08 Dezembro 2012
O tropicalismo marcou uma época porque foi capaz de aceitar a outridade e conseguiu sintetizar o transe em canções, afirma o doutorando.
O tropicalismo quebrou as barreiras entre o pop e o folclore; entre a cultura erudita e a de massa; entre a tradição e a vanguarda. Para Pedro Bustamante Teixeira, o movimento conseguiu estes êxitos jogando com os estereótipos de brasilidade. “Na justaposição de suas imagens, o tropicalismo expunha com amor, já que ele sabe que isto também o constitui, o ridículo destas”, diz, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.
Segundo ele, ao focar as imagens constantemente relacionadas a uma identidade brasileira: as bananas, os pandeiros, as mulatas, Carmen Miranda, Bossa Nova, Chico Buarque, Vicente Celestino, o tropicalismo operava na desconstrução de uma identidade endossada por um mito-Brasil em nome de uma diversidade identitária que lhes parecia inequívoca e irremediável. A partir da “desconstrução de estereótipos através de escrachos, novas possibilidades são criadas. De modo que se torna possível unir o fino da bossa ao programa do Roberto Carlos, o rock e o baião, o Brasil e o mundo, o bumba-meu-boi e o iê-iê-iê, Rogério Duprat e Os Mutantes, Caetano Veloso e Chico Buarque etc.”
Pedro Bustamante Teixeira possui graduação em Língua Portuguesa e em Língua Italiana (e em suas respectivas literaturas), e mestrado em Letras: Estudos Literários pela Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF. É doutorando do Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários e Representações Culturais na mesma instituição.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O tropicalismo conseguiu “modernizar” a cultura brasileira em apenas um ano, que correspondeu à duração do movimento? Como isso foi possível?
Pedro Bustamante Teixeira – Primeiramente, é preciso lembrar que esse foi um momento ímpar na história brasileira. E não só por conta da ação tropicalista. No cinema, no teatro, na música, nas artes plásticas, nos jornais, apesar da ditadura da direita, soprava um “vento pré-revolucionário” que afetava as estruturas e convocava o artista à participação política. “O Brasil estava irreconhecivelmente inteligente”, diria o marxista Roberto Schwarz sobre esse tempo no ensaio Cultura e política, 1964-1969. No entanto, ao se pretender se servir da cultura para a conscientização das massas e à revolução, a esquerda incorria num erro político, detectado posteriormente por Gilberto Felisberto Vasconcellos, que era o de substituir a luta pela ação cultural. O tropicalismo vem a reboque dos ventos pré-revolucionários, mas se posta para além da causa, pois enxerga na política cultural das esquerdas uma visão deveras reducionista do que poderia ser a cultura brasileira.
Devir identitário
O movimento tropicalista se rebela contra o nacional-popular. Percebe nele uma séria ameaça ao devir da cultura brasileira. Desatando-se das diretrizes culturais da esquerda, vide CPC, o movimento, ao mesmo tempo em que se tornava célebre pelas apresentações conturbadas nos festivais, causava um mal-estar generalizado nas alas progressistas. A terra estava em transe, não só no Brasil, não só em Eldorado. O tropicalismo marcou uma época porque foi capaz de aceitar a outridade e conseguiu sintetizar o transe em canções.
Assim, a prática tropicalista resultou na edificação de uma identidade nacional mais complexa, mais tolerante, mais atenta, híbrida e maior. Uma identidade que existe mais através da práxis antropofágica do que pela preservação de uma essência originária. Em menos de um ano, a tropicália foi capaz de implodir com as bases do nacional-popular que de certa forma uniam a direita à esquerda, e de introduzir na cultura popular brasileira uma nova forma de pensamento. Agora, mais próximo dos manifestos de Oswald de Andrade do que do Ensaio sobre a música brasileira, de Mário de Andrade. Por fim, a rebeldia tropicalista resultou no devir de uma identidade cultural brasileira múltipla, de infinitas possibilidades e que nem por isso parecia menos brasileira do que a anterior.
IHU On-Line – De que maneira o tropicalismo quebrou as barreiras entre o pop e o folclore? Entre a cultura erudita e a de massa? Entre a tradição e a vanguarda?
Pedro Bustamante Teixeira – Jogando com os estereótipos de brasilidade. Na justaposição de suas imagens, o tropicalismo expunha com amor, já que ele sabe que isso também o constitui, o ridículo destas. Ao focar as imagens constantemente relacionadas a uma identidade brasileira: as bananas, os pandeiros, as mulatas, Carmen Miranda, Bossa Nova, Chico Buarque, Vicente Celestino... o tropicalismo operava na desconstrução de uma identidade endossada por um mito-Brasil em nome de uma diversidade identitária que lhes parecia inequívoca e irremediável.
O jovem Caetano já dizia: “me recuso a folclorizar meu subdesenvolvimento”. E assim, da desconstrução de estereótipos através de escrachos, novas possibilidades são criadas. De modo que se torna possível unir o fino da bossa ao programa do Roberto Carlos, o rock e o baião, o Brasil e o mundo, o bumba-meu-boi e o iê-iê-iê, Rogério Duprat e Os Mutantes, Caetano Veloso e Chico Buarque etc. A tropicália chega à conclusão promissora que para se escolher um caminho não é preciso ignorar seus outros possíveis. E por isso é também um movimento libertário. Rita Lee disse em uma entrevista que Caetano Veloso e Gilberto Gil lhe fizeram ver que ela era – apesar de paulista, roqueira e filha de americano – tão brasileira quanto o Garrincha.
IHU On-Line – Em que sentido o movimento sofisticou