20 Setembro 2007
“Um governo arrogante, que pensa que sindicalista não pode ter conhecimento técnico de saúde pública. Estamos em enfrentamento com o governo Requião." A opinião é de Elaine Rodella, dirigente do Sindicato dos Trabalhadores e Servidores em Serviços Públicos da Saúde Pública e Previdência do Estado do Paraná (Sindsaúde).
A sindicalista lamenta ainda o atrelamento do movimento sindical ao Governo Lula. Na entrevista especial para o sítio do IHU – realizada pelos colegas do CEPAT –, a dirigente sindical afirma que o atrelamento a qualquer governo é perverso para a classe trabalhadora. A entrevista com Elaine Rodella se soma às entrevistas com Anselmo Ruoso e Marisa Stédile, publicadas nesse mesmo espaço, com o objetivo de contribuir no debate sobre a crise do movimento sindical.
Elaine Rodella, psicóloga, formada pela Pontifícia Católica do Paraná (PUC-PR) e funcionária pública concursada e com mais de 17 anos de experiência no serviço público na área da saúde, comenta que “o Estado hoje deseja contratar funcionários que não questionem, mas que saibam dialogar, se comunicar bem, para conseguirem convencer o outro de que a política pública vai bem obrigada”. Na entrevista, a dirigente sindical fala ainda dos desafios para o movimento sindical brasileiro.
Eis a entrevista.
IHU On-Line - Por que atualmente há tanto desinteresse dos trabalhadores em participar das direções sindicais? Na década de 1980, havia disputa pela conquista desse ‘poder’. O que aconteceu?
Elaine Rodella - Acredito que uma das causas seja o capitalismo. Esse sistema econômico vendeu, de forma persistente e convincente, a idéia de que o movimento organizado não era movimento, mas uma baderna, uma desorganização mesmo. A partir daí, sindicato virou símbolo de desordem e local de arruaceiros. Há um preconceito da classe trabalhadora, ou parte dessa classe sobre a necessidade de um sindicato.
Vale ressaltar que há diversas visões sobre qual é o papel de um sindicato. Trazer a categoria para a entidade é uma conquista que o sindicato tem de fazer. É possível, sim, ampliar o número de filiados ao propor uma discussão democrática no interior da categoria, de colocar as propostas, de ter clareza e transparência na gestão para conquistar. Há muito ainda para ser feito para que a classe trabalhadora adquira confiança nos sindicatos. A mídia vai continuar na tentativa de distorcer a imagem do sindicato, irá continuar mentindo.
Vejo outros sindicatos que conseguiram, assim como o SindSaúde, com gestão transparente, séria, que tem compromisso efetivo com a classe trabalhadora, reverter o quadro interno de algumas categorias. Portanto, depende também da seriedade das centrais sindicais e dos sindicatos. Só assim a confiança pode ser restabelecida. A idéia pré-concebida de muitos, que eram contra o sindicato e que tinham um discurso pronto, foi desconstruída aos poucos. Já a parcela desinteressada no sindicato não crê em nada. São os que votam nulo, não participam de nada e estão convencidos de que precisam apenas cuidar da vida dela e ainda se iludem que isso resolve.
IHU On-Line - Mas por que as pessoas estão menos dispostas?
Elaine Rodella - As pessoas querem ser dispostas, mas colocam alguns limites, de certa forma saudáveis. Porque preservar a qualidade de vida também é muito bom. Não dá para viver todo o tempo a política, fazer políticas públicas, pensar na organização da categoria, submetida à exploração. Enfim, estar sempre em constante confronto com o capitalismo. O que não é muito fácil porque temos de olhar e vivenciar situações muito duras. Você tem de ter um nível de resistência para suportar as frustrações, para olhar o sofrimento humano e falar: eu vou continuar nessa luta! É preciso ter essa persistência. Mas até entendo a resistência da maioria das pessoas. Afinal, é um mundo que exige muito.
IHU On-Line - É possível falar em uma nova subjetividade operária? Uma subjetividade na qual ganha predominância os interesses do indivíduo e não mais da classe? Os trabalhadores ainda manifestam solidariedade às causas coletivas ou se recolheram ao seu mundo privado?
Elaine Rodella - Eu acho que a consciência de classe trabalhadora ainda precisa ser trabalhada, mas, nesse tempo em que estou no meio sindical, pouco mais de dez anos, tenho uma avaliação positiva. Na década de 1980 e 90, com Collor e FHC, a maioria da população acreditava que os conceitos neoliberais eram a grande saída, acreditavam na venda do patrimônio público, privatizações, contratações terceirizadas. Grande parte das pessoas tinha a convicção plena que por esse caminho tudo se resolveria. As privatizações aconteceram e nada aconteceu.
