do rio Tibagi. O relatório diz que ele esteve em campo três dias, mas Marcos afirmou ter ficado na região atingida por 24 dias. Ainda segundo o biólogo, o EIA apontou apenas uma espécie ameaçada de extinção, enquanto ele elencou cinco.
Devido a isso, a CNEC Engenharia foi multada em R$ 40 milhões por danos coletivos. Além dela, o deputado estadual Rasca Rodrigues (PV) chegou a ser condenado, em primeira instância, à perda de mandato por ter ocupado, simultaneamente, dois cargos públicos durante a liberação do licenciamento da usina, em 2005: presidente do IAP (e membro conselho fiscal da Copel, empresa majoritária no consórcio construtor da hidrelétrica). Em 2013, o político conseguiu reverter a decisão. A reportagem entrou em contato com a Camargo Corrêa, que ficou responsável pelo passivo, mas não obteve retorno.
A CNEC elaborou também os estudos ambientais das hidrelétricas Baguari (MG), Estreito (TO/MA), Itá (RS/SC), Tijuco Alto (SP/PR) e Segredo (PR). Ainda na área de meio ambiente, a empresa fez o EIA/Rima do metrô de São Paulo, da rodovia Castelo Branco, no estado de São Paulo, e da ferrovia Norte-Sul, nos estados de Minas Gerais e Espírito Santo.
A CNEC já projetou mais de 60 usinas. Ela atua também nos setores de óleo e gás, mineração e transporte. Presta serviços de consultoria e gerenciamento de projetos que vão desde estudos de viabilidade até o início da operação do empreendimento.
A Leme Engenharia
“O governo constrói barragens com estudos apressados e incompletos, sem buscar entender as consequências da destruição da natureza para nossas vidas, autorizando o funcionamento das barragens sem dar uma resposta aos indígenas de como seguirão suas vidas sem peixe, sem água, sem caça. Tenta esconder seus impactos negativos sobre nossas vidas, nossos rios e nossos territórios. O governo não traz informações que entendemos, nas nossas aldeias e nas nossas línguas, não oferece alternativas para a nossa sobrevivência física e cultural. O governo federal não tem respeitado o nosso direito a consulta e consentimento livre, prévio e informado, garantido pela Constituição Federal e pela Convenção 169 da OIT, antes de tomar suas decisões políticas sobre a construção de barragens no rio Teles Pires. Jamais fomos consultados ou demos nosso consentimento para a destruição de nossos rios, nossas florestas e nossos lugares sagrados, como a cachoeira de Sete Quedas e o Morro do Macaco.” Essas palavras fazem parte de uma carta dos povos indígenas Apiaká, Kayabi e Munduruku, do baixo Teles Pires, e Rikbaktsa, do baixo Juruena, publicada em abril. No documento, eles exigem que se cumpra a consulta sobre os projetos hidrelétricos em curso.
Segundo o Ministério Público do Pará, os impactos sobre esses povos nem sequer foram citados no EIA/Rima, de autoria da Leme Engenharia em consórcio com a Concremat, que serviu para o Ibama emitir a licença prévia e de instalação da usina hidrelétrica de Teles Pires, no Mato Grosso. “É fato que a UHE Teles Pires vai impactar os povos indígenas Kayabi, Apiaká e Mundurukui. Ocorre que o Ibama aceitou o EIA/Rima e emitiu Licença Prévia (LP) e Licença de Instalação (LI) da usina, respectivamente, sem o Estudo de Componente Indígena (ECI), parte integrante do EIA/Rima. Vale dizer, os impactos sobre os povos indígenas não foram mensurados. O Estudo de Componente Indígena (ECI) está previsto no Termo de Referência, emitido pelo próprio Ibama. Há evidências concretas de danos iminentes e irreversíveis para a qualidade de vida e patrimônio cultural dos povos indígenas”, aponta a denúncia feita pelo MPF.
A hidrelétrica contou com financiamento do BNDES de R$ 2,8 bilhões. A construção da usina começou em agosto de 2011 e 98% das obras já foram concluídas. De acordo com os índios, na carta-manifesto, “as barragens de Teles Pires já mataram toneladas de peixes e milhares de animais”. Eles contam ainda que não conseguem mais pescar com arco e flecha, por causa da água suja, e que os problemas de saúde estão aumentando devido à contaminação da água.
No rio Madeira, em Rondônia, as usinas de Santo Antônio (R$ 6,13 bilhões financiados pelo BNDES) e Jirau (R$ 9,5 bilhões financiados pelo BNDES), que entraram em operação em 2012 e 2013, respectivamente, também acumulam processos contestando os estudos de impacto ambientais e sociais assinados pela Leme.
