04 Dezembro 2014
“O problema do déficit hídrico acaba surgindo, porque naturalmente existe uma situação de deficiência hídrica e, somado a isso, há um evento climático extremo, o que faz com que esses problemas de certa forma se precipitem”, afirma o engenheiro.
Foto: www.sjc.sp.gov.br |
“A lei de água estabelece que o abastecimento humano é prioritário”, lembra Javier Tomasella ao comentar o acordo assinado entre os estados de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro para fazer a transposição do Rio Paraíba do Sul, localizado nos três estados, a fim de resolver a crise de abastecimento hídrico na região metropolitana de São Paulo.
O engenheiro civil explica que, tecnicamente, se “pegarmos a região metropolitana de São Paulo e dividirmos pelo número de habitantes, vamos notar que o déficit hídrico por habitante é superior inclusive ao semiárido brasileiro. Embora essa região tenha certa oferta de recursos hídricos, o fato de a população estar concentrada na região metropolitana faz com que a disponibilidade efetiva de água por habitante seja muito baixa. Então, tem uma situação de déficit hídrico que obriga importar água de outras bacias”.
Na avaliação dele, a transposição do Rio Paraíba do Sul terá impactos, porque toda obra hidráulica gera implicações ambientais. Contudo, não se pode comparar essa transposição à polêmica transposição do Rio São Francisco. “O que está projetado é uma pequena fração. É bom dizer que moro no município de Cachoeira Paulista, na Bacia do Paraíba do Sul, há mais de 20 anos; de certa forma sou parte do ecossistema. O que tem de ser pensado é quanto cinco metros cúbicos de água significam em termos de vazão do Rio Paraíba. O governo está falando em extrair ou desviar uma fração relativamente pequena de água. São apenas cinco metros sobre duzentos”, pontua, na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por telefone.
Independente de a transposição ser feita, Tomasella sugere que um conjunto de medidas seja realizado. Uma das medidas diz respeito ao uso e reúso da água. “Muito se fala, na esfera acadêmica, sobre a necessidade de reúso, mas na prática nós vemos que os municípios utilizam muito pouco esse tipo de técnica. Logo, essa questão de uso e reúso não tem sido muito explorada, embora na Europa e nos Estados Unidos seja frequentemente comum. Além disso, a cultura brasileira é de que a água é um recurso infinito e abundante, mas essa visão precisa ser revista”, frisa. Outro ponto que deve ser analisado é a infraestrutura, por conta da perda de água. “Calcula-se que as perdas variam de 30 a 50% da água tratada, e essa é uma questão que precisa ser corrigida”. E acrescenta: “O tratamento do esgoto é o primeiro passo para garantir a qualidade da água. Não adianta dizer ‘vai faltar água’, mas não cuidar do pouco que se tem”.
Javier Tomasella é graduado em Engenharia de Recursos Hídricos pela Universidad Nacional Del Litoral, na Argentina, mestre e doutor em Engenharia Civil pelo Instituto de Pesquisas Hidráulicas. Atualmente é tecnologista do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais, onde realiza atividades de pesquisa e desenvolvimento.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Como o senhor recebeu a notícia de que os governos de São Paulo, Rio e Minas firmam acordo sobre transposição da bacia do Paraíba do Sul? Do ponto de vista da engenharia civil hidráulica, qual é a viabilidade desta obra?
Javier Tomasella – De fato, não foi surpresa, uma vez que a lei de água estabelece que o abastecimento humano é prioritário. De uma maneira técnica, se pegarmos a região metropolitana de São Paulo e dividirmos pelo número de habitantes, vamos notar que o déficit hídrico por habitante é superior inclusive ao semiárido brasileiro. Embora essa região tenha certa oferta de recursos hídricos, o fato de a população estar concentrada na região metropolitana faz com que a disponibilidade efetiva de água por habitante seja muito baixa. Então, tem uma situação de déficit hídrico que obriga importar água de outras bacias.
O que precipita esse problema é o fato de o Sudeste ter passado por uma seca histórica — há registros que falam na pior seca dos últimos 80 anos — e é evidente que diante dessa situação o problema do déficit hídrico acaba surgindo, porque naturalmente existe uma situação de deficiência hídrica e, somado a isso, há um evento climático extremo, o que faz com que esses problemas de certa forma se precipitem.