Existe, sim, a predominância de um individualismo. Ainda persiste a máxima do "vou lutar sozinho para resolver e superar as minhas dificuldades e alcançar uma outra classe social, deixar de ser classe ‘c’ para ser ‘b’". O individualismo ainda é predominante. Só que várias coisas, colocadas como dogma, também já desmoronaram. Se um dia o socialismo teve os muros derrubados, o capitalismo também vem, aos poucos, ruindo na vida das pessoas. Os ideais pelos quais elas lutavam e acreditavam já não existem mais. Nada se sustenta sem base na realidade.
No entanto, se há o individualismo, há também o despertar para algumas situações coletivas. O capitalismo trouxe algumas situações de grande estresse. As pessoas percebem e vivenciam esse estresse. Um exemplo é o assédio moral no trabalho, o sofrimento no ambiente de trabalho por atos violentos, pelo excesso de competição. Os sindicalistas deveriam aproveitar essas situações para trabalhar e desconstruir a idéia de que tem de prevalecer o indivíduo, o interesse pessoal. Cabe a nós ajudar essas pessoas a perceber que o sofrimento no trabalho tem uma identidade com meus colegas de trabalho, com os colegas da fábrica do lado e por aí vai.
IHU On-Line -O capital fala na exigência de um trabalhador participativo, criativo, plurifuncional, que saiba trabalhar em equipe. Você considera que esse discurso da conquista das “mentes e corações” foi assimilado pelos trabalhadores ou eles manifestam resistência?
Elaine Rodella - Como tenho mais contato com o servidor da área pública, em que o trabalhador produz, mas não gera acúmulo de capital, ele não está enriquecendo um ou dois sócios de uma determinada empresa. Os servidores trabalham para a população. O que a gente vê é que, no serviço público, ainda prevalecem os vínculos partidários e familiares com o partido e o chefe do Executivo que está no poder. A criatividade, o conhecimento, nem sempre são suficientes para que o servidor cresça profissionalmente. Porque para crescer profissionalmente, o importante, em geral, é a qual partido o funcionário pertence naquele momento ou se o servidor adere ao governo de plantão.
A indicação política, sem a capacidade técnica desagrada os servidores da saúde. Eles têm denunciado e demonstrado resistência e insatisfação. Fazem a análise crítica de que um governo não pode se confundir com as políticas públicas. Grande parte é gerenciada por um plano de governo assistencialista, que foi feito e tem de ser executado. Portanto, na nossa realidade, essas questões de ser criativo ou participativo não importam muito. A exigência do serviço público tem adoecido. Quanto eu entrei no Estado, há dezoito anos, conhecimento técnico ainda era importante, havia, também, o interesse em me qualificar para que desenvolvesse melhor o serviço para a população, mas hoje não.
IHU On-Line - Qual é o perfil do profissional que se deseja no serviço público?
Elaine Rodella - Hoje, o que observo, no Estado, é que se quer que a gente não questione, mas saiba dialogar, se comunicar bem, para conseguir convencer o outro de que a política pública vai bem obrigada. Uma pessoa com capacidade de verbalização, de comunicação, tem o perfil que eles querem. Ao mesmo tempo, querem uma pessoa que desconheça a saúde pública. Querem um ser alienado para ter controle sobre ele. Alguns servidores tentaram se rebelar, mostrar o conhecimento adquirido e questionar políticas públicas pedindo que a forma de condução fosse revista.
É imensa a dificuldade de repensar, de renovar, de adotar novas práticas no serviço público. Isso vale para vários governos, que têm essa prática. Na verdade, a vontade é acabar com o serviço público. Não querem fazer um serviço público de qualidade. Em especial no porque diminui a faixa de interessados em comprar planos de saúde privados que dá lucro para o capital. Toda a equipe que vi se manifestar pela qualidade, fazer projeto de trabalho mais avançado, foi se diluindo, como se isso não resolvesse.
No fundo de tudo isso, nesse perfil que eles estão querendo, está o interesse na desestruturação da saúde pública, na desorganização maior do serviço público. O objetivo é que o capital avance ainda mais sobre o serviço público. O processo é de privatização. Ou seja: a iniciativa privada gerencia as unidades públicas de saúde e o Estado repassa dinheiro do Tesouro praticamente sem controle. A iniciativa privada não trabalha com a saúde, mas com a doença. É uma mercadoria que tem de gerar lucro para poucos.
IHU On-Line - Quais são as principais reivindicações dos trabalhadores hoje? É verdade que a PLR suscita maior interesse do que a reposição salarial?
Elaine Rodella - Vou falar um pouco do que conheço. Observo um grande medo do desemprego e até certo desmerecimento de reivindicações. Como o desemprego alcançou níveis muito altos, há um abrandamento da pauta de reivindicações. Uma tendência para se chegar a consensos. É a era do vamos ver o que eles vão me dar e eu aceito.
Vejo, infelizmente, certa acomodação. No setor público, há dirigentes sindicais que não conseguem construir uma pauta de reivindicações mais ampla, de acordo com o papel do sindicato. Constata-se, ainda, o enfraquecimento desse movimento, que, a partir da década de 1990, foi perdendo a capacidade ou interesse de combater o capital. Ou seja, de desenvolver lutas que façam o enfrentamento de forma efetiva com o capital porque as duas coisas deveriam caminhar sempre juntas.
Uma é a luta corporativa, condições de trabalho, salário, redução de jornada, enfim, ampliação de direitos, e a outra é a paralisia do movimento. Cadê as greves? A organização da classe trabalhadora vai mal, o salário vai mal, a exploração aumentou, a burguesia está cada vez mais rica, com maior concentração de renda. E a gente está cada vez mais agachado, encolhido, dominado pelo poder ideológico e financeiro do capital.
Desse ponto de vista, a pauta de reivindicações dos trabalhadores é, atualmente, reflexo dessa paralisia que tomou conta do movimento sindical e da inércia de bandeiras maiores. O desemprego amedrontou, e muito, a classe trabalhadora. Com isso, há uma retração do empregado que receia perder o ganha-pão e aceita piores condições de trabalho e salários arrochados.
IHU On-Line - Os sindicatos estão mais corporativistas do que já foram?
Elaine Rodella - É inegável que outras centrais sindicais ganharam espaço, se expandiram em diversas categorias. Na Central Única dos Trabalhadores – CUT – na última década, a formação política, o debate sobre o modelo econômico, o papel do estado e os interesses do capital se perderam no nada. Houve uma despolitização da Central. Com isso, os sindicatos cutistas se tornaram mais corporativistas, já que outras centrais não tinham esses princípios. Os sindicatos a elas filiados já nasceram corporativistas.
Vários sindicatos colocam em suas reivindicações planos de saúde privados. O SUS está ruim e precisa melhorar, mas entendo também que esses sindicatos tinham de vir para a defesa da saúde pública. Esses planos são uma enganação, pois têm as limitações de atendimento. Em determinado grau de complexidade não prestam assistência. Na verdade, apresentar esse tipo de reivindicação na pauta é fortalecer o capitalismo, é dar mais dinheiro para o mercado da saúde.
IHU On-Line - Para muitos, o movimento sindical brasileiro está atrelado demais ao Governo Lula. O que lhe parece?
Elaine Rodella - Se há uma coisa que nós, do Sindsaúde, defendemos é a autonomia do sindicato frente ao governo. Seja ele qual for. Grande parte do movimento sindical, lamentavelmente, está atrelado ao Governo Lula. Tem condicionado as ações e as pautas de reivindicações dos sindicatos ao Governo Lula para dar sustentação ao governo e isso é um grande erro do movimento sindical que tem reflexo negativo até mesmo no governo federal.
Digo isso porque se o movimento sindical jogasse mais forte na crítica e no enfrentamento com o governo, o governo poderia ter uma outra posição frente à burguesia. Estaria pressionado pelos dois lados. É essa a realidade de um atrelamento perverso para a classe trabalhadora. É perverso, sim, porque está perdendo a credibilidade porque nos coloca no mesmo patamar das centrais governistas.
Se fosse um outro governo, com o cenário que hoje se observa: de denúncias de corrupção, o sucateamento do serviço público, o repasse do patrimônio brasileiro para o pagamento da dívida, o que é que estaríamos fazendo? Estaríamos na rua, no mínimo com uma agenda, exigindo a apuração imediata dos fatos. Por que é que nós não estamos fazendo isso? Por conta desses atrelamento.
E o Sindsaúde tem feito isso com o governo estadual porque tem uma relação mais direta, por conta do desmantelamento do SUS. Porque esse governo, tecnicamente, é muito ruim. Investe pouco em saúde e o que investe, em grande parte, investe errado. Temos uma análise da saúde e a oferecemos os ocupantes de cargos estratégicos. Levamos para eles o nosso diagnóstico do caos instalado na saúde, depois dos oito anos de Lerner. Mas não foi aceito e as políticas equivocadas permaneceram da era Lerner e criaram-se outras políticas equivocadas.
