26 Outubro 2015
“A PEC 215 é uma aberração inconstitucional, pois retira direitos fundamentais de minorias e viola a separação de poderes”, assevera o advogado do Instituto Socioambiental – ISA.
Foto: juventuderevolucao.org |
Segundo ele, a “ofensiva” contra as comunidades é retomada porque “a PEC é o que há de pior em relação às ameaças legislativas contra esses direitos. Por isso, e considerando a densidade numérica da bancada ruralista, a ofensiva que observamos tem o claro objetivo de ‘esticar a corda’ – ameaçar a todos com a sua possível e iminente aprovação – para barganhar questões diversas, como a alteração dos procedimentos de demarcação de Terras Indígenas visando à sua paralisação definitiva”.
O advogado do Instituto Socioambiental – ISA frisa ainda que a PEC 215 “é a demonstração clara da disputa por terra que ocorre hoje no país. De um lado, determinados proprietários, principalmente os latifundiários, pretendem expandir suas áreas de produção. De outro, povos indígenas e comunidades tradicionais, dependentes da terra para continuar a sobreviver física e culturalmente, ainda lutam pela efetivação dos seus direitos territoriais, garantidos pela Constituição, mas ainda não cumpridos na integralidade pelo Poder Público (hoje são 228 Terras Indígenas pendentes de demarcação)”. Entre outros pontos, explica, a PEC 215 pretende “(i) paralisar a demarcação de novas Terras Indígenas, a criação de Unidades de Conservação e a titulação de Territórios remanescentes de Quilombos, o que se daria pela transferência de competência, do Executivo para o Legislativo, para o reconhecimento formal dessas áreas protegidas; e (ii) permitir que atividades de altíssimo impacto socioambiental (mineração, hidrelétricas, estradas, ferrovias etc.) sejam realizadas dentro das Terras Indígenas já existentes. A questão é que há flagrantes inconstitucionalidades na proposta”.
Na entrevista a seguir, Guetta também explica as diferenças entre o texto anterior da PEC 215, que previa a transferência de competência, do Executivo para o Legislativo, para a demarcação de Terras Indígenas, criação de Unidades de Conservação e titulação de Territórios Quilombolas, e o novo texto, de autoria do deputado Osmar Serraglio. De acordo com o advogado, “o atual relator manteve essa disposição e incluiu outras várias ameaças. Entre as principais, estão a abertura das Terras Indígenas para a realização de atividades de impacto, o arrendamento e permuta de Terras Indígenas e o estabelecimento de uma série de exceções ao direito de usufruto exclusivo dos povos indígenas às suas Terras”.
Maurício Guetta é graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP e mestre em Direito Ambiental pela mesma instituição e pela Université Paris 1. Atualmente é advogado do Instituto Socioambiental – ISA e professor convidado do Curso de Direito Ambiental da Escola Superior da Advocacia no Rio de Janeiro - OAB/RJ e professor-assistente do Curso de Especialização em Direito Ambiental da COGEAE-PUC/SP.
Confira a entrevista.
Foto: Página pessoal do Facebook
IHU On-Line - Em que contexto a discussão da PEC 215 foi retomada?
Maurício Guetta - A Comissão Especial da Câmara dos Deputados que analisa a PEC 215 é composta majoritariamente por deputados da bancada ruralista, que elegeram um Presidente ruralista e um Relator ruralista. Digo isso para esclarecer que são esses parlamentares que determinam o que acontece e o que deixa de acontecer com a PEC 215 nesta fase do processo legislativo. Os deputados contrários à proposta, em minoria, têm feito um trabalho excelente e combativo na contenção da proposição, mas não possuem força política para controlar os rumos da Comissão. Nesse contexto, a retomada das sessões da Comissão nesses últimos dias denota uma clara ofensiva ruralista contra os direitos territoriais indígenas, além dos direitos das comunidades quilombolas e dos direitos de natureza ambiental, que pertencem a toda a coletividade brasileira. E por que essa ofensiva agora? Bem, a PEC é o que há de pior em relação às ameaças legislativas contra esses direitos. Por isso, e considerando a densidade numérica da bancada ruralista, a ofensiva que observamos tem o claro objetivo de “esticar a corda” – ameaçar a todos com a sua possível e iminente aprovação – para barganhar questões diversas, como a alteração dos procedimentos de demarcação de Terras Indígenas visando à sua paralisação definitiva. Tudo isso num contexto de fragilidade política do Governo Federal e da Presidência da Câmara, fato que supostamente aumentaria o poder de barganha dos ruralistas. Essa é a estratégia deles. Mas o movimento indígena possui força e está atento a todas essas movimentações.
IHU On-Line - Quais são os interesses que estão por trás da aprovação da PEC 215?
Maurício Guetta - A PEC 215 é a demonstração clara da disputa por terra que ocorre hoje no país. De um lado, determinados proprietários, principalmente os latifundiários, pretendem expandir suas áreas de produção. De outro, povos indígenas e comunidades tradicionais, dependentes da terra para continuar a sobreviver física e culturalmente, ainda lutam pela efetivação dos seus direitos territoriais, garantidos pela Constituição, mas ainda não cumpridos na integralidade pelo Poder Público (hoje são 228 Terras Indígenas pendentes de demarcação). Em apertado resumo, a PEC 215 pretende (i) paralisar a demarcação de novas Terras Indígenas, a criação de Unidades de Conservação e a titulação de Territórios remanescentes de Quilombos, o que se daria pela transferência de competência, do Executivo para o Legislativo, para o reconhecimento formal dessas áreas protegidas; e (ii) permitir que atividades de altíssimo impacto socioambiental (mineração, hidrelétricas, estradas, ferrovias etc.) sejam realizadas dentro das Terras Indígenas já existentes. A questão é que há flagrantes inconstitucionalidades na proposta. É uma aberração inconstitucional, pois retira direitos fundamentais de minorias e viola a separação de poderes.