IHU On-Line - A transposição resolverá o déficit hídrico? Essa é a melhor alternativa?
Javier Tomasella – Várias medidas técnicas podem ser atacadas conjuntamente. Uma delas é o uso e reúso da água, que no Brasil ainda é pouco feito. Basicamente se trata o esgoto e se reutiliza o recurso hídrico. Muito se fala, na esfera acadêmica, sobre a necessidade de reúso, mas na prática nós vemos que os municípios utilizam muito pouco esse tipo de técnica. Logo, essa questão de uso e reúso não tem sido muito explorada, embora na Europa e nos Estados Unidos seja comum. Além disso, a cultura brasileira é de que a água é um recurso infinito e abundante, mas essa visão precisa ser revista. Até tenho uma ideia de como realmente fazer um processo educativo para as pessoas entenderem a necessidade de usar racionalmente a água. Também temos questões de infraestrutura, basicamente perdas na própria rede de condução da água, na rede de abastecimento. Calcula-se que as perdas variam de 30 a 50% da água tratada, e essa é uma questão que precisa ser corrigida; não adianta ficar só atacando. E, claro que, finalmente, a questão da transposição é também uma solução técnica, mas uma questão técnica que deve ser utilizada, uma vez que não pode faltar água na região metropolitana de São Paulo. Essa para mim é uma premissa básica.
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“Se olharmos a questão de tratamento de esgoto em todos os estados do país, vemos que ainda há uma deficiência muito grande neste aspecto” |
IHU On-Line - Quais são as implicações da transposição especificamente para a bacia do Paraíba do Sul?
Javier Tomasella – O que está projetado é uma pequena fração. É bom dizer que moro no município de Cachoeira Paulista, na Bacia do Paraíba do Sul, há mais de 20 anos; de certa forma sou parte do ecossistema. O que tem de ser pensado é quanto cinco metros cúbicos de água significam em termos de vazão do Rio Paraíba. O governo está falando em extrair ou desviar uma fração relativamente pequena de água. São apenas cinco metros sobre duzentos.
A transposição feita no Rio de Janeiro com o desvio para o sistema Guandu foi algo em torno de 100 ou 150 metros cúbicos por segundo. Nesse sentido, se é para colocar em perspectiva uma transposição e outra, a do Guandu é realmente muito mais impactante sobre o Rio Paraíba. Só que essa transposição foi feita em outra época, quando as questões ambientais não eram motivo de preocupação como são hoje em dia.
É claro que como a bacia tem usos múltiplos, a transposição terá algum impacto, inclusive em uma pequena queda na geração de energia, e essa é uma questão que ainda não foi analisada.
Foto: www.odiariodecampos.com.br |
IHU On-Line - Já existem estudos ambientais sobre como fazer a transposição? Que estudos deveriam ser feitos antes da transposição?
Javier Tomasella – Não conheço em detalhe o projeto para saber como a questão ambiental foi tratada; desconheço esse estudo, se é que ele existe. Mas imagino que a lei ambiental já estabelece uma série de requisitos e o governo do estado de São Paulo tem de atender a esses requisitos para realmente fazer esse tipo de obra. Mas, de um modo geral, existem outras medidas que temos de pensar, como, por exemplo, se há outro uso prioritário na região da bacia do Paraíba. Ou seja, nessa bacia se planta arroz irrigado, porque é uma cultura que tem a ver com a tradição, e também observamos uma grande expansão do plantio de eucalipto. Então, se a água se tornou uma questão estratégica por causa do Rio de Janeiro, por causa da região metropolitana de São Paulo, uma coisa que poderia se pensar é como nós tratamos o uso do solo dentro da Bacia do Paraíba.
Não estou dizendo que deve ser feito isso ou aquilo, mas que pelo menos devem ser discutidos os possíveis impactos de determinados usos, já que a região é altamente industrializada. Cito o exemplo do arroz porque, se colocarmos no contexto do Mato Grosso e do Rio Grande do Sul, por exemplo, que são grandes produtores de arroz, a quantidade de arroz que se produz na região do Paraíba é muito pouco significativa e não tem nenhum impacto sobre a produção nacional. Então, é o caso de rever como deve ser utilizada a bacia do Paraíba.
O projeto de transposição está discutindo cinco metros cúbicos por segundo, mas de repente uma mudança na terra dentro da bacia faz com que os cinco metros cúbicos que serão desviados sejam facilmente recuperados. Então, sempre existem prós e contras e é preciso pensar como é possível compensar certa quantidade de água que se perde.
Voltando para a questão do uso, que para mim é muito importante, tem de se pensar na tarifa d’água. O problema é que sempre há aquele aspecto político toda vez que vem essa questão do uso racional da água — para evitar a palavra racionamento, que virou um palavrão nas ultimas eleições. Então, se nós percebemos que daqui para frente haverá com mais frequência eventos extremos — cheias, estiagens —, temos de pensar em estratégias futuras, como, por exemplo, a implantação da bandeira tarifária. O que isso significa? No período em que falta água, a geração de energia hidrelétrica diminui por conta da menor disponibilidade de água nos reservatórios, e para compensar isso é necessário aumentar a participação das térmicas na geração total de energia. Então, o que está sendo implantado é uma espécie de bandeira tarifária.
Esse princípio de bandeira tarifária poderia ser aplicado automaticamente também para o consumo de água. Agora, se tivéssemos uma lei federal sobre isso, dizendo que se a disponibilidade de água cair “x” é possível aplicar uma bandeira tarifária, de certa forma trataríamos a questão da falta d’água tecnicamente e a bandeira tarifária se aplicaria quase que automaticamente. Essa seria uma forma de evitar esse enorme desgaste em torno do aumento da tarifa por diversas razões. Se esse tipo de situação de estiagem estivesse previsto por lei, seria muito mais fácil resolver a questão.
Na Califórnia, que é uma região que episodicamente sofre estiagem, esse mecanismo já existe; por isso é uma sugestão para o Brasil. Não é uma proposta popular, mas nós temos de propor tecnicamente o que poderia ser uma solução. Então, de certa forma, esse tipo de mecanismo tarifário aumentaria a conscientização da população sobre a necessidade de se poupar água em períodos extremamente críticos que podem se apresentar e podem se repetir no futuro.
IHU On-Line - A transposição poderá causar algum impacto nos demais estados por onde passa o rio Paraíba, como São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais?
Javier Tomasella – Eu não tenho os cálculos exatos, mas a quantidade que está sendo desviada é pouco significativa para justificar impactos. O impacto maior seria no Rio de Janeiro, não em Minas Gerais, porque Minas de certa forma é cabeceira da bacia do Paraíba, por isso o efeito da transposição não teria impacto significativo. E no Rio de Janeiro o impacto seria muito pequeno. Por outro lado, o Rio também precisa fazer seu dever de casa. O desvio de água que se faz no Guandu está relacionado, em parte, à falta de tratamento de esgoto nos municípios que ficam no sistema Guandu, e por isso é necessário, de certa forma, ajudar a diluir e reduzir o custo do tratamento.
Se olharmos a questão de tratamento de esgoto em todos os estados do país, vemos que ainda há uma deficiência muito grande neste aspecto. Nesse sentido, a melhor forma de preservar os recursos hídricos é preservar a qualidade deles. E, nesse aspecto, a maioria dos municípios não faz o dever de casa.
No Vale do Paraíba Paulista, que acompanho, houve um avanço muito significativo no tratamento de água. Vários municípios já estão com 100% de esgoto tratado, e há outros municípios que ainda estão com 70-80% de esgoto tratado, mas o tratamento do esgoto é o primeiro passo para garantir a qualidade da água. Não adianta dizer “vai faltar água”, mas não cuidar do pouco que se tem.
IHU On-Line - Ou fazer a transposição e depois não aplicar outras medidas.
Javier Tomasella – Exatamente. Tem de haver o resgate da bacia como um todo, e pensar alternativas para ver como a bacia pode ser recuperada. Esse é um tipo de discussão que também existe na bacia do São Francisco. A priori não se cuida como a bacia está sendo utilizada e, no caso do Rio Paraíba, não está se dando toda atenção que merece, já que uma parcela significativa do PIB nacional se localiza nessa região.
IHU On-Line - A transposição do Rio São Francisco está sendo realizada desde 2008. É possível estimar qual será o tempo estimado para realizar a transposição do Rio Paraíba Sul?
Javier Tomasella – Falou-se que a transposição seria realizada em dois anos, com um custo de 500 milhões de reais. É preciso entender que essa obra é muito menor e menos complexa do que a obra de transposição do Rio São Francisco e relativamente muito mais simples, até porque a separação dos reservatórios é em torno de 15 quilômetros de distância. Então, as proporções entre uma obra e outra são muito diferentes, são obras de uma dimensão completamente contrastante.
IHU On-Line - Em que consiste seu projeto de pesquisa de desenvolver um sistema de previsão de enxurradas, inundações e movimentos de massa em encostas a fim de prevenir desastres naturais? Já existem projetos desse tipo em desenvolvimento e em atuação no Brasil? É possível comprovar a eficácia deles?
“Parece que houve uma discussão muito mais apaixonada sobre essas questões da transposição, mas sem pensar muito tecnicamente o que poderia ter sido feito”
Javier Tomasella – Quando nós olhamos o número de mortes no país em decorrência de desastres naturais, vemos que é um número muito significativo. Claro que há episódios como o que aconteceu na região serrana do Rio de Janeiro, ou mesmo no Nordeste, em que realmente a destruição e o número de fatalidades são muito significativos. Portanto, a ideia que se tinha com essa iniciativa era tentar utilizar ferramentas de previsão que, de alguma forma, alertassem a ocorrência de determinado fenômeno, porque tanto deslizamento quanto enxurradas estão mais associados ao número de fatalidades. As cheias que são graduais, aquelas que ocorrem quando o rio sobe e desce mais suavemente, produzem um número maior de perdas materiais e afetam, percentualmente, uma população maior, mas normalmente não estão associadas a um número grande de mortes, por causa da característica e da dinâmica do fenômeno.
Então, a ideia era tentar estudar de que forma e que ferramentas podem ser utilizadas para antecipar esse tipo de evento. Nós estamos com duas linhas básicas. Uma linha tem como objetivo tentar apoiar a instrumentação de uma rede de monitoramento com o foco em bacias de pequeno porte, porque normalmente as enxurradas estão associadas a bacias de menor área de drenagem e com maior declividade. Esse tipo de bacia é que tem as cheias mais abruptas, que são as enxurradas. A ideia era estabelecer uma rede de monitoramento, já que esse tipo de bacia normalmente não é monitorado, porque a lógica da própria rede era monitorar bacias de grande porte por conta do potencial hidrelétrico. Então, as bacias de pequeno porte no país ainda são mal monitoradas. Assim, por um lado, tentamos estabelecer essa rede para começarmos a entender como esses fenômenos ocorrem para que tivéssemos informações básicas que nos permitam testar certo tipo de ferramenta para conseguir maior ou menor antecipação na emissão de alertas para esse tipo de evento.
Nós estamos criando uma rede de 115 estações em vários estados do país, especialmente concentradas na faixa leste do Brasil, onde estão as regiões mais vulneráveis. Também estamos explorando ferramentas de previsão usando modelos matemáticos. Criamos uma área piloto em Campos do Jordão, e a ideia era, com diferentes sensores, ver qual o mais adequado para monitorar encostas e com isso permitir que, posteriormente, sejam realizadas ações de evacuação.
IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?
Javier Tomasella – Parece que houve uma discussão muito mais apaixonada sobre essas questões da transposição, mas sem pensar muito tecnicamente o que poderia ter sido feito. Essas questões de água sempre trazem - do mesmo jeito que a transposição do São Francisco - paixões muito fortes, e às vezes as soluções precisam ser melhor estudadas tecnicamente para evitar que haja uma confusão com relação a esse tipo de informação. Se eventos extremos se tornarem mais frequentes no país, é importante dizer que esse tipo de solução da engenharia pode se tornar mais frequente do que esperamos. Então é melhor desmistificar: qualquer obra de engenharia, qualquer barragem, tem um impacto. Não adianta imaginar que qualquer obra de engenharia só traz benefícios; trata-se sempre de um compromisso entre as vantagens e desvantagens em qualquer obra de intervenção.
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Abastecimento humano de água é prioritário, mas é preciso pensar alternativas para evitar a escassez dos recursos hídricos. Entrevista especial com Javier Tomasella - Instituto Humanitas Unisinos - IHU