14 Julho 2015
A costumeira conversa do papa com os jornalistas durante o voo de retorno a Roma, desta vez a partir da América Latina, durou cerca de uma hora. Foram muitas as perguntas. O papa respondeu às primeiras três perguntas em espanhol e as seguintes em italiano. E brincou que também poderiam ser feitas até em guarani, uma das línguas oficiais do Paraguai.
A entrevista foi publicada no sítio da Radio Vaticana, 13-07-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis a entrevista.
Aníbal Velásquez (ABC Color) – Santidade. Sou Aníbal Velázquez, do Paraguai. Nós lhe agradecemos porque elevou o Santuário de Caacupé como basílica. Mas, no Paraguai, as pessoas se perguntam: por que o Paraguai não tem cardeal? Qual é o pecado do Paraguai, para que não tenha cardeal? Ou, em todo o caso, ainda está longe de ter um cardeal?
Bem, não ter cardeal não é um pecado (risos). A maioria dos países do mundo não tem cardeais. A maioria. Ou seja, as nacionalidades dos cardeais, não me recordo quantas são, mas são uma minoria em relação com o todo o conjunto. É verdade, o Paraguai não teve nenhum cardeal até agora. Eu não saberia lhe dar a razão. Às vezes, para a escolha de cardeais, equilibram-se, leem-se, estudam-se os arquivos de cada um, vê-se a pessoa, o carisma, sobretudo do cardeal, que deveria ser o de aconselhar o papa e ajudar o papa no governo universal da Igreja. O cardeal, embora pertença a uma Igreja particular, é – e daí a palavra – incardinado na Igreja de Roma e tem que ter uma visão universal. Isso não quer dizer que no Paraguai não existem bispos que a tenham. Podem tê-la, mas, como sempre, é preciso escolher até um certo número – não se pode designar mais do que 120 cardeais eleitores – então, deve ser por isso. A Bolívia teve dois. O Uruguai teve dois – [Antonio María] Barbieri e o atual [Daniel Sturla]. Alguns países centro-americanos também não tiveram.
Mas não é nenhum pecado, e tudo depende das circunstâncias, das pessoas, do carisma para ser incardinado. E isso não quer dizer um menosprezo ou que os bispos paraguaios não têm valor. Há bispos paraguaios geniais. Eu me lembro dos dois Bogarín que fizeram história no Paraguai [Juan Sinforiano Bogarín (1863-1949) e Ramón Bogarín Argaña (1911-1976)]. Por que não foram cardeais? Bem, não foram. Não é uma ascensão, não é verdade? Eu me faço outra pergunta: o Paraguai merece ter um cardeal, se olharmos para a Igreja do Paraguai? Eu diria: mereceria ter dois, mas é pela outra razão, não tem nada a ver com os méritos. É uma Igreja viva, uma Igreja alegre, uma Igreja lutadora e com uma história gloriosa.
Priscila Quiroga (Cadena A) e Cecilia Dorado Nava (El Deber, Bolívia) – Vossa Santidade, por favor, interessa-nos conhecer o seu critério sobre se considera justo o anseio dos bolivianos de ter uma saída soberana para o mar, de voltar a ter uma saída soberana ao Oceano Pacífico. E, Santo Padre, no caso de o Chile e a Bolívia pedirem a sua mediação, o senhor aceitaria?
A questão da mediação é uma coisa muito delicada e seria como um último passo. Isto é, a Argentina viveu isso com o Chile e foi realmente para evitar uma guerra. Foi uma situação muito limite e muito bem conduzida por aqueles que a Santa Sé encarregou – por trás dos quais sempre estava São João Paulo II se interessando – e com a boa vontade dos dois países, qye disseram: "Tentemos se isso vai dar certo". E é curioso, houve um grupo, ao menos na Argentina, que nunca quis essa mediação, e, quando o presidente Alfonsín fez o plebiscito sobre se se aceitava a proposta de mediação, obviamente, a maioria do país disse que sim, mas houve um grupo que resistiu. Sempre quando se faz uma mediação, dificilmente todo o país estaria de acordo, mas é a última instância. Sempre há outras figuras diplomáticas que ajudam nesse caso, facilitadores etc.