Em fevereiro de 2014, a Justiça Federal determinou que os consórcios Santo Antônio Energia e Energia Sustentável do Brasil, responsáveis pela construção das duas usinas, refizessem o EIA/Rima depois de uma enchente histórica no rio Madeira. A decisão atendeu a uma ação civil pública movida pelo Ministério Público Federal e Estadual de Rondônia, pelas Defensorias Públicas da União e do Estado e da Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional de Rondônia. “Neste momento de crise, é fato notório que a área de influência direta dos lagos dos AHE ultrapassou e muito as previsões dos estudos realizados pelos consórcios. Dizem os empreendimentos que se trata de enchente que, segundo seus cálculos, remete a um tempo de recorrência de 100 anos, daí os impactos vivenciados na infraestrutura regional, na floresta que margeia os reservatórios, nas comunidades ribeirinhas, nos reassentamentos, etc.”, diz o MPF na ação . A empresa Energia Sustentável afirmou que não comenta as ações ajuizadas. A Santo Antônio Energia respondeu que atendeu a determinação do Ibama e do Judiciário e incorporou novos dados aos estudos do EIA/Rima. “Prontamente, e respeitando os prazos determinados judicialmente, a Santo Antônio Energia encaminhou os dados complementares ao juiz da 5ª Vara Federal de Porto Velho, que englobam novos levantamentos topobatimétricos, detalhamento da área afetada na BR 364 e da Área de Preservação Permanente (APP) do distrito de Jacy-Paraná. Juntamente com estas informações, a empresa encaminhou algumas proposições de ações que buscam evitar ou amenizar impactos nestas áreas, caso uma nova cheia semelhante à de 2014 venha a ocorrer”, acrescentou a empresa. Já a Leme Engenharia não retornou aos pedidos de informação, assim como o Ibama.
A Leme Engenharia esteve à frente também do EIA/Rima da maior hidrelétrica do país, a de Belo Monte. Os estudos ambientais da usina contam ainda com a participação da Themag Engenharia, da Engevix Engenharia e da Intertechne, responsáveis pelos estudos de comunidades em terras e áreas indígenas.
O MPF do Pará já ajuizou 23 ações contra Belo Monte. De acordo com informações da Procuradoria, há problemas com o estudo de viabilidade da hidrelétrica, com o procedimento de licenciamento ambiental e com o EIA da obra. Segundo o MPF do Pará, o próprio Ibama identificou que o EIA/Rima entregue pela Norte Energia deixou de apresentar documentos importantes, como estudos de qualidade da água e informações sobre populações indígenas, mas aceitou os relatórios técnicos. “Os estudos do licenciamento restaram prejudicados e, consequentemente, não se tem a real dimensão dos impactos sociais, étnicos, ambientais e econômicos que serão causados na região pelo empreendimento”, alertou o órgão ao Judiciário. A Leme fez também estudos ambientais das hidrelétricas de Capim Branco I e II, Dardanelos, Salto Caxias e São Manoel.
Além de elaborar estudos de impacto ambiental, a empresa atua nos setores de hidroenergia, geração térmica, energias renováveis (biomassa, eólica e solar), sistemas eletrônicos (subestações, linhas de transmissão e telecomunicações associadas aos sistemas de transmissão), gás, edificações complexas, transporte (ferrovias, hidrovias), portos e drenagem urbana. Ela desenvolve e gerencia as obras, atuando desde as fases preliminares de estudos e projetos até a implantação final do empreendimento.
A Leme Engenharia foi fundada no mesmo ano da Engevix, durante o regime militar, em 1965. Ela nasceu com a função de desenvolver os projetos básico e executivo das usinas hidrelétricas de Mascarenhas, no Espírito Santo, e de Volta Grande, em Minas Gerais, para a Cemig, empresa de energia de Minas Gerais. Em 2000, a Leme foi adquirida pela Tractebel Engineering, que tem sede em Bruxelas, na Bélgica, e atua na América Latina, Europa, África e Ásia.
A Tractebel integra o grupo francês GDF Suez – que no início de maio passou a se chamar Engie –, um dos maiores grupos de energia e infraestrutura do mundo.
Para MPF, interesse econômico prevalece
O MPF comprovou, em levantamento feito em 2004, que nos estudos de impacto ambiental prevalecem os aspectos econômicos sobre os ambientais. O diagnóstico, intitulado “Deficiências em Estudos de Impacto Ambiental”, apontou falhas em 12 EIAs de usinas hidrelétricas que resultaram em impactos ambientais não previstos, insuficiência na mitigação de impactos e conflitos entre o empreendedor e a população.
