Pesquisador aponta falta de interesse político para recuperar áreas devastadas na região. Enquanto isso, ocupação urbana desordenada e agricultura predatória aceleram o processo de desertificação
O Seridó é uma região do Nordeste brasileiro que não existe mais no papel e pode acabar desaparecendo de fato. A partir de uma reorganização do Instituto Brasileiro de Geografia e estatística - IBGE, essa microrregião do estado do Rio Grande do Norte perdeu esse nome para fins estatísticos da geografia de Estado. Porém, devido à importância histórica e cultural para a população local, essa área segue sendo carinhosamente chamada de Seridó pelos moradores. “Além disso, nossos estudos de Geografia Física ainda têm sido norteados por essa antiga regionalização, uma vez que a atual foi feita com base em critérios exclusivamente geoeconômicos”, acrescenta o professor Saulo Vital, que integra o grupo de pesquisa que estuda a área e constatou que houve diminuição de 55 km² da caatinga arbustiva dessa região entre 1985 e 2015.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, o professor alerta que todo esse cenário e memória corre o risco de realmente ser varrido do mapa. “O atual estágio de degradação da paisagem na região inspira cuidados por parte das autoridades públicas. Atualmente, a região do Seridó possui um Núcleo de Desertificação (Núcleo de Desertificação do Seridó Potiguar), que já possui diversos estudos”, destaca Saulo.
E, se uma decisão política mudou o nome da região, para o pesquisador a preservação e a recuperação desse pedaço da Caatinga brasileira também é questão política. “É possível recuperar as áreas degradadas do Seridó e do Semiárido como um todo. Porém, o maior desafio é conscientizar os gestores públicos a investirem em ações ambientais”, aponta. E dispara: “o que percebo é que eles não querem investir em ações de médio e longo prazo, mas preferem continuar com o carro-pipa, pois dá mais votos”.
O professor ainda acrescenta que “a seca é um fenômeno climático, mas, também, político. Ela é causada pela escassez de chuvas em determinados períodos, mas, principalmente, pela má gestão das águas, que tem muito a ver com a questão da degradação”. Afinal, é curioso como ainda hoje, no Nordeste, há períodos em que falta água e outros em que o excesso de chuvas é problemático. Por isso, adverte que “se o atual estágio de degradação continuar nesse ritmo, dentro de alguns anos, as cidades do Seridó perderão, cada vez mais, sua importância estratégica, havendo grande migração de sua população para as capitais”.
Saulo Vital (Foto: Arquivo Pessoal)
Saulo Roberto de Oliveira Vital possui doutorado em Geociências pela Universidade Federal de Pernambuco - UFPE, mestrado em Geografia pela mesma instituição e graduação em Geografia pela Universidade Federal da Paraíba - UFPB. Atualmente, é professor adjunto do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN. Também é professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Geografia da UFRN, do Programa de Pós-Graduação em Geografia da UFPB, professor colaborador do Mestrado Profissional em Geografia da UFRN e líder do Grupo de Pesquisa em Gerenciamento dos Riscos e Desastres Naturais - Genat.
IHU On-Line – O que é o Seridó e como compreender a importância desse ecossistema?
Saulo Vital – O Seridó não é um ecossistema, mas uma antiga microrregião do estado do Rio Grande do Norte. Nessa divisão regional, o Seridó fazia parte da Mesorregião Central Potiguar, sendo subdividida em Seridó Ocidental e Seridó Oriental. A referida designação também tem uma importância histórica e cultural muito grande para a população local, uma vez que transmite uma grande conotação de identidade do “seridoense”.
Atualmente, com a Nova Divisão Regional do IBGE, foram estabelecidas as regiões intermediárias e imediatas, extinguindo o Seridó. Porém, como dito anteriormente, devido à forte identidade cultural e histórica, permanece o termo de maneira informal. Além disso, nossos estudos de Geografia Física ainda têm sido norteados por essa antiga regionalização, uma vez que a atual foi feita com base em critérios exclusivamente geoeconômicos.