Neste momento, eu tenho que ser muito respeitoso com isso, porque a Bolívia fez um recurso a um tribunal internacional. Então, se eu, neste momento, faço um comentário – eu sou chefe de um Estado –, poderia ser interpretado como intromissão ou uma pressão, ou algo assim. Tenho que ser muito respeitoso com a decisão tomada pelo povo boliviano que fez esse recurso. Eu também sei que houve instâncias anteriores de querer dialogar. Não tenho muita clareza. A pessoa que me disse algo desse estilo, que se estava perto de uma solução, foi nos tempos do presidente chileno Lagos, mas disse sem ter dados exatos. Foi um comentário que me foi feito pelo cardeal Errázuriz. Assim, eu não gostaria de dizer uma 'bobagem' [macana] sobre isso.
Também uma terceira coisa que eu quero deixar clara. Eu, na Catedral da Bolívia, toquei esse tema de uma maneira muito delicada, tendo em conta a situação do recurso ao tribunal internacional. Recordo perfeitamente o contexto: "Os irmãos têm que dialogar, os povos latino-americanos têm que dialogar para criar a pátria grande, o diálogo é necessário". Aí me detive, fiz um silêncio e disse: "Penso no mar". E continuei: "Diálogo e diálogo". Creio que deixei claro que a minha intervenção foi uma recordação desse problema, mas respeitando a situação como está proposta agora. Estando em um tribunal internacional, não se pode falar de mediação nem de facilitação. É preciso esperar.
É justo ou não o anseio dos bolivianos?
Sempre há uma base de justiça quando há mudança de limites territoriais e, sobretudo, depois de uma guerra. Há uma revisão contínua disso. Eu diria que não é injusto se propor algo desse tipo, esse anseio. Eu recordo que, em 1961, estando no primeiro ano de filosofia, passaram-nos um documentário sobre a Bolívia – um padre que tinha vindo da Bolívia –, e eu acho que se chamava As 12 estrelas. Quantas províncias têm a Bolívia? (Respondem-lhe que são nove departamentos.) Então se chamava As 10 estrelas. E apresentava cada um dos nove departamentos e, no fim, o décimo departamento, e se via o mar sem nenhuma palavra. Isso ficou gravado em mim, isso foi no ano 1961. Ou seja, vê-se que há um anseio. Claro, depois de uma guerra desse tipo, surgem as perdas, e creio que é importante, primeiro, o diálogo, a saudável negociação. Agora, neste momento, o diálogo está parado, obviamente, por causa desse recurso a Haia.
Fredy Paredes (Teleamazonas, Equador) – Vossa Santidade, boa noite, muito obrigado. O Equador esteve convulsionado antes da sua visita. Depois que o senhor abandonou o país, voltaram as pessoas que fazem oposição ao governo a sair às ruas. Parece que a sua presença no Equador quer ser utilizada politicamente, especialmente pela frase que o senhor pronunciou: "O povo do Equador se pôs de pé com dignidade". Eu lhe pergunto de maneira pontual, se é que é possível: a que essa frase responde? O senhor simpatiza com o projeto político do presidente Correa? O senhor acredita que as recomendações gerais que o senhor deu na visita ao Equador, visando a alcançar o desenvolvimento, o diálogo, a construção da democracia, e não a continuar com a política do descarte, como o senhor a denomina, já é praticada no Equador?
Evidentemente, eu sei que havia problemas políticos e greves, eu sei disso. Não conheço os meandros da política do Equador, e seria tolice da minha parte que eu desse uma opinião. Depois, me disseram que houve como que um parêntese durante a minha visita, pelo qual eu agradeço, porque é um gesto de um povo de pé, respeitar a visita do papa. Agradeço e valorizo isso. Agora, se as coisas voltam, evidentemente os problemas e as discussões políticas continuam. Com relação à frase que você diz, eu me refiro à maior consciência que o povo equatoriano foi tomando do seu valor. Houve uma guerra limítrofe com o Peru, não faz muito tempo. Há histórias de guerra. Depois, uma maior consciência da variedade de riqueza étnica do Equador. E isso dá dignidade.