Segundo o MPF, o levantamento mostra que os estudos tendem a privilegiar os aspectos positivos dos empreendimentos. “Esta é uma falha grave em um documento que deve tratar a matéria com o máximo de imparcialidade, visto que o seu objetivo não poderia ser a viabilização, a qualquer preço, de um empreendimento, mas, sobretudo, informar com clareza à sociedade os benefícios e os ônus previsíveis.”
De acordo com o diagnóstico, os benefícios do empreendimento são muitas vezes afirmados sem clara fundamentação, quando não superestimados. “Sem uma coerência interna, o Estudo de Impacto Ambiental deixa de situar-se na esfera da prevenção de danos ambientais para se tornar apenas um documento formal no processo de licenciamento ambiental. Ao não identificarem e analisarem suficientemente os potenciais impactos dos empreendimentos, os Estudos deixam de revelar a equação completa de benefícios e ônus”, diz o documento.
Ao longo de todo o período de análise, não foi encontrado nenhum estudo em que os autores concluíram pela inviabilidade ambiental do empreendimento. Foi verificado que, desde a fase de elaboração do EIA até a fase de execução de medidas mitigadoras e de programas de monitoramento, prevalece a preocupação com os investimentos, “o que pode levar à adoção de soluções que representem menor aplicação de recursos”.
O relatório do MP mostrou também que os prazos para a realização de pesquisas de campo são insuficientes. “Em alguns casos, os próprios autores dos diagnósticos reconhecem nos textos as limitações de tempo para pesquisa primária.”
O órgão apontou ainda como deficiência dos estudos ambientais a apresentação de informações inexatas, imprecisas ou contraditórias. “Há casos em que os Estudos citam espécies reconhecidamente inexistentes na região”, conclui. No EIA da UHE Estreito, no rio Tocantins (TO/MA), realizado pela CNEC Engenharia, foi mencionada a possibilidade de ocorrência da ararinha-azul em savanas nos estados do Maranhão e Tocantins, apesar de a espécie ser considerada extinta pelo Ibama.
Para o ambientalista e conselheiro da Associação de Preservação do Meio Ambiente e da Vida (Apremavi) Wigold Schaffer, quando o processo de elaboração do Eia/Rima é iniciado, já “é sinal de que a obra será aprovada”. “O Eia/Rima tornou-se um instrumento de viabilização da obra. É tudo um faz de conta”, diz Schaffer, que acompanhou o alagamento da floresta de araucária pela usina de Barra Grande com “uma sensação de tristeza e de muita indignação”.
Ele reitera que o licenciamento deveria ser um instrumento de análise séria dos impactos ambientais, apontando possibilidades de diminuir ou precaver os impactos. “Quando não há como fazer a mitigação, o EIA/Rima deveria negar a obra, o que não acontece.”
Segundo ele, um dos pontos mais graves do licenciamento ambiental está na lei que permite que o empreendedor contrate o EIA/Rima. “Os estudos deveriam ser contratados de forma independente, pelo poder público.” De acordo com o ambientalista, os órgãos ambientais fecham os olhos para os impactos. “O Ibama tinha a obrigação de fazer a vistoria adequada, verificando se as informações apontadas são verdadeiras. Como não viram, por exemplo, que a empresa estava escondendo 6 mil hectares de floresta?”
Doações eleitorais
O confronto de interesses, que coloca em xeque o atual sistema de licenciamento ambiental no Brasil, não para por aí. Nas campanhas eleitorais, as mesmas empresas que deveriam executar estudos de impacto ambiental imparciais fizeram doações para parlamentares ruralistas. Entre as eleições de 2004 e 2014, juntas, as três investiram quase 26 milhões em diversos comitês partidários e candidaturas pelo Brasil afora. Os principais partidos beneficiados foram: PT, PSDB e PMDB. Nas duas últimas eleições nacionais (2014 e 2010), pelo menos quatro deputados da bancada ruralista foram agraciados: Espiridião Amin (PP-SC), Nelson Marchezan Júnior (PSDB-RS), Arnaldo Jardim (PPS-SP), que se licenciou do mandato para assumir o cargo de secretário de Estado de Agricultura e Abastecimento de São Paulo, e Luiz Fernando Farias (PP-MG).
Em 2014, a candidatura de Dilma Rousseff recebeu R$ 1,5 milhão da Engevix. A empresa investigada pela Lava-Jato investiu mais de R$ 7,6 milhões em doações para 13 partidos no ano passado. Já a Leme investiu 380 mil em candidatos ao governo e ao Congresso nas últimas eleições.
(Vejo o infográfico no link original da reportagem)
Essa reportagem é resultado do concurso de microbolsas para reportagens investigativas sobre Energia promovido pelo Greenpeace em parceria com a Agência Pública. Leia também a reportagem “A agonia de Salto da Divisa“.
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A arte de ignorar a natureza - Instituto Humanitas Unisinos - IHU