Mapas do Nordeste Brasileiro (Fonte dos mapas: Reprodução)
Região do Seridó no mapa do Brasil (Fonte: Wikimedia Commons)
Mapa do RN por regiões (Mapa elaborado por Diego Tenório)
Mapa das atrações do Seridó (Foto: Turismo BA)
IHU On-Line – Por que o Seridó está ameaçado?
Saulo Vital – Talvez a designação “ameaçado” transmita grande alarde. Porém, podemos afirmar que o atual estágio de degradação da paisagem na região inspira cuidados por parte das autoridades públicas. Atualmente, a região do Seridó possui um Núcleo de Desertificação (Núcleo de Desertificação do Seridó Potiguar), que já possui diversos estudos. Por falta de estudo os gestores públicos não terão desculpa.
IHU On-Line – Como compreender a relação entre o ciclo do algodão e a degradação do Seridó? Quais os desafios para romper ou reinventar esse ciclo?
Saulo Vital – O ciclo do algodão, que perdurou durante muitos anos na região, foi responsável por grande parte dessa degradação. Atualmente, essa atividade não tem mais tanta expressividade, mas outras formas de degradação persistem e vêm causando sérios danos à paisagem.
Podemos citar como exemplo a agropecuária, que vem se desenvolvendo de forma insustentável, ou seja, sem adoção de medidas de manejo adequadas. Hoje, no Seridó, temos alguns poucos exemplos de práticas agroecológicas, a exemplo do Assentamento Trangola, localizado no município de Currais Novos, no Rio Grande do Norte, de modo que iniciativas dessa natureza precisam ser reproduzidas.
Visão aérea do atual estágio de degradação da Caatinga no Serido Potiguar, nas imediações dos municípios de Acari e Cruzeta (Foto: Saulo Vital)
IHU On-Line – Como fazer frente às outras ameaças ao Seridó?
Saulo Vital – Depende do ponto de vista. No que tange à abordagem do nosso grupo de pesquisa, que é a dos riscos, podemos citar, também, os problemas de ordem urbana, tais como alagamentos e inundações. Sabe-se que o grande problema do semiárido brasileiro é a estiagem, mas também é sabido que, nesse domínio, existem chuvas de verão e outono, bastante concentradas (se concentram em poucos meses), que vêm causando desastres hidrometeorológicos e geomorfológicos, principalmente na zona urbana.
IHU On-Line – O mundo tem voltado os olhos para a Amazônia e o Pantanal, em função das grandes queimadas. Mas qual a situação da Caatinga brasileira, em geral, em termos de degradação?
Saulo Vital – A situação da Caatinga brasileira é tão grave quanto a que ocorre na Amazônia e no Pantanal. Por ser um ambiente adaptado aos rigores da estiagem (que é uma característica natural), muitas vezes, a Caatinga é tida como uma paisagem inóspita e pouco diversa. Porém, essa visão é equivocada. A Caatinga possui uma biodiversidade importantíssima, que precisa ser preservada. Atualmente, os níveis de degradação desse domínio beiram os 50% ou mais, o que é bastante considerável. Maiores informações podem ser obtidas no Atlas das Caatingas, elaborado pela Fundação Joaquim Nabuco.
IHU On-Line – Que relação podemos estabelecer entre a seca na região e a degradação do Seridó?
Saulo Vital – A seca é um fenômeno climático, mas, também, político. Ela é causada pela escassez de chuvas em determinados períodos, mas, principalmente, pela má gestão das águas, que tem muito a ver com a questão da degradação. Com a perda da cobertura vegetal, a erosão aumenta, causando, também, o aumento da deposição de sedimentos, o que, por sua vez, ocasiona assoreamento dos rios e reservatórios naturais e artificiais.
O problema da erosão e sedimentação acelerada no semiárido é bastante grave, uma vez que diz respeito a um ambiente que já tem suas limitações acerca dos recursos hídricos. No entanto, se a gestão das águas fosse feita de maneira correta, seria possível manter um bom fornecimento, uma vez que a região do Seridó, por exemplo, possui uma média de 700 a 800 mm anuais.