O Equador não é um país de descarte, ou seja, refere-se a todo o povo e a toda a dignidade desse povo, que, depois da guerra limítrofe, se pôs de pé e tomou cada vez mais consciência da sua dignidade e da riqueza da unidade na variedade que tem. Ou seja, não se pode atribuir a uma situação concreta.Porque essa mesma frase – me comentaram, eu não vi – foi instrumentalizada para explicar ambas as situações: que o governo pôs o Equador de pé ou que os contrários ao governo se puseram de pé. Uma frase pode ser instrumentalizada, e nisso eu creio que é preciso ser muito cuidadoso. E eu lhe agradeço a pergunta, porque é uma maneira de ser cuidadoso. Você está dando um exemplo de ser cuidadoso.
Se vocês me permitem – isso, como não me perguntaram, são cinco minutos a mais de concessão que eu lhes dou, se fizerem falta –, é muito importante no trabalho de vocês a hermenêutica de um texto. Um texto não pode ser interpretado com uma frase. A hermenêutica tem que ser em todo o contexto. Há frases que são justamente a chave da hermenêutica, e há frases que não são, que são ditas de passagem ou são plásticas. Então, ver todo o contexto, ver a situação, inclusive ver a história. Ver a história desse momento ou, se estamos falando do passado, interpretar um fato do passado com a hermenêutica desse tempo. Ou seja, as Cruzadas: interpretemos as Cruzadas com a hermenêutica como se pensava nesse tempo. É chave interpretar um discurso, qualquer texto, com uma hermenêutica totalizante, não isolada. Perdoem-me, não estou brincando de "professor Sabe-Tudo". Mas eu digo isso como ajuda para vocês. Muito obrigado. Agora, passemos ao guarani (risos).
Stefania Falasca (Avvenire) – No discurso que o senhor fez na Bolívia aos movimentos populares, o senhor falou do novo colonialismo e falou da idolatria do dinheiro que submete a economia, e da imposição dos meios de austeridade que sempre apertam, como o senhor disse, o cinto dos pobres. Agora, há semanas, nós, na Europa, temos esse caso da Grécia e do destino da Grécia que corre o risco de sair da moeda europeia: o que o senhor pensa do que está acontecendo na Grécia e que também diz respeito a toda a Europa?
Acima de tudo, sobre a minha intervenção no congresso dos movimentos populares: é o segundo. O primeiro foi feito no Vaticano, na Aula Velha do Sínodo, havia cerca de 120 pessoas. É algo organizado pelo [Pontifício Conselho] Justiça e Paz. Eu estou perto disso, porque é um fenômeno em todo o mundo, em todo o mundo. Também no Oriente, nas Filipinas, na Índia, na Tailândia. São movimentos que se organizam entre si não só para fazer um protesto, mas também para seguir em frente e poder viver. E são movimentos que têm força, e essas pessoas, que são tantas e tantas, não se sentem representadas pelos sindicatos, porque dizem que os sindicatos agora são uma corporação, não lutam – agora estou simplificando um pouco –, mas a ideia de muitas dessas pessoas é que eles não lutam pelos direitos dos mais pobres. E a Igreja não pode ser indiferente. A Igreja tem uma Doutrina Social e dialoga com esse movimento, e dialoga bem. Vocês viram o entusiasmo de sentir que a Igreja não está longe de nós, a Igreja tem uma doutrina que nos ajuda a lutar por isso. É um diálogo. Não é que a Igreja faz uma opção pelo caminho anárquico. Não, eles não são anárquicos: eles trabalham, tentam fazer muitos trabalhos, também com os resíduos, com as coisas que sobram. São trabalhadores de verdade. Essa é a primeira coisa, a importância disso.