É um governo arrogante, que pensa que sindicalista não pode ter conhecimento técnico de saúde pública. Estamos em enfrentamento com o governo Requião. Sinto que, apesar da solidariedade de alguns movimentos, seja do campo sindical ou social, ainda é pouco. São bem poucos os que manifestam solidariedade à nossa luta. Somos contra o atrelamento. O sindicato precisa de independência, de autonomia e é necessário ter coerência com a pauta histórica de luta. E não estamos tendo coerência porque aquilo que defendíamos na década de 1980 e 90, nós já não defendemos mais. Assim como o PT e o Lula mudaram de posição. Temos de fazer autocrítica e digo a gente porque apesar de o Sindsaúde não estar inserido nisso, a CUT está. E tenho interesse em discutir isso, mas não há mais muito espaço democrático em nossos instrumentos de organização sindical. É triste, mas infelizmente foi-se.
IHU On-Line - O sociólogo Francisco de Oliveira afirma que, com a entrada do Brasil no processo de globalização, assistiu-se à emergência de uma nova classe social – resultante de uma aliança entre os que estão no setor financeiro e os que estão mundo do trabalho. Você concorda?
Elaine Rodella - Concordo com as afirmações que são colocadas sobre o que os tucanos fizeram e onde eles conseguiram cavar espaços. Concordo também que a reforma da previdência, os fundos de pensão são uma mina para muita gente do movimento sindical. Gente que foi para ganhar dinheiro. Se o Governo Lula mudou de rumo, se o Partido dos Trabalhadores tem rasgado o estatuto e os princípios, com os quais foi criado, não acho que os sindicalistas têm de seguir o mesmo caminho!
Não defendíamos outra linha de pensamento? Saímos às ruas para defender o patrimônio público. E agora esse patrimônio pode ser privatizado? O que mudou? A linha, o rumo ou o poder que subiu à cabeça de muitos? Não sonhamos e discursamos anos a fio sobre a igualdade na distribuição de renda? O sonho acabou? E agora, sindicalistas? Sindicato não é status nem poder. Deve ser trabalho. E trabalho de base. Muitos estão vacilantes. Não por desconhecer a prática do Governo Lula, bem diferente do discurso.
Esse povo está vacilante por não ter formação adequada para cavar um cargo no governo federal. Ainda assim, acham que é melhor manter o Lula, porque pode vir um golpe. Pode fragilizar a dita esquerda ou porque sem Lula, a direita tende a ocupar o espaço. O movimento sindical, diante de um governo atolado em denúncias, perdeu a chance de se fortalecer e ganhar credibilidade. O mesmo ocorreu com o PT que, se tivesse reagido com base nos princípios e com a coerência da história do Partido, e não se confundido com o estar governo, também deixou de ser a dita reserva moral partidária deste país.
Para reconstruir o movimento de esquerda, o movimento sindical forte, com linha teórica, firmeza de princípios, talvez seja necessário outros 30, 40 anos pela frente. Isso porque o Governo Lula vai ficar marcado na história como um presidente de esquerda, que não fez reforma agrária, não discutiu o modelo de Estado, o capitalismo, não enfrentou as poucas famílias que detêm a maior parte riqueza do Brasil. Lula não fez um processo educativo com relação a isso. Não fez frente a todas as políticas assistencialistas e que causam dependência e não causam o fortalecimento da capacidade da pessoa de se tornar cidadão. Há alguns programas bons, mas cabem no cantinho da página. O que predomina é a política do assistencialismo
IHU On-Line - Na sua definição, ser dirigente sindical hoje é...
Elaine Rodella - É ter a ousadia de saber que tudo isso está acontecendo, mas que a gente tem de resistir. Resistir à direita que sempre foi direita e tentar fazer o confronto com quem se dizia de esquerda. Saber que a única coisa que nós podemos fazer para contribuir com a sociedade é conquistar, aos poucos, a confiança dos trabalhadores. E que isso se dê por meio de atitudes firmes na condução do sindicato, na organização da sociedade. Ser dirigente sindical é inventar, ter ousadia e capacidade de absorver informações novas e estar pensando nesse mundo dinâmico onde acontecem grandes transformações que repercutem no mundo do trabalho. Tem de ter a capacidade de superar as frustrações e buscar criar, nem que seja minimamente, a consciência da classe trabalhadora, a identidade de classe.