“Esquece-se que a Câmara dos Deputados é a casa do povo” |
Os ruralistas sabem disso, mas insistem em seu avançar na Câmara para ampliar seu poder de barganha, como mencionei. O que todos precisam saber é que vivemos numa democracia. E o que marca uma democracia, muito mais do que a prevalência da vontade da maioria, é o respeito aos direitos das minorias. A própria Constituição expressa com clareza essa impossibilidade de abolir direitos e garantias fundamentais.
IHU On-Line - As notícias da imprensa informam que a sessão da comissão da PEC 215 estava marcada para um dos plenários das comissões na semana passada, onde mais de 20 líderes indígenas aguardavam o início dos trabalhos, mas ela foi transferida e os indígenas não puderam participar. Como você avalia esse tipo de atitude?
Maurício Guetta - Essa é uma estratégia antiga da bancada ruralista. Visa claramente impedir a participação dos indígenas nas sessões e, com isso, reduzir a pressão sobre seus ombros. Quando isso ocorre, esquece-se que a Câmara dos Deputados é a casa do povo. Daí os reiterados protestos tanto dos indígenas quanto dos parlamentares defensores da causa indígena. O fato é que o sistema jurídico impede esse tipo de restrição, impede que seja negado acesso às pessoas interessadas em acompanhar as sessões legislativas de seu interesse, como vem decidindo o Supremo Tribunal Federal em casos similares. Se for necessário, obteremos uma decisão da Corte Suprema para garantir o acesso dos povos indígenas à Câmara.
IHU On-Line - Em que consiste o novo texto da PEC 215 elaborado pelo deputado Osmar Serraglio (PMDB-PR)? Em que aspectos ele difere do texto anterior?
Maurício Guetta - O texto inicial da PEC 215, apresentado no ano 2000, previa “apenas” a transferência de competência, do Executivo para o Legislativo, para a demarcação de Terras Indígenas, criação de Unidades de Conservação e titulação de Territórios Quilombolas. O novo texto do deputado Osmar Serraglio, atual relator, manteve essa disposição e incluiu outras várias ameaças. Entre as principais, estão a abertura das Terras Indígenas para a realização de atividades de impacto, o arrendamento e permuta de Terras Indígenas e o estabelecimento de uma série de exceções ao direito de usufruto exclusivo dos povos indígenas às suas Terras. Como o conteúdo da PEC 215 é absolutamente inaceitável, não há negociação entre os deputados contrários e os que são favoráveis. As sessões seguem sempre a lógica do embate político, com discursos inflamados de ambos os lados.
IHU On-Line - Como os indígenas estão reagindo à PEC 215?
Maurício Guetta - A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB, organização que unifica nacionalmente os movimentos indígenas regionais e locais, tem ampliado a cada dia a sua resistência contra a PEC 215, inclusive realizando um trabalho de conscientização das mais diversas etnias para que estejam devidamente informadas sobre essa ameaça aos seus direitos. Com isso, novas e antigas lideranças têm se organizado para se manifestar. Mais do que isso, o movimento indígena e as organizações de apoio, como o Instituto Socioambiental – ISA, têm buscado sensibilizar a sociedade como um todo para as ameaças vividas pelos povos indígenas. Afinal, acreditamos que a sociedade não ficará inerte frente às situações dramáticas vividas por alguns povos, como os Guarani-Kaiowá em Mato Grosso do Sul, bem como às ameaças de retirada de direitos dessas populações. Confiamos na humanidade das pessoas, no seu senso de solidariedade; ainda mais em se tratando de populações historicamente violentadas, como são os povos indígenas.
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“Se for necessário, obteremos uma decisão da Corte Suprema para garantir o acesso dos povos indígenas à Câmara” |
IHU On-Line - Como avalia a proposta do deputado Sarney Filho, de que a PEC 215 deveria ser abandonada e em seu lugar seria apresentada uma PEC da Indenização, estabelecendo que as pessoas que compraram de boa-fé terras indígenas serão indenizadas?
Maurício Guetta - Já existe uma proposta concreta sobre a indenização dos proprietários em casos de demarcação de Terras Indígenas. Trata-se da PEC 132/2015, aprovada por unanimidade no Senado e que agora se encontra pendente de apreciação pela Câmara. Evidente que essa PEC 132 pode trazer uma solução para os casos de conflitos fundiários em Terras Indígenas. Com ela aprovada, as Terras Indígenas voltariam a ser demarcadas e os proprietários de terras seriam devidamente indenizados, saída que atualmente é vedada pela Constituição. É a chamada “PEC da Conciliação”, em detrimento da PEC 215, denominada de “PEC do Conflito”.
IHU On-Line - Quais as implicações para os povos indígenas caso a PEC 132 seja aprovada?
Maurício Guetta - Tudo depende do texto que será aprovado ao final. Caso ele seja inadequado, a PEC pode acabar não solucionando nada; nem a retomada das demarcações pelo Estado e nem a devida indenização aos proprietários. Se o texto estiver adequado, pode servir como mecanismo para a pacificação dos conflitos verificados no campo.
Por Patricia Fachin
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PEC 215: a expressão da disputa de terras no país. Entrevista especial com Maurício Guetta - Instituto Humanitas Unisinos - IHU