Depois, sobre a Grécia e o sistema internacional: eu tenho uma grande alergia à economia, porque o papai era contador e, quando não acaba o trabalho na fábrica, ele o trazia para casa, no sábado e no domingo, com aqueles livros, daqueles tempos, em que os títulos eram escritos em gótico... E trabalhava, e eu via o papai... E tenho uma alergia. Eu não entendo bem como é a coisa, mas certamente seria simples dizer: a culpa é apenas desta parte. Os governantes gregos que levaram adiante essa situação de dívida internacional também têm uma responsabilidade. Com o novo governo grego, chegou-se a uma revisão um pouco justa. Eu espero – é a única coisa que eu posso lhe dizer, porque não sei bem... – que encontrem um caminho para resolver o problema grego e também um caminho de supervisão para que outros países não caim no mesmo problema, e que isso nos ajude a ir em frente, porque esse caminho do empréstimo e das dívidas, no fim, não termina nunca.
Disseram-me que, há um ano, mais ou menos, mas não sei se... esta é uma coisa que eu ouvi... que havia um projeto nas Nações Unidas (se algum de vocês sabe disso, seria bom que explicasse), havia um projeto para o qual um país pode se declarar em falência, que não é o mesmo que o default, mas é um projeto que eu ouvi e que não sei como foi, se era verdade ou não. Digo isso para ilustrar como uma coisa que eu ouvi, mas se uma empresa pode fazer uma declaração de falência, por que um país não pode fazê-la, e assim se vai à ajuda dos outros? Esses eram os fundamentos desse projeto, mas sobre isso eu não posso dizer mais nada. Depois, quanto às novas colonizações: evidentemente, vão todas sobre os valores. A colonização do consumismo. O hábito do consumismo foi um progresso de colonização. Porque é o hábito: leva você a um hábito que não é o seu e também desequilibra a sua personalidade. O consumismo também desequilibra a economia interna e a justiça social, e também a saúde física e mental, apenas para dar um exemplo.
Anna Matranga (CBS News) – Vossa Santidade, uma das mensagens mais fortes dessa viagem foi que o sistema econômico global muitas vezes impõe a mentalidade do lucro a todo o custo, em detrimento dos pobres. Isso é percebida pelos estadunidenses como uma crítica direta do seu sistema e do seu modo de vida. Como o senhor responde a essa percepção? E qual é a sua avaliação do impacto dos Estados Unidos no mundo?
O que eu disse, essa frase, não é nova. Eu a disse na Evangelii gaudium: "Essa economia mata". Dessa frase eu me lembro bem, há um contexto. E eu a disse na Laudato si'. A crítica não é uma coisa nova, como se sabe. Ouvi que algumas críticas foram feitas nos Estados Unidos. Eu ouvi isso. Mas eu não as li e não tive o tempo para estudá-las bem, porque cada crítica deve ser recebida e estudada, para, depois, fazer o diálogo. Você vai me perguntar o que eu penso, mas, se eu não dialoguei com aqueles que fazem as críticas, eu não tenho o direito de fazer um pensamento assim, isolado do diálogo. Isso é o que eu tenho a dizer.
O senhor agora vai aos Estados Unidos. Tem uma ideia de como será recebido, tem algum pensamento sobre a nação...
Não, devo começar a estudar agora, porque até hoje eu estudei esses três países belíssimos, que são uma riqueza e uma beleza. Agora, devo começar a estudar Cuba, porque vou para lá dois dias e meio, e depois os Estados Unidos, as três cidades do Leste – porque ao Oeste eu não posso ir –, Washington, Nova York e Filadélfia. Sim, devo começar a estudar essas críticas e, depois, dialogar um pouco.
Aura Vistas Miguel – Santidade, o que sentiu quando viu aquela foice e martelo com Cristo em cima, oferecido pelo presidente Morales? E onde acabou esse objeto?