IHU On-Line – Quais os desafios para a concepção e implementação de outras práticas agrícolas na região do Seridó? Existem experiências bem-sucedidas de agricultura sustentável na região?
Saulo Vital – Sim. Como falei anteriormente, temos o exemplo do Assentamento Trangola em Currais Novos, onde os assentados construíram obstáculos para a retenção da água, no intuito de contribuir com o aumento de infiltração e reconstituição dos solos, dentre outras iniciativas agroecológicas.
Nesse sentido, o desafio maior diz respeito à implementação dessas práticas em outros diversos locais do Seridó, que precisa de interesse e de apoio dos políticos locais. Nunca fomos procurados por nenhum.
Área erodida nas imediações de Ipueira (Foto: Saulo Vital)
IHU On-Line – Diante do atual cenário, quais os maiores desafios para recuperação de área degradada na Caatinga, especialmente no Seridó?
Saulo Vital – É possível recuperar as áreas degradadas do Seridó e do Semiárido como um todo. Porém, o maior desafio é conscientizar os gestores públicos a investirem em ações ambientais. O que percebo é que eles não querem investir em ações de médio e longo prazo, mas preferem continuar com o carro-pipa, pois dá mais votos.
IHU On-Line – Como avalia a gestão do poder público na região do Seridó no que diz respeito a políticas de preservação ambiental?
Saulo Vital – Muito ruim. Precisa melhorar bastante. Como disse, nunca fomos procurados por nenhuma autoridade do poder público. Isso me passa a impressão que não há interesse em investir no desenvolvimento da região, e isso passa pelo cuidado com o meio ambiente.
Para não ser injusto, fomos procurados uma vez por um gestor que ficou por pouco tempo no cargo, em função do retorno de um outro gestor que havia sido temporariamente afastado. Ele nos procurou para iniciar uma parceria no tocante à concessão de bolsas para nossos estudantes/pesquisadores, no intuito de realizar pesquisas ambientais que buscassem soluções para esses problemas. Porém, não quero entrar em detalhes sobre esse assunto, para não gerar desconfortos interinstitucionais.
Área desertificada nas imediações do município de Equador, no Núcleo de Desertificação do Seridó Potiguar (Foto: Saulo Vital)
IHU On-Line – O que uma degradação drástica do Seridó pode acarretar?
Saulo Vital – Pode acarretar o colapso da região. O que observamos atualmente é que muitos jovens seridoenses não querem mais ficar na região, como consequência da ausência de políticas públicas de austeridade e desenvolvimento. E isso passa por investimentos na melhoria das condições ambientais, sim!
Um exemplo bem prático é que o próprio comércio e turismo da região se torna mais vicejante nos períodos chuvosos. A água é vida e, portanto, está acabando por causa da degradação da Caatinga. Se o atual estágio de degradação continuar nesse ritmo, dentro de alguns anos, as cidades do Seridó perderão, cada vez mais, sua importância estratégica, havendo grande migração de sua população para as capitais, o que aumentará ainda mais a pressão nessas cidades. O cuidado com o meio ambiente é uma emergência não apenas do Seridó, mas global.
IHU On-Line – Quais os desafios para se repensar o desenvolvimento urbano, para que a história de degradação do Seridó não se repita?
Saulo Vital – Os governantes locais precisam adotar práticas de planejamento e ordenamento territorial, tanto na zona rural (que responde por grande parte dos municípios do Seridó) quanto na zona urbana (que ainda está em fase de expansão, mesmo que tímida).
Área agropastoril degradada com presença de velame (Foto: Saulo Vital)
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Saulo Vital – Espero ter ajudado com indicações de melhorias na região. Nós da universidade identificamos o problema, pesquisamos (aplicando métodos próprios da ciência), alcançamos resultados e os divulgamos através da extensão. A partir daí, não podemos fazer mais nada, se não houver financiamento para ações de intervenção, e isso só pode ser viabilizado pelos governantes ou pela iniciativa privada.