Por: Jonas | 24 Abril 2015
Nos pequenos povoados dos pampas argentinos, as fumigações com glifosato adoecem a população e contaminam a vida. A resistência ao modelo de agricultura industrial cresce dia após dia.
A reportagem é de Raúl Zibechi, publicada por Rebelión, 23-04-2015. A tradução é do Cepat.
“Estou aqui porque enterrei quatro familiares”, disse Raquel em um tom quase inaudível. “Meu pai, meu primo e um irmão de meu papai que trabalhavam fumigando, além de meu irmão que trabalhava em uma escola rural”. Raquel é professora e vive em Elortondo, um pequeno povoado de 6.000 habitantes, a 300 quilômetros ao sul de Santa Fé, onde reinam a soja e as enfermidades provocadas pelas fumigações. “80% são pessoas do campo”, acrescenta.
Raquel carrega uma pesada pasta com trabalhos de seus alunos da 7ª série, quase todos com 13 anos. Com eles fez uma ampla pesquisa para conhecer a realidade sanitária da população. A escola fica próxima da linha do trem e de frente para os silos secadores de soja. Quase todos os pesquisados pelos estudantes, seus vizinhos e familiares, possuem consciência dos problemas de saúde que as fumigações provocam.
“Para chegar à escola é preciso passar perto dos silos e não se pode respirar. As crianças que saem à rua quando a secadora está funcionando ficam com a roupa branca, que é a poeira que sai dos silos que se espalha pela escola e em todo o povoado”, explica a professora. O projeto liderado por Raquel se chama “Somos o que respiramos”, mas as autoridades lhes impediram de concursar já que aborda um tema “polêmico”.
Fica triste e apaga ainda mais a voz quando relata a indiferença das pessoas que poderiam se envolver na defesa da saúde. É comum que nos povoados o presidente da comuna, a diretora escolar e aquele que coopera com a escola tenham algum tipo de relação com os plantadores de soja. “Vim porque no povoado queremos formar um grupinho, para nos sensibilizar”. Com essa intenção chegou ao 17º Plenária da Campanha Parem de nos Fumigar, da província de Santa Fé.
Os pequenos grandes avanços
Carlos Manessi e Luis Carreras, dois dos militantes do Centro de Proteção à Natureza (Cepronat), sentem que o muro de silêncio vai se quebrando pelas duas notícias que foram divulgadas nas semanas que precederam a celebração da plenária, para cuja organização dedicaram muitas horas de trabalho ao “velho estilo”: dedicar todo o tempo possível à causa.
A primeira é que a Organização Mundial da Saúde declarou, no dia 20 de março, que “há provas convincentes de que o glifosato pode causar câncer em animais de laboratório e há provas limitadas de carcinogenicidade em humanos (linfoma não-Hodgkin)” e que o mesmo herbicida “danificou o DNA e os cromossomos nas células humanas”. O jornalista ambiental Darío Aranda escreveu que “o glifosato há mais de dez anos é denunciado pelas organizações sociais, camponesas, médicas e científicas independentes das empresas” (MU, 22 de março de 2015).
Na Argentina, há 28 milhões de hectares de plantações transgênicas (soja, milho e algodão) sobre os quais se jogam 300 milhões de litros de glifosato por ano. Mas, também é utilizado em plantações de frutas, girassol, pastagens, pinos e trigo. Aranda explica que na Agência Internacional para a Pesquisa sobre o Câncer, um dos espaços da OMC, 17 especialistas de onze países trabalharam, durante um ano, para chegar à conclusão de que o glifosato é cancerígeno.
O glifosato é o herbicida de maior uso no mundo, tanto em produtos de aplicação agrícola como em espaços urbanos e no lar. O produto da Monsanto começou a ser utilizado massivamente com o desenvolvimento das plantações transgênicas. Em 1996, na Argentina eram utilizados 11 milhões de litros de glifosato, mas esse ano foi aprovada a soja transgênica e a Rede de Médicos de Povos Fumigados estima que agora são utilizados 320 milhões de litros.
Em 2009, Andrés Carrasco, chefe do Laboratório de Embriologia Molecular da Faculdade de Medicina da Universidade de Buenos Aires e principal pesquisador do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas (Conicet), advertiu que o glifosato produzia malformações em embriões anfíbios. Como recorda Aranda, “precisou enfrentar uma campanha de desprestígio por parte das empresas, de setores da academia e de políticos”.
Carrasco abraçou a causa dos atingidos pelo glifosato, apoiou incondicionalmente as populações dos povos fumigados, como as Mães de Ituzaingó (1), afirmando que “a maior prova dos efeitos dos agrotóxicos não era preciso procurar em laboratórios, mas, sim, nas comunidades fumigadas”. Faleceu em maio de 2014, semanas após participar na escolinha zapatista e hoje é um símbolo da luta contra os agrotóxicos.