É curioso, eu não conhecia isso e nem sabia que o padre Espinal era escultor e poeta até. Soube disso nestes dias. Quando o vi, para mim, foi uma surpresa. Segundo, pode-se qualificar como o gênero da arte de protesto. Por exemplo, em Buenos Aires, há alguns anos, foi exibida uma mostra de um escultor bom, criativo, argentino, que agora está morto. Era arte de protesto, e eu recordo um Cristo crucificado em um bombardeiro que caía. Era uma crítica ao cristianismo aliado com o imperialismo, que bombardeia.
Então, primeiro, eu não sabia; segundo, eu o qualificaria como arte de protesto, que, em alguns casos, pode ser ofensivo. Em alguns casos. E terceiro, este caso concreto: o padre Espinal foi morto no ano de 1980. Era um tempo em que a teologia da libertação tinha muitos ramos. Um desses ramos propunha a análise marxista da realidade. O padre Espinal pertencia a isso. Eu sabia disso, sim, porque, nesses anos, eu era reitor na faculdade de teologia e se falava muito disso, os diversos ramos e os representantes.
No mesmo ano, o geral da Companhia de Jesus [Pe. Pedro Arrupe] mandou uma carta para toda a Companhia sobre a análise marxista da realidade na teologia. Um pouco freando isso e dizendo: isso não está bem, são coisas diferentes, não é justo, não está certo. E, quatro anos depois, em 1984, a Congregação para a Doutrina da Fé publicou o primeiro documento, pequeninho, uma primeira declaração sobre a teologia da libertação que critica isso. Depois, veio o segundo, que abriu as perspectivas mais cristãs (estou simplificando, hein). Ou seja, façamos a hermenêutica naquela época.
Espinal era um entusiasta dessa análise da realidade marxista e também da teologia usando o marxismo. Daí veio essa obra. As poesias de Espinal também era desse gênero de protesto, mas era a sua vida, era o seu pensamento, era um homem especial, com tanta genialidade humana e que lutava. Ele tinha boa fé. Fazendo uma hermenêutica desse tipo, eu entendo essa obra. Para mim, não foi uma ofensa, mas eu tive que fazer essa hermenêutica, e digo isso a vocês para que não haja opiniões equivocadas.
Onde ficou a cruz?
Eu a trago comigo. O presidente Morales quis me dar duas condecorações, a mais importante da Bolívia e a outra é a ordem do padre Espinal, uma nova ordem. Jamais aceitei uma honorificência, não sei, não me sinto bem. Mas ele fez isso com tanto vontade, com boa vontade e com o prazer de me dar um prazer, e eu pensei que isso vem do povo da Bolívia e rezei para saber o que fazer com isso. Se eu as levo ao Vaticano, vão parar no Museu, vão acabar aí, e ninguém jamais vai vê-las. Então, pensei em deixá-las à Nossa Senhora de Copacabana, a mãe da Bolívia, que vão para o santuário, ficarão no santuário. Ao contrário, o Cristo, eu trago comigo.
Anaïs Feuga – Durante a missa em Guayaquil, o senhor disse que o Sínodo devia fazer amadurecer um verdadeiro discernimento para encontrar soluções concretas para as dificuldades das famílias. E, depois, pediu que as pessoas rezassem para que até mesmo aquilo que nos parece impuro, nos escandaliza ou nos assusta, que Deus possa transformar em milagre, o senhor disse. Pode nos especificar a quais situações "impuras" ou "assustadoras" ou "escandalosas" o senhor se referia?
Aqui também eu farei a hermenêutica do texto. Eu estava falando sobre o milagre do bom vinho e disse que as ânforas de águas estavam cheias, mas eram para a purificação. Ou seja, cada pessoa que entrava naquela festa fazia a sua purificação e deixava as suas sujeiras espirituais. É um rito de purificação antes de entrar em uma casa, ou mesmo no templo. Um ritual que nós, agora, temos na água benta: permaneceu isso daquele rito judaico. Eu disse justamente que Jesus faz o melhor vinho com a água das sujeiras, do pior. Em geral, pensei em fazer este comentário: a família está em crise, todos nós sabemos disso, basta ler o Instrumentum laboris que vocês conhecem bem, porque foi apresentado, está lá. A tudo isto eu fazia referência, em geral: que o Senhor nos purifique dessas crises, de tantas coisas que estão descritas naquele livro do Instrumentum laboris. É uma coisa em geral, não pensei em nenhum ponto particular: que nos faça melhores, nos faça famílias mais maduras... melhores. A família está em crise, que o Senhor nos purifique e vamos em frente. Mas as particularidades dessa crise estão todas no Instrumentum laboris do Sínodo que acabou, e vocês o têm.
Javier Martínez Brocal (Rome Reports) – Santidade, muito obrigado por este diálogo que nos ajuda tanto pessoalmente e também no nosso trabalho. Faço a minha pergunta em nome também de todos os jornalistas de língua espanhola. Vimos como deu certo a mediação entre Cuba e os Estados Unidos. O senhor acha que se pode fazer algo semelhante em outras situações delicadas do continente latino-americano? Penso na Venezuela e também na Colômbia. Depois, uma curiosidade: penso no meu pai, que tem alguns anos a menos do que o senhor, mas tem a metade das energias. Vimos isso nesta viagem, vimos isso nesses dois anos e meio. Qual é o seu segredo?
Qual é a sua "droga", ele gostaria de perguntar... (risos). É, essa era a pergunta! (risos) O processo entre Cuba e os Estados Unidos não foi mediação. Não teve o caráter de mediação. Havia um desejo que tinha chegado. Por outro lado, também, desejo... E, depois, digo a verdade, isso foi em janeiro do ano passado, e depois se passaram três meses em que eu só rezava sobre isso, não me decidi: mas o que se pode fazer com esses dois, depois de mais de 50 anos que estão assim? Mas depois o Senhor me fez pensar em um cardeal. Ele foi lá, falou, e depois eu não soube de nada. Passaram-se meses, e, um dia, o secretário de Estado (que está aqui) me disse: "Amanhã teremos a segunda reunião com as duas equipes" – "Mas como ?" – "Sim, eles se falam, entre os dois grupos se falam e estão fazendo...". Foi sozinho, não foi mediação, foi a boa vontade dos dois países: o mérito é deles, são eles que fizeram isso. Nós não fizemos quase nada, apenas pequenas coisas, e, em meados de dezembro, foi anunciado. Essa é a história, de verdade, não há mais.
Preocupa-me neste momento que não pare o processo de paz na Colômbia. Isso eu tenho que dizer isso e espero que esse processo vá em frente, e, nesse sentido, nós estamos sempre dispostos a ajudar, de muitos modos de ajuda. Mas seria uma coisa ruim que não pudesse ir em frente. Na Venezuela, a Conferência Episcopal trabalha para fazer um pouco de paz, mas ali também não há nenhuma mediação. Na questão dos Estados Unidos, foi o Senhor e duas coisas por acaso, e depois foi em frente sozinho. Para a Colômbia, eu espero e rezo, e devemos rezar, para que não pare esse processo. É um processo que dura mais de 50 anos ali também, e quantos mortos! Ouvi dizer que são milhões. Sobre a Venezuela, não tenho mais nada a dizer para você. Ah... a "droga". Mas... o mate me ajuda, mas não provei a coca. Isso é claro, hein!
Ludwig Ring-Eifel (KNA) – Santo Padre, nesta viagem, ouvimos tantas mensagens fortes para os pobres, também tantas mensagens fortes, às vezes severas, para os ricos e os poderosos, mas uma coisa que ouvimos pouquíssimo foram mensagens para a classe média, isto é, as pessoas que trabalham, as pessoas que pagam os impostos, as pessoas normais, portanto. A minha pergunta é: por que no magistério do Santo Padre há tão poucas mensagens para essa classe média? E, se houvesse tal mensagem, qual seria?
Muito obrigado, é uma bela correção, obrigado! Você tem razão, é um erro da minha parte. Devo pensar sobre isso. Farei alguns comentários, mas não para me justificar. Você tem razão, eu devo pensar um pouco. O mundo é polarizado. A classe média torna-se menor. A polarização entre ricos e pobres é grande, isso é verdade, e talvez isso me levou a não levar em conta isso. Falo do mundo, alguns países não, vão muito bem, mas no mundo em geral a polarização se vê, e o número dos pobres é grande. Depois, por que eu falo dos pobres? Mas porque está no coração do Evangelho, e eu sempre falo a partir do Evangelho sobre a pobreza, embora seja sociológica. Depois, sobre a classe média, há algumas palavras que eu disse, mas um pouco en passant. Mas as pessoas simples, as pessoas comuns, o operário... esse é um grande valor. Mas eu acho que você me diz uma coisa que eu devo fazer, devo aprofundar mais o magistério sobre isso. Eu lhe agradeço pela ajuda, hein! Obrigado!
Vania De Luca (Rainews 24) – O senhor, nestes dias, insistiu na necessidade dos percursos de integração, de inclusão social, contra a mentalidade do descarte. Também defendeu projetos que vão nessa direção do viver bem. Embora o senhor já nos tenha dito que ainda deve pensar na viagem aos Estados Unidos, o senhor acha que vai tocar nesses temas na ONU, na Casa Branca? Pensava também nessa viagem quando falou dessas problemáticas?
Não, eu pensava apenas nesta viagem concreta e no mundo em geral. Mas a dívida neste momento dos países do mundo é terrível. Todos os países têm dívidas, e há um ou dois países que compraram as dívidas dos grandes países. É um problema mundial. Mas, com isso, não pensei particularmente na viagem para os Estados Unidos.
Courtney Walsh (Fox News) – Santidade, falamos um pouco de Cuba, aonde o senhor vai em setembro, antes de ir para os Estados Unidos, e do papel que o Vaticano teve na sua aproximação. Agora que Cuba terá um papel maior na comunidade internacional, na sua opinião, Havana deverá melhorar a sua reputação no respeito dos direitos humanos, incluindo a liberdade religiosa? E o senhor acredita que Cuba corre o risco de perder algo nessa nova relação com o país mais poderoso do mundo?
Mas os direitos humanos são para todos e não se respeitam os direitos humanos apenas em um ou dois países. Eu diria que em muitos países do mundo não se respeitam os direitos humanos, em tantos países do mundo! E o que Cuba perde e o que os Estados Unidos perdem? Todos os dois vão ganhar algo e vão perder algo, porque em uma negociação é assim. Mas o que todos os dois vão ganhar é a paz. Isso é certo. O encontro, a amizade, a colaboração: esse é o ganho. Mas o que vão perder, eu não consigo pensar, serão coisas concretas, mas sempre em uma negociação se ganha e se perde. Mas voltando aos direitos humanos e à liberdade religiosa: pensem, no mundo, há países, também alguns países europeus, que não deixam você fazer um sinal religioso, não? Por diversos motivos, não? E, em outros continentes, o mesmo, não? Sim, isso. A liberdade religiosa não é respeitada em todo o mundo. Há tantos países e que isso não acontece.
Benedicte Lutaud – Vossa Santidade, o senhor se coloca como o novo líder mundial das políticas alternativas. Eu gostaria de saber por que o senhor aponta tanto para os movimentos populares e menos para o mundo da empresa. E se o senhor pensa que a Igreja irá segui-lo na sua mão estendida aos movimentos populares que são muito seculares.
Obrigado! O mundo dos movimentos populares é uma realidade. É uma realidade muito grande, em todo o mundo. Eu, o que fiz? O que eu fiz foi lhes dar a Doutrina Social da Igreja, o mesmo que eu faço com o mundo da empresa. Existe uma Doutrina Social da Igreja. Se você ler o que eu disse aos movimentos populares, que é um discurso bastante grande, é um resumo da Doutrina Social da Igreja, mas aplicada à sua situação. Mas é a Doutrina Social da Igreja. Tudo o que eu disse é Doutrina Social da Igreja, e quando eu devo falar com o mundo da empresa, eu digo o mesmo, isto é, o que a Doutrina Social da Igreja diz sobre o mundo da empresa. Por exemplo, na Laudato si', há uma parte sobre o bem comum e também sobre a dívida social da propriedade privada que vai nesse sentido; mas é aplicar a Doutrina Social da Igreja.
O senhor acha que a Igreja vai lhe seguir nessa mão estendida?
Sou eu que sigo a Igreja aqui, porque simplesmente prego a Doutrina Social da Igreja a esse movimento. Não é uma mão estendida com um inimigo, não é um fato político, não. É um fato catequético. Eu quero que isso fique claro. Obrigado.
Cristina Cabrejas – Santo Padre, o senhor não tem um pouco de medo que o senhor e os seus discursos sejam instrumentalizados pelos governos, pelos grupos de poder, pelos movimentos. Obrigado.
Um pouco eu repito o que disse no início. Cada palavra, cada frase de um discurso pode ser instrumentalizada. É o que o jornalista equatoriano me perguntava. Justamente a mesma frase, alguns diziam que era pró-governo, e os outros, que era contra o governo. Por isso, eu me permiti de falar da hermenêutica total. E sempre são instrumentalizadas. Às vezes, vêm notícias que tomam uma frase e ainda fora do contexto. Sim, eu não tenho medo, simplesmente digo: olhem para o contexto! Se eu erro, com um pouco de vergonha, peço desculpas e vou em frente.
Permita-me uma brincadeira: o que o senhor pensa de todas essas autofotos, selfies, no meio da missa, que se fazem os jovens, as crianças, os colegas?
O que eu penso? É outra cultura. Eu me sinto um bisavô! (risos) Hoje, ao me despedir, um policial, grande, deveria ter uns 40 anos, me disse: "Faço um selfie". Eu lhe disse: "Mas você é um adolescente!" (risos) Sim, é outra cultura, mas eu a respeito.
Andrea Tornielli – Santo Padre, em síntese, que mensagem o senhor quis dar à Igreja latino-americana nesses dias? E que papel pode ter a Igreja latino-americana, também como sinal no mundo?
A Igreja latino-americana tem uma grande riqueza: é uma Igreja jovem, e isso é importante. Uma Igreja jovem com um certo frescor, até com algumas informalidades, não tão formal. Também tem uma teologia rica, de pesquisa. Eu quis dar ânimo a essa Igreja jovem e acredito que essa Igreja pode dar muito para nós. Digo uma coisa que me tocou muito. Em todos os três países, todos os três, havia ao longo das estradas os pais, as mães com as crianças: mostravam as crianças. Nunca vi tantas crianças, tantas crianças. É um povo – e também a Igreja é assim – que é uma lição para nós, para a Europa, onde a queda dos nascimentos assusta um pouco, e também as políticas para ajudar as famílias numerosas são poucas. Penso na França, que tem uma bela política para ajudar as famílias numerosas e chegou, creio, a mais de 2% [da população com menos de 40 anos], enquanto outros estão perto do zero. Embora nem todos, acho que na Albânia, é de 45%. Mas, no Paraguai, mais de 70% da população têm de 40 anos para menos.
A riqueza desse povo e também dessa Igreja é que se trata de uma Igreja viva, uma Igreja de vida. Isso é importante. Creio que nós devemos aprender com isso e corrigir, porque, ao contrário, se não vierem os filhos... É o que me toca tanto do "descarte": descartam-se as crianças, descartam-se os idosos, com a falta de trabalho descartam-se os jovens. Por isso, os povos novos, os povos jovens nos dão mais força. Para a Igreja, que eu diria que é uma Igreja jovem – com muitos problemas, porque tem problemas –, eu acho que esta é a mensagem que eu encontro: não ter medo dessa juventude e desse frescor dessa Igreja. Pode até ser uma Igreja um pouco indisciplinada, mas, com o tempo, vai se disciplinar, e nos dá tanta coisa boa.
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A riqueza da Igreja latino-americana: jovem, informal e indisciplinada. Entrevista com o Papa Francisco no voo de retorno a Roma - Instituto Humanitas Unisinos - IHU