09 Julho 2015
Uma economia globalizada e financeirizada, que se sobrepõe à política e está descolada de critérios éticos em suas transações. Sob esse pano de fundo, bancos são salvos da falência enquanto as pessoas perdem as casas onde vivem porque não têm condições de continuar honrando seus empréstimos. Nações são varridas por crises econômicas brutais, a democracia é tomada como refém das oscilações do mercado e o endividamento como status de inclusão social via consumo são as notas de um réquiem endereçado à política.
A reportagem é de Márcia Junges, jornalista do Instituto Humanitas Unisinos - IHU, e doutoranda em Filosofia pelo PPG Unisinos.
Para discutir a problemática da financeirização da vida, da sacralização da economia e do esvaziamento da política e, sobretudo, da democracia em nosso tempo, a IHU On-Line edição 468 A financeirização da vida. Os processos de subjetivação e a reconfiguração da relação ‘economia e política’ realizou inúmeras entrevistas, ao longo de vários meses, com pesquisadores que, de alguma forma, se debruçam sobre tais temáticas.
A publicação da IHU On-Line sobre a financeirização da vida vem a público num momento crucial não apenas para o Brasil e sua situação econômica delicada, com o ajuste fiscal norteando inúmeras mudanças severas, mas também quando o governo grego referenda através do “não” sua objeção às exigências dos credores internacionais.
De acordo com o economista francês Yann Moulier Boutang, a financeirização é simultaneamente o cerne dessas transformações e do capitalismo em si. Em seu ponto de vista, “o neoliberalismo, que, do liberalismo, só mantém o aspecto econômico, logo, o pior, porque logo se desembaraça do aspecto libertador dos direitos humanos, é apenas uma consequência subalterna, historicamente transitória, do regime de financeirização.”
O economista italiano Massimo Amato menciona que, para Aristóteles, “a moeda não é um poder, mas o sinal que lembra a dependência dos outros. Keynes reconhece firmemente este traço fundamental quando escreve que ‘aqueles que possuem dinheiro estão à mercê dos outros. Essa maneira de ver o dinheiro implica que ele não pode ser pensado como riqueza ou como ‘fim’, mas como um ‘meio’ do qual é preciso saber se liberar’”. Ele explica que um mercado do dinheiro é paradoxal: “Mas os mercados financeiros globalizados são a institucionalização deste paradoxo. E enquanto não vermos claramente sua impossibilidade lógica e sua inaceitabilidade prática, será difícil compreender que tipo de benefícios reais uma sã economia de mercado pode trazer”.
O “homem endividado” e o capital compreendido como uma espécie de entidade, de um “deus”, expõem uma dependência do nascimento à morte, observa o economista italiano Maurizio Lazzaratto. Ele destaca que “a dívida é uma relação de poder universal, uma vez que todo mundo está incluído nela: até mesmo aqueles que são pobres demais para terem acesso ao crédito devem pagar juros a credores pelo reembolso da dívida pública; até mesmo os países pobres demais para se dotarem de um Estado de bem-estar social devem pagar suas dívidas”. Na entrevista concedida à IHU On-Line ele observa que o capital (e não a economia) construiu uma verdadeira máquina de guerra, da qual o Estado e o sistema político são apenas articulações.
Provocativamente, Giuseppe Cocco acentua que não há escapatória para a voracidade do mercado mundial, que serve a interesses privados. O pesquisador aponta, entre inúmeras consequências desse cenário, o surgimento da necessidade de pensar uma nova esquerda enquanto real oposição ao atual sistema. “Poderíamos até dizer que hoje ser de esquerda significa acabar com a noção de esquerda, pois ela funciona apenas para domesticar os movimentos e as subjetividades”.
O economista italiano Stefano Zamagni, reconhecido mundialmente por evocar o conceito de economia civil, afirma que tal ideia deveria nortear o modelo econômico de nosso tempo. Tal concepção “não aceita a separação entre economia e ética”. Em segundo lugar, “a economia civil reconhece no princípio de reciprocidade o direito de cidadania no âmbito do discurso econômico. Em terceiro lugar, a economia civil destaca o bem comum como fim da atividade econômica, e não o bem total, como faz, ao contrário, a economia política”.