A segunda resolução que anima Luis e Carlos é a recente do Ministério da Produção da província de Santa Fé, do dia 25 de março, que proíbe a aplicação do potente tóxico 2,4-D em toda a província e restringe severamente a aplicação aérea e terrestre. Futuramente só poderá ser utilizado em aplicações aéreas com mais de 6.000 metros de distância das populações e nas terrestres com mais de 1.000 metros de distância dos centros povoados (http://www.cepronat-santafe.com.ar/, 31 de março de 2015).
Em junho de 2014, o Cepronat havia apresentado um expediente solicitando a proibição ou restrição do 2,4-D, o agrotóxico que é o segundo herbicida mais usado pela agricultura na Argentina e o terceiro nos Estados Unidos. Deste modo, a província se torna, junto a Chaco, Santiago del Estero, Entre Ríos e Córdoba, uma das primeiras a adotar restrições.
Trinta e oito anos resistindo
O Cepronat participa da Campanha Parem de nos Fumigar, nascida em setembro de 2006 nas províncias mais atingidas do país. Junto a Córdoba e Buenos Aires, Santa Fé é uma das três principais províncias sojeiras. Só em Santa Fé a campanha reúne organizações e pessoas de cem localidades que, como destaca um de seus documentos, “viam deteriorar sua qualidade de vida e mudanças na forma de adoecer e de morrer”.
A campanha conta com o apoio de organizações de bairro, culturais e sindicatos, como o dos professores que cederam o camping, a 15 quilômetros da cidade, para abrigar participantes da plenária. Na roda de apresentações foram destacadas aproximadamente 20 organizações de vários povoados, alguns dos quais se definem como “refugiados ambientais”, que chegam a 250.000 na província.
Uma dezena de militantes (do Cepronat e de outras organizações que integram o Fórum de Santa Fé pela Saúde e o Meio Ambiente) prepara o espaço do encontro, credencia os participantes e coloca os cartazes. Ezio, o “presidente” do Cepronat, transpira sob o forte sol do meio-dia junto à grelha onde prepara a comida. Luis não para de se movimentar, com cadeiras, com caixas e garrafas, subindo para colocar faixas. Carlos dá início à plenária e explica a metodologia de trabalho. Uma equipe de gente simples, entregue à luta pela vida.
O Cepronat nasceu em 1977, em plena ditadura militar, dois meses antes da primeira geração das Mães da Praça de Maio. Todos os meses publicam o boletim El Ambientalista (que já chega a 284 edições) com informações sobre os povos fumigados, denúncias de produtos que prejudicam a saúde e de qualquer iniciativa que destrua o meio ambiente.
O Centro de Proteção à Natureza “é a primeira organização não governamental formada por cidadãos preocupados com o meio ambiente no interior da Argentina”, que já em 1978 ajudou a frear as fumigações de mosquitos em Santa Fé, realizou centenas de plantações de árvores autóctones na cidade e foi uma das primeiras organizações a se opor à IV Central Nuclear, fazendo com que se declarasse “Santa Fé Não Nuclear” (El Ambientalista N. 283, março de 2015).
Nos anos de 1990, promoveu uma campanha contra a represa no Paraná Médio. Desde que começou a ser implementado o novo modelo agrícola, em meados dos anos 1990, encontram-se numa encruzilhada que os leva a abordar os dois problemas principais: as aspersões com agrotóxicos e a defesa dos espaços públicos urbanos. É uma mesma luta, ou melhor, a resistência a um mesmo modelo.
Luis relata com inocultável paixão uma das últimas batalhas travada pelo Cepronat: a defesa do Parque Alberdi, um emblemático espaço verde no coração da cidade, muito perto do rio Paraná. O governo da cidade decidiu remodelar o parque que abriga mais de cem árvores, com menos verde, mais cimento e a concessão para uma empresa privada.
O que mais causou rejeição foi a decisão de se construir 300 praças semi-subterrâneas para carros, pois muda a fisionomia do parque, ao passo que os empresários privados que as constroem poderão explorá-las por 30 anos, pagando uma taxa de um pouco mais de cem dólares mensais. A comuna lhes entrega um espaço público de 15 milhões de dólares, cujos investimentos recuperarão nos primeiros cinco anos.
Quando começaram a cortar as árvores, centenas de vizinhos ocuparam o parque, no dia 14 de junho de 2014, instalaram tendas e dormiram ali durante vários dias. Criaram a Associação Cidadã em Defesa do Público e nos dias 14 de cada mês retornam em grupos ao parque recordando a data. A privatização e especulação com os espaços públicos são parte do mesmo modelo extrativo das monoculturas de soja e da mineração a céu aberto.
Enfermidade e dominação
Começa a rodada de debates. Após as apresentações de rigor, Carlos recorda que a Campanha Parem de nos Fumigar há mais de seis anos percorre os povoados, realizando três plenárias provinciais por ano, e que agora conta com a presença do grupo de médicos da Universidade de Rosário e de uma equipe de cientistas da Faculdade de Ciências Exatas de La Plata, além de um grupo da vizinha Paraná.
Entre os depoimentos dos atingidos, destaca-se – além de Raquel de Elortondo – o de Roberto, de Ceres, uma cidade de 15.000 habitantes, a 260 quilômetros ao noroeste da capital. Possui 38 anos e trabalhou nove como aplicador de agroquímicos, lidando com um “mosquito” até que começaram as dores de estômago. Há vários anos que não pode trabalhar porque perdeu a mobilidade nos braços. No hospital, receitaram-lhe medicamentos psiquiátricos porque pensavam que ele mentia. Muitos médicos são cúmplices do modelo e resistem em aceitar a realidade das fumigações.
Daniel Verzeñassi, bioquímico e integrantes do Fórum Ambientalista do Paraná, adverte que “não só nos fumigam através do ar como também da água contaminada”. Explica que a água da chuva arrasta os tóxicos até as camadas subterrâneas das quais se retira a água para o consumo humano. “Os 800 ou 1.000 metros de distância das fumigações em relação ao local da residência, que é exigido pelo movimento, são necessários, mas insuficiente. Somos todos povos fumigados”, conclui.
Na conversa, alguém diz uma frase densa, dessas que golpeiam como pedras: “Quando predomina a doença, perdemos a liberdade”. Depois explica que a enfermidade se constrói como dependência do enfermo, anulando sua autonomia. Nos três grupos que foram formados para se aprofundar o debate, surgiram quase todos os temas centrais: desde o medo que existe nos pequenos povoados, que impede a denúncia e a organização, até a necessidade de estudar e se formar para lutar melhor.
Alguém pergunta: “como a gente muda?”. Na troca de opiniões há unanimidade em avaliar que enquanto trabalhavam contra as fumigações e as plantações de soja, não conseguiam remover a indiferença. Porém, quando decidiram se centrar na saúde e nas consequências sanitárias do modelo, as pessoas começaram a denunciar os casos de câncer, leucemias e malformações.
O médico Damián Verzeñassi recordou que dos 100.000 produtos liberados no meio ambiente, desde o fim da Segunda Guerra Mundial (1945), “apenas dois ou três mil foram avaliados do ponto de vista cancerígeno”. Sustenta uma tese polêmica, mas que devemos contemplar: os alimentos fazem parte de um projeto geopolítico de controle da população mundial. Exagerado? Dias após a plenária da Campanha, dois cientistas mexicanos do Instituto de Ecologia da UNAM recordaram que “a Monsanto e o governo dos Estados Unidos conheciam a toxicidade do glifosato desde 1981” (La Jornada, 17 de abril de 2015).
Por sua parte, o sindicato dos professores, AMSAFE (Associação do Magistério de Santa Fé), destacou que em toda a província há 800 escolas rurais e periurbanas nas quais trabalham 2.000 professores. O sindicato recebe muitas denúncias de professores que adoecem de câncer e de escolas que fecham nos dias de fumigações. Muitos diretores de escolas têm medo de denunciar. Para visibilizar a situação propõem convocar um Congresso Provincial de Escolas Fumigadas.
Acampamentos de saúde
A Faculdade de Ciências Médicas de Rosário, a maior cidade da província e a terceira do país, viveu uma virada política em 2007, com o triunfo de uma corrente que realizou mudanças de fundo na carreira. Uma dessas mudanças foi a introdução dos “acampamentos de saúde” que são “um dispositivo criado no ano 2010, como Avaliação Final Integradora do Ciclo de Prática Final da Carreira de Medicina, que integra avaliação, pesquisa, docência e extensão”, como define Damián Verzeñassi, responsável acadêmico dessa matéria.
Ele sustenta que os acampamentos são uma ferramenta de análise epidemiológica das comunidades e que um estudante não deve terminar seus estudos sem ter uma experiência que o deixe claro que obteve seu título graças às contribuições de toda a população e não apenas pelos méritos pessoais. Os acampamentos duram cinco dias e deles participam de 90 a 150 estudantes, sendo realizados acampamentos a cada três meses.
A faculdade assina um acordo com o município, que deve ser de menos de 10.000 habitantes. Os professores vão para os acampamentos, entre dez e quinze, sendo que a faculdade se encarrega pelo transporte e pelas equipes e o município pelo alojamento (dormem em colchões no chão, em escolas ou centros esportivos) e pela alimentação. Nos três primeiros meses, os estudantes preparam o acampamento, já sabem para qual localidade irão e tudo o que precisam fazer durante os cinco dias que estarão no povoado.
Para cada estudante é encomendado um quarteirão para que na segunda-feira e na terça-feira visitem todas as casas e entrevistem todas as pessoas. A pesquisa busca uma caracterização socioeconômica do grupo familiar e os principais problemas de saúde que padeceram no último ano e, por sua vez, nos últimos 15 anos. “Conseguimos uma cobertura de 76% da população, nos 21 acampamentos realizados”, explica Verzeñassi.
Na quarta-feira, constroem um perfil sanitário da população. “Nós, docentes, avaliamos o trabalho dos estudantes, sua capacidade de entrevistar, de gerar empatia com o sujeito, de construir uma hipótese de diagnóstico e de identificar os elementos determinantes da situação de saúde da família”. Além disso, transformam as escolas em um grande hospital de campanha, onde fazem um exame físico e controle de saúde das crianças, analisam o crescimento, o desenvolvimento e as possíveis patologias.
Na quinta-feira, realizam oficinas de promoção de saúde e prevenção de enfermidades nas escolas primárias e secundárias, mas também nas praças e centros sociais, “porque os médicos precisam ter a capacidade de compartilhar com a comunidade seus saberes para construir uma comunidade mais saudável. Desse modo, podemos avaliar o estudante na prática concreta com as pessoas, que é o que acontecerá quando for trabalhar como médico”.
Na sexta-feira, os docentes fazem a avaliação dos estudantes e pela tarde convocam todo o povo para fazer a devolução dos resultados. Depois, na faculdade, comparam os resultados das diferentes comunidades nas quais, ao longo destes anos, fizeram acampamentos, fixando a atenção na evolução das enfermidades nos últimos 15 anos.
“Comprovamos que existiu um crescimento do câncer que oscila entre quatro vezes e meia e até sete vezes mais do que no primeiro quinquênio. Quando começamos a ver que os 21 povoados nos dá aumentos semelhantes de câncer, de abortos espontâneos, de nascimentos com malformações, perguntamo-nos o que há em comum em todos eles, e é que estão no meio das áreas de produção agroindustrial com agroquímicos”, destaca indignado.
Uma guerra química
Em 2008, na Argentina havia 206 casos de câncer para cada 100.000 habitantes. Em alguns povos, encontraram até 2.000 casos, quase dez vezes mais. Sendo que as malformações atingem seis crianças em alguns povoados de 4.000 habitantes, quando a prevalência é de um caso para cada um milhão. Porém, o que mais lhes chama a atenção é que não aumenta o mesmo tipo de câncer que havia antes, mas aparecem novos: linfomas, leucemias, câncer de tiroides, pâncreas e mamas.
Um estudo que foi divulgado na Plenária de Parem de nos Fumigar, realizado pela Universidade de La Plata a pedido das autoridades de Monte Maíz (um povoado agrícola de 8.200 habitantes, na província de Córdoba), descobriu que há três vezes mais câncer que a média do país. A taxa de abortos espontâneos sobe para 9,9% das mulheres grávidas, frente a 3% da média nacional.
A hipótese de “uma guerra química” que procura controlar os povos ganha vigor se levarmos em conta que empresas multinacionais e autoridades têm perfeita consciência das consequências esperáveis quando liberaram os praguicidas.
No entanto, algumas coisas estão mudando, como demonstrou o encontro da Campanha Parem de nos Fumigar. Nos povoados existe uma clara consciência do que está acontecendo, como demonstra a pesquisa escolar de Raquel, em Elortondo. Daí a se organizar, há um passo: perder o medo. Porém, esse passo está cada vez mais sendo dado por mais pessoas, em mais lugares.
A segunda, é que há mudanças na academia. Verzeñassi nos recorda que no início dos acampamentos havia muita resistência entre docentes e alunos que diziam que “não queriam trabalhar de graça”. Porém, dos dez últimos acampamentos, sete foram realizados a pedido de um médico do povoado, que era um graduado que havia participado dos acampamentos. Esta mudança nos médicos e nos docentes – que são figuras centrais nas áreas rurais – pode mudar a balança contra o modelo de agricultura industrial.
Sem dúvida, a situação é bem diferente da que existia em 2006, quando começaram a campanha. A campanha contra as fumigações não conhece pausas. Em junho, realiza-se em Rosário o 3º Congresso de Saúde Ambiental e o 1º Encontro da União de Cientistas Comprometidos com a Sociedade da América Latina. Inicia-se no dia 16 de junho, data do aniversário de Andrés Carrasco, símbolo desse compromisso.
Nota
1. Ver “El modelo extractivo rechazo em las calles”, em http://www.cipamericas.org/es/archives/10888
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A guerra química contra os povos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU