11 Março 2015
"É possível respeitar os direitos e cumprir a função social, construindo uma cultura do bem comum", escreve Raquel Rolnik, urbanista, em artigo publicado pelo jornal Folha de S. Paulo, 09-04-2015.
Eis o artigo.
A indignação geral com a corrupção, essa abominável apropriação do que é público para transformar em riqueza privada, é eloquente quando se trata de desviar recursos do Orçamento, mas é cega, surda e muda em casos que, embora em contextos distintos, também configuram apropriação do público pelo privado.
Vejamos o caso do parque Augusta: o terreno pertence a incorporadoras, mas nele há um resquício de mata atlântica, um respiro teimoso de natureza em um mar de concreto e cimento, que foi declarado e reconhecido --formal e legalmente-- como "área de usufruto e apropriação pública, preservada até o final dos tempos".
Fechado ilegalmente no final de 2013, o parque foi ocupado no início deste ano por moradores e usuários que tinham o objetivo não de se apropriar do terreno, mas sim de abri-lo ao uso comum, como deve ser.
Os proprietários, então, demandaram a "reintegração de posse" na Justiça, que, a partir de leitura que ignora a dimensão do bem comum, decidiu ordenar a saída dos "invasores" --ou seja, os usuários da área pública--, declarando, assim, que um bem público inserido em área privada pode ser privatizado. E ponto.
Na semana passada, a "reintegração" foi executada e os donos, imediatamente, já cercaram a área com tapumes. Examinando com atenção, esse caso é ilustrativo da perversa relação entre a coisa pública e o privado em nosso país.
Tenho acompanhado o debate sobre o parque e sei que a recusa da prefeitura em desapropriar o terreno --com a qual concordo-- vem de posicionamento político que não vê sentido em gastar R$ 70 milhões para comprar um parque que já é público. O discurso veiculado pela imprensa, porém, dá a entender que a prefeitura simplesmente não dispõe desse valor para a desapropriação.
Com isso, parte do movimento em defesa do parque vê como "solução" utilizar o dinheiro desviado pelo ex-prefeito Paulo Maluf (PP-SP), que agora está sendo em parte recuperado, para pagar os proprietários e, assim, viabilizar o parque. Ora, essa posição apenas reitera o círculo perverso da apropriação privada do público: Maluf se apropria do dinheiro público, que, quando recuperado, servirá para remunerar a apropriação privada de um bem público!
Alguns argumentam que o fato de o parque não corresponder à totalidade do terreno impede uma equação que garanta a natureza pública desse bem comum. Eu discordo.
Nosso Plano Diretor prevê um instrumento chamado transferência de potencial construtivo, que confere aos proprietários de áreas destinadas à preservação ambiental - caso do parque Augusta - o direito de utilizar, ou de vender para alguém que o utilize, o potencial construtivo não utilizado ali, em outros terrenos da cidade. Transferido o potencial, o terreno pode ser integralmente doado para constituir um bem comum (o jardim de um condomínio não é um bem comum!).
Dessa forma, respeitando os direitos dos donos e cumprindo com a função social do terreno, é possível contribuir com a ruptura da cultura da apropriação privada dos bens públicos, a mesma que impede hoje o acesso a tantos outros bens de uso comum, como praias e ilhas, e que é a base cultural e política da corrupção.
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Parque Augusta e o sentido do público - Instituto Humanitas Unisinos - IHU