Democracia gerencial
Rodrigo Karmy, filósofo chileno, especialista em Averroés e Giorgio Agamben, entre outros pensadores, problematiza a crise da democracia gerencial e a potência anárquica do poder destituinte. Profanar a democracia através de sua politização é a alternativa proposta por Agamben, sinaliza. Em seu ponto de vista, essa crise da democracia gerencial aponta para a indizibilidade do nosso presente e para o deslocamento do problema da “ação” para o “uso”, debate presente no projeto Homo Sacer de Agamben. Karmy convoca Walter Benjamin para nos ajudar a compreender o mecanismo da dívida: “Um mundo endividado não pode deixar de ser um mundo capturado. Lembremos que Walter Benjamin, em O capitalismo como religião, definia o capitalismo com base em três características: em primeiro lugar, o capitalismo é uma religião de culto isento de qualquer dogmática precisa; em segundo lugar, a celebração da sua liturgia não cessa jamais, não tem ‘nem trégua nem piedade’; e, em terceiro lugar, o capitalismo seria o primeiro caso de uma religião não expiante, mas culpabilizante. Se aquilo que aqui chamamos de democracia gerencial nada mais é do que a versão contemporânea do capitalismo, será preciso pensar a sua revogação como revogação da máquina de produção de dívida”.
Transformada em um fim em si mesma, a economia é uma espécie de poder transcendente que governa, “a partir de um intrincado aparato jurídico e burocrático, a vida e a morte dos seres humanos”, afirma o filósofo Sandro Luiz Bazzanella. “Talvez se possa dizer que a crítica de Agamben acerca da economia aponta para o vazio político que reside na hegemonia da economia, sobretudo em sua condição financeira no tempo presente”, afirmou. E acrescenta: “Para Agamben, se a política entendida como ação conjunta em função do bem comum está atualmente em retirada do espaço público é porque o poder financeiro em substituição à religião capturou toda a possibilidade de pensamento e ação humana. Raptou toda a fé e esperança na constituição de um espaço e tempo de qualificação da vida humana”.
Bazzanella explica que a modernidade guindou a economia a um posto central na existência humana, e além disso, inverteu as relações entre política e economia, “subordinando a esfera da política à esfera da economia, assim como subordina a vida pública à vida privada. Se antes era a política e a vida política que exerciam o primado, agora é economia elevada à condição de fim em si mesma, condição que se apresenta para além das implicações que envolvem as relações humanas, como esfera supra-humana, transcendente e, portanto, com plenos poderes de determinar as leis que regulam as relações humanas e materiais”.
Profissionais da política
O homo oeconomicus, de Foucault, e o animal laborans, de Arendt são conceitos examinados pelo filósofo Adriano Correia para pensar o tempo presente. Para o pesquisador, a progressiva subjugação da política pela economia é preocupação central da filósofa alemã ao cunhar essa ideia, enquanto que para o pensador francês trata-se de alguém que é sujeito ou o objeto do laissez-faire, “eminentemente governável”. E acrescenta: “penso ser significativo e digno de reflexão que tanto Arendt quanto Foucault tenham pensado os tempos presentes, no que tange à relação entre economia e política, considerando a centralidade do “consumidor” e da forma de vida que lhe é correlata, assim como que tenham indicado o caráter apolítico e mesmo antipolítico dessa forma de vida. Não se trata de indicar que as questões clássicas como a da expropriação e dos conflitos de classe tenham perdido a relevância, mas de enfatizar a prevalência de um modo de vida que, antes de tudo, “aceita a realidade”, nas palavras de Foucault, ou “aceita o mundo tal como é”, nas palavras de Arendt”.
As manifestações populares eclodidas em diferentes partes do mundo colocaram em pauta a insatisfação com a organização do sistema político e os problemas sociais, ainda mais agravados pela crescente financeirização de diversos campos da vida. No cerne dos protestos está a exigência de “uma democracia que se realize à altura de todas as promessas que ela traz, em termos de respeito à vontade do ‘povo’. Estão exigindo simplesmente que a ação do Estado atenda às suas necessidades reais e que os profissionais da política ajam neste intuito e de forma decente”, aponta o sociólogo francês Albert Ogien.
Confira a edição completa da edição 468 revista IHU On-Line: http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?secao=468
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A financeirização da vida e sua atualidade do Brasil à Grécia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU