O nebuloso mercado de exportação de jumentos para a China. Entrevista especial com Kátia Regina Freire Lopes

Jumentos | Foto: Vida animal

27 Fevereiro 2019

A exportação brasileira de jumentos para a China é um processo obscuro, pois não existem informações claras sobre quem são os criadores desses animais, como se dá o abate e em que condições a exportação é feita. As informações existentes, segundo Kátia Lopes, agrônoma, veterinária e sócia-fundadora da ONG Defesa da Natureza e dos Animais, de Mossoró-RN, têm origem em “relatos” das comunidades rurais, que denunciam a morte de jumentos por fome em cidades do interior do Nordeste, antes de eles serem exportados para a China. “Não temos informações exatas sobre o modelo de negócio, se são arrendamentos ou outros tipos de contrato, mas todos os empreendimentos que surgiram na região sempre tiveram o viés de atender o mercado chinês”, diz.

Segundo ela, “apesar das notícias de que está se incentivando o criatório, isso não tem se concretizado. Não há políticas públicas neste sentido, tampouco iniciativas privadas, especialmente num cenário de poucas chuvas nos últimos anos. Não acreditamos que esteja havendo criatórios, mas apenas capturas de jumentos”. Na prática, ressalta, “capturar” os jumentos que são abandonados na estrada e “deixá-los morrer” tem sido “mais simples que manter um criatório”.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail para a IHU On-Line, Kátia informa que “o couro do jumento possui um grande valor para o mercado internacional, especialmente o chinês. Com animais que foram pegos das estradas ou de outras regiões, o couro termina sendo o único produto com valor comercial, pois a carne e outros derivados que iriam para indústria alimentícia e farmacêutica tornam-se inviáveis já que não há como rastrear a sanidade dos animais”.

De acordo com a veterinária, os dados sobre o número de jumentos exportados para a China não são confiáveis e variam de 50 mil a 1 milhão de cabeças por ano. Apenas no governo Dilma, o Ministério da Agricultura mencionou a exportação de 300 mil animais por ano. “Esses são números incompatíveis com a população de jumentos disponíveis e com a inexistência de uma cadeia produtiva que sustente qualquer exploração comercial, seja de animais para abate, seja para produção de outros produtos, como leite”, assegura. Apesar da falta de informação, lamenta, “o brasileiro que entrar nesse mercado encontrará um verdadeiro negócio na China: não precisa comprar animais (é só capturar sem nenhuma fiscalização), não precisa manter os animais (é só deixá-los morrer sem comida e água, escapando ainda do marketing negativo advindo do abate dos animais). Investimento quase zero e lucro com comprador certo”.

Kátia Regina Freire Lopes é graduada em Agronomia pela Escola Superior de Agricultura de Mossoró - ESAM, graduada em Medicina Veterinária, mestra e doutora em Ciência Animal pela Universidade Federal Rural do Semiárido – UFERSA. Sua tese de doutorado, intitulada “Caracterização e conservação da população de folículos ovarianos pré-antrais de jumenta da raça nordestina”, trata sobre a conservação genética de jumentas nordestinas. Foi professora da ESAM, da UFERSA e atualmente leciona na Universidade Potiguar, no Rio Grande do Norte - RN.


Confira a entrevista.

IHU On-Line - Recentemente foi publicada uma matéria na imprensa sobre a morte de 200 jumentos em Canudos, na Bahia, que morreram de fome, mas seriam abatidos e exportados para a China. A senhora tem informações sobre esse caso? Esse tipo de prática tem sido comum no Nordeste?

Kátia Regina Freire Lopes - Embora não tenhamos presenciado estes fatos, temos uma relação forte com muitas comunidades rurais e relatos de situações como esta, de fato, existem. Não é difícil imaginar os motivos para este tipo de situação.

O couro do jumento possui um grande valor para o mercado internacional, especialmente o chinês. Com animais que foram pegos das estradas ou de outras regiões, o couro termina sendo o único produto com valor comercial, pois a carne e outros derivados que iriam para indústria alimentícia e farmacêutica tornam-se inviáveis já que não há como rastrear a sanidade dos animais. Capturar os animais e deixá-los morrer é mais simples que manter um criatório.

IHU On-Line - A senhora tem informações sobre fazendas nordestinas que são arrendadas para os chineses, nas quais supostamente estão criando jumentos para serem exportados para a China?

Kátia Regina Freire Lopes - Não temos informações exatas sobre o modelo de negócio, se são arrendamentos ou outros tipos de contrato, mas todos os empreendimentos que surgiram na região sempre tiveram o viés de atender o mercado chinês. Isto não é fato novo: desde a tentativa de acordo com o Governo do Estado do Rio Grande do Norte - RN, todos os empreendimentos como os da Bahia e os do interior do RN têm o mercado chinês como clientes ou investidores.

Contudo, apesar das notícias de que está se incentivando o criatório, isso não tem se concretizado. Não há políticas públicas neste sentido, tampouco iniciativas privadas, especialmente num cenário de poucas chuvas nos últimos anos. Não acreditamos que esteja havendo criatórios, mas apenas capturas de jumentos.

Cerca de 200 jumentos foram encontrados mortos em uma fazenda na cidade de Canudos, a 372 km de Salvador
(Foto: Divulgação)

IHU On-Line – Mas existem situações de abates irregulares no Nordeste?

Kátia Regina Freire Lopes - O Nordeste não é diferente do resto do Brasil: possui um número de abatedouros regularizados abaixo da demanda da população. No interior do Brasil o abate é feito nas propriedades rurais, nos mercados públicos, nos pequenos açougues, há abate de bovinos, caprinos, ovinos, aves, sem nenhuma fiscalização. Já atendemos alguns casos na zona rural de Mossoró, onde houve abate especificamente de jumentos, com animais abatidos e carne extraída obviamente para a comercialização e o consumo. Perceba-se que, tecnicamente, deixar os animais morrerem, apesar de ser uma expressão de maus-tratos, não é caracterizado como abate.

IHU On-Line - As notícias também informam que aumentou o número de jumentos abandonados no Nordeste. Que destino é dado a esses jumentos e como eles são tratados?

Kátia Regina Freire Lopes - Não cremos também neste fato. Não há criatórios, portanto não há aumento de abandonos. Por outro lado, a população de jumentos já abandonada obviamente reproduz-se, mas com os últimos anos de seca o crescimento desta população não é fato razoável. Não temos acesso a dados recentes da Polícia Rodoviária Federal - PRF e das polícias estaduais, mas acreditamos que, se este crescimento fosse fato mensurável, essas polícias teriam divulgado esses dados.

Os animais apreendidos hoje são destinados oficialmente às áreas públicas e privadas, que deveriam conter e manter esses animais. Algumas dessas propriedades de fato cumprem este papel, apesar de dificuldades e condições que, por vezes, são questionadas. Outras se propõem a ser santuários, mas não passam de cenários montados para receberem animais, atenção da imprensa e doações.

A população rural relata ainda que muitos animais são simplesmente deslocados das proximidades das vias de maior fluxo (como BRs) para outras de menor fluxo. Já vimos caminhões de uma prefeitura soltando animais em outros municípios. Mesmo com a intenção de minimizar o risco, troca-se, nesses casos, o domicílio do animal abandonado.

IHU On-Line - Como e em que contexto tem se dado a exportação de jumentos para a China?

Kátia Regina Freire Lopes - Não nos é possível fornecer informações a esse respeito por não termos vistoriado nenhum empreendimento do tipo. Um desses empreendimentos que iria começar em 2018 no interior do RN, aparentemente naufragou.

IHU On-Line - Qual é a finalidade da exportação de jumentos para a China? Que destino os chineses dão a esses animais?

Kátia Regina Freire Lopes - Apesar de o consumo de carne de jumento ser técnica e culturalmente aceitável na China, as barreiras sanitárias não permitem a exportação de carnes não rastreáveis. Sobra, então, o couro, e componentes da pele e do couro, que são matéria-prima na medicina tradicional chinesa. A China possui uma grande população de jumentos em criatórios, e receber animais vivos, conforme se sugeriu no passado, é algo que não parece lógico, pois aumentaria demais os custos de produção/transporte. Exportar apenas o material que de fato tem valor comercial faz mais sentido.

O brasileiro que entrar nesse mercado encontrará um verdadeiro negócio na China: não precisa comprar animais (é só capturar sem nenhuma fiscalização), não precisa manter os animais (é só deixá-los morrer sem comida e água, escapando ainda do marketing negativo advindo do abate dos animais). Investimento quase zero e lucro com comprador certo.

IHU On-Line – Os jumentos são utilizados para quais testes de cosméticos?

Kátia Regina Freire Lopes - A medicina tradicional chinesa possui uma série de fármacos baseados em plantas exóticas e partes de animais, como barbatana de tubarão e pênis de animais diversos, inclusive um produto chamado Ejiao, considerado elemento importante para a circulação sanguínea, menstruação irregular, anemia, insônia ou vertigens, dentre uma lista extensa de outras enfermidades. O ejiao é feito com gelatina da pele do burro (decorrente do recozimento da pele e outros processos físico-químicos). No mercado, 250 g de ejiao custam cerca de US$180,00, como é possível observar aqui.

IHU On-Line – Existem dados sobre quantos criatórios de jumentos existem no Nordeste e sobre quantos jumentos o Brasil exporta por ano para a China?

Kátia Regina Freire Lopes - Não temos dados sobre o aumento de criatórios ou da população confinada. É fato que na última década os esforços de conservação do animal e do estudo de técnicas modernas de manejo têm ocorrido, mas são estudos de longo prazo que não terão impacto econômico e na população dos animais no curto prazo.

Não há transparência nos números comerciais acerca do jumento, independentemente de qualquer número já citado no passado: de 50 mil cabeças/ano a até 1 milhão de cabeças/ano, vindos de fontes diversas. A ex-ministra Kátia Abreu, ministra da Agricultura, Pecuária e Abastecimento durante o segundo governo de Dilma Rousseff, em visita à China comentou números na casa dos 300 mil animais/ano. Esses são números incompatíveis com a população de jumentos disponíveis e com a inexistência de uma cadeia produtiva que sustente qualquer exploração comercial, seja de animais para abate, seja para produção de outros produtos, como leite.

Não há planejamento e técnicas de manejo adequados para o jumento para fins de abate. Qualquer exploração da espécie e das raças nacionais são antieconômicas, antiéticas e beiram a ilegalidade.

IHU On-Line - Alguns especialistas dizem que devido ao aumento da exportação de jumentos para a China, há risco de extinção dos jumentos no país. É possível considerar esse tipo de informação, uma vez que não há dados sobre o número de animais exportados?

Kátia Regina Freire Lopes - O risco é óbvio. Os dados mais confiáveis da população de jumentos são oriundos dos censos rurais do IBGE. Esses dados demonstram uma queda constante do número de animais. Se considerarmos o longo ciclo gestacional do jumento, dentre outras dificuldades técnicas, inclusive a convivência com a seca, qualquer abate, mesmo em escala reduzida, tem um potencial de dano à população gigantesco, seja em número de indivíduos, seja em diminuição da diversidade genética.

IHU On-Line - Em 2012 a senhora nos concedeu uma entrevista na qual criticava um protocolo assinado entre a China e a Secretaria de Agricultura do Rio Grande do Norte em 2004 para a exportação de jumentos, porque o protocolo previa “a exportação de animais vivos para a livre seção na utilização de cosméticos”. Esse protocolo continua em vigência?
IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?

Kátia Regina Freire Lopes - Apenas agradecer a todos que têm se preocupado com esses animais que construíram este país literalmente nas costas e que permaneceram escondidos por tanto tempo.

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