28 Outubro 2013
"A desigualdade poderia ser reduzida de forma mais intensa no Brasil se certas instituições fossem reformadas para que se tornassem efetivamente redistributivas, já que hoje várias delas paradoxalmente favorecem os ricos em detrimento dos pobres", diz o advogado.
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A queda da desigualdade no Brasil "não resulta de um ataque efetivo aos gargalos e entraves que compõem a 'armadilha da desigualdade'” no que se refere à renda, riqueza, oportunidades e status social, adverte Diogo Coutinho, em entrevista concedida à IHU On-Line por e-mail. Na avaliação dele, "os ganhos de igualdade" da última década estão particularmente relacionados com o aumento do salário mínimo e os programas sociais de distribuição de renda, "não de mudanças estruturais em arranjos jurídico-institucionais que há séculos conservam o status quo e impedem a mobilidade social no país".
Para Coutinho, a tributação "é uma das causas mais graves da desigualdade no Brasil", porque os tributos "são mal calibrados em termos de incidência e alíquotas e tendem – em especial no caso dos impostos indiretos – a penalizar os mais pobres". E acrescenta: "O imposto de renda, que é usado no mundo todo para redistribuir renda, no Brasil tem essa função de “Robin Hood” mitigada ou mesmo revertida pelas distorções que favorecem as classes mais abastadas".
Diogo R. Coutinho é doutor em Ciências Jurídicas pela Universidade de São Paulo - USP, na qual leciona atualmente. É pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento - Cebrap.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Em artigo recente, o senhor comentou que a queda da desigualdade de renda no Brasil na última década deve ser comemorada sem exagero. O debate sobre a diminuição das desigualdades no país é desproporcional à realidade?
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Diogo R. Coutinho - O que o professor Octávio Ferraz e eu dissemos no artigo a que você se refere é que a celebração da recente queda da desigualdade no Brasil é importante e bem-vinda, mas não resulta de um ataque efetivo aos gargalos e entraves que compõem a “armadilha da desigualdade” - isto é, a cristalização da desigualdade em suas várias facetas (renda, riqueza, oportunidades, poder e status social) nas instituições, nas leis, nas políticas públicas e na vida social do país, favorecendo os mais ricos em prejuízo dos mais pobres. Isso porque os recentes “ganhos de igualdade” que tivemos resultam, basicamente, de aumentos do salário mínimo e das transferências do Bolsa Família, não de mudanças estruturais em arranjos jurídico-institucionais que há séculos conservam o status quo e impedem a mobilidade social no país. Em outras palavras, procuramos dizer que a desigualdade poderia ser reduzida bem mais intensamente no Brasil se certas instituições fossem reformadas para que se tornassem efetivamente redistributivas, já que hoje várias delas paradoxalmente favorecem os ricos em detrimento dos pobres. Exemplos disso são os sistemas previdenciário, tributário, de acesso à saúde, educação, moradia, entre outros. Por isso, sugerimos alguma cautela e moderação na hora de comemorar, pois ainda há muito a fazer.
IHU On-Line - Quais são as causas das desigualdades no Brasil? A tributação equivocada é a maior causa?
Diogo R. Coutinho - A tributação, que em países que construíram um Estado de Bem-Estar Social tem uma função claramente redistributiva, é uma das causas mais graves da desigualdade no Brasil. Nossos tributos, como regra, são mal calibrados em termos de incidência e alíquotas e tendem – em especial no caso dos impostos indiretos – a penalizar os mais pobres. O imposto de renda, que é usado no mundo todo para redistribuir renda, no Brasil tem essa função de “Robin Hood” mitigada ou mesmo revertida pelas distorções que favorecem as classes mais abastadas.
Veja também a dificuldade que é instituir um IPTU progressivo nas cidades brasileiras, assim como a tributação de grandes fortunas. Mas a tributação não é a única causa da desigualdade. A noção de “armadilha da desigualdade”, que utilizamos em nosso artigo, refere-se a um conjunto de fatores que, de forma retroalimentada, colabora para afastar pobres de ricos, aumentando o fosso social e atravancando o desenvolvimento. No caso brasileiro, por razões históricas e também mais recentes, parece que quase tudo conspira contra os pobres: desde os sistemas de transporte até a estrutura fundiária, passando pelo acesso à educação, aposentadorias, medicamentos, sistemas de justiça, transportes, etc. Basta lembrar que apenas há muito pouco tempo fomos capazes de dar alguma dignidade aos trabalhadores domésticos. Imaginem quanto dinheiro as elites brasileiras “economizaram” com horas extras e outros direitos trabalhistas nas últimas décadas, quando se pensa em empregadas, babás, cuidadoras, etc? Foram gerações e gerações de elites nutridas, criadas e educadas à custa do sacrifício dos pobres e de seus filhos.
IHU On-Line - Em que medida o direito pode ser um instrumento de redução de desigualdade e indutor do desenvolvimento?
Diogo R. Coutinho - Entendo que o direito pode ser compreendido tanto como um vetor de cristalização e perenização da desigualdade, quanto como uma variável-chave na promoção da justiça social. Afinal, o arcabouço jurídico, ao forjar e delimitar categorias centrais à vida econômica – como “capital”, “propriedade”, “trabalho”, “crédito”, “salário”, “tributo”, “contrato”, entre tantas outras – permanentemente produz e reproduz consequências distributivas na sociedade (nem sempre percebidas, diga-se). Os juristas brasileiros estão habituados a falar em justiça social e são desde cedo expostos a diversas concepções metafísicas sobre o que ela é, ou deveria ser. A conhecida fórmula “tratar desigualmente os desiguais, na medida de suas desigualdades” ilustra isso. No entanto, não são educados ou treinados para desempenhar o papel-chave que, na prática, terminam cumprindo na implementação de políticas públicas que são, por excelência, os mecanismos pelos quais direitos econômicos e sociais se efetivam no Estado de Bem-Estar Social. Por conta disso, sejam eles juízes, advogados, promotores de justiça, defensores, administradores ou gestores públicos, os profissionais do Direito se ressentem de falta de familiaridade e expertise para lidar com os desafios e dilemas que a concretização de um ideal de justiça distributiva suscita a todo o tempo. Isso é um problema grave, acredito, que tem raízes no ensino jurídico e nas teorias do Direito.
IHU On-Line - Que medidas podem tornar a reforma tributária mais eficaz e progressiva? Uma mudança no sistema tributário teria mais impacto sobre as desigualdades?
Diogo R. Coutinho - Não sou especialista em sistemas tributários e em sua reforma, mas acredito que, se nossos tributos passassem por um “raio X” pelo qual seus impactos distributivos fossem medidos, constataríamos que há muitos ajustes a fazer e injustiças a corrigir. O mesmo vale para o sistema previdenciário, que é regressivo (isto é, pró-ricos), favorecendo desproporcionalmente os funcionários públicos de alto escalão do Executivo, Legislativo e Judiciário. Esses grupos, que já recebem bons salários durante a carreira, continuarão a ter direito a aposentadorias integrais (ou quase) até que o regime de previdência complementar instituído pela reforma constitucional entre em vigor, o que já tarda mais de 10 anos. O resto da população, incluindo-se aqui os mais pobres, aposenta-se sob o regime geral da previdência social, ganha em sua maioria um salário mínimo ou sequer tem acesso à previdência por trabalhar no setor informal. Em resumo, o que precisamos é de uma avaliação distributiva de nossas normas e sistemas de implementação de políticas públicas – afinal, não basta termos leis bem intencionadas, progressistas ou transformativas se, na prática, seus efeitos são opostos àqueles almejados.
IHU On-Line - Por que o índice de Gini não é o método mais adequado para verificar a distribuição da renda?
Diogo R. Coutinho - Porque o Gini, a despeito de ser uma referência consagrada no campo dos estudos da desigualdade, releva apenas parte da história. Esse índice leva em consideração principalmente os rendimentos do trabalho formal e transferências públicas, deixando de fora da medição a maior parte dos rendimentos do capital (cerca de 80% do rendimento dos ricos no caso brasileiro). A desigualdade medida pelo Gini não é, portanto, inteiramente adequada para revelar a real distribuição da renda entre trabalhadores formais e informais, de um lado, e empresários, banqueiros, latifundiários, proprietários de bens e de imóveis alugados, de outro. Ou seja, o Gini não mede a desigualdade acumulada sob outras formas de riqueza que não a renda em sentido estrito. Além disso, o Gini não captura a desigualdade de oportunidades, de status, de poder, de raça, de gênero. Os estudiosos do assunto nos lembram com muita frequência que a desigualdade é uma noção multidimensional, com diversas facetas, e que isso precisa ser levado em conta na hora de dimensioná-la. Isso não significa que o Gini não seja relevante ou útil, contudo, vale sempre lembrar que ele é limitado quando se trata de retratar de forma completa a armadilha da desigualdade brasileira.
IHU On-Line - A política de acesso ao crédito do governo federal fez bastante sucesso nos primeiros anos por conta do crescimento da economia e ascensão da classe C. Como vê essa política enquanto tentativa de diminuir as desigualdades?
Diogo R. Coutinho - Não vejo o acesso ao crédito como algo negativo a ponto de ameaçar a sustentabilidade do crescimento, mas o desenvolvimento não se constrói somente a partir do estímulo ao consumo, explicam os economistas. É necessário combinar isso com outras políticas macro e microeconômicas capazes de aumentar a produtividade da economia, estimular a inovação, proteger o meio ambiente e, claro, promover a justiça social para mais além do acesso a bens de consumo.
IHU On-Line - Que modelos político e econômico garantem a diminuição das desigualdades? Países mais igualitários seguem quais padrões de desenvolvimento?
Diogo R. Coutinho - Acredito que, de forma sintética, podemos dizer que países que crescem de forma mais sustentável e (o que é bastante importante) reduzindo desigualdade ao invés de aumentá-la, são países que construíram e aperfeiçoam sistemas de bem-estar funcionais, multifacetados, articulados com a política econômica e capazes de combinar arranjos universais (isto é, políticas públicas acessíveis a todos) com arranjos focalizados (políticas públicas que adotam prioridades em relação à definição de seu público-alvo). Como nos explica a Professora Celia Lessa Kerstenetzky em seu excelente livro “Estado do Bem-estar Social na Idade da Razão”, o Estado do bem-estar social, com seu potencial redistributivo, inclusivo e emancipador, é tanto causa quanto consequência do progresso das sociedades e, em sua dinâmica, eficiência econômica e justiça distributiva se reforçam mutuamente, ao invés de se excluírem.
IHU On-Line - Os programas de transferência de renda foram considerados um avanço, mas ainda não alteraram a desigualdade estrutural. Quais os limites desses programas e como avançar a partir deles?
Diogo R. Coutinho - Entendo que o grande desafio a partir de agora é articular esses programas com os demais componentes de um Estado de Bem-Estar Social robusto, num esforço intersetorial complexo e desafiador, mas necessário. As transferências de renda devem ser combinadas de forma mais orgânica com políticas de inclusão produtiva, capacitação profissional, assim como com políticas universais de saúde, educação, moradia e outras. Trata-se de um desafio de integração funcional das políticas sociais, produtivas e de emprego com a finalidade de alcançar uma dinâmica virtuosa pela qual o desenvolvimento seja não apenas traduzido em crescimento do PIB, mas também em “ganhos de equidade”. Esse é o verdadeiro desenvolvimento, em sua acepção mais completa.
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Diminuição das desigualdades deve ser comemorada com cautela. Entrevista especial com Diogo Coutinho - Instituto Humanitas Unisinos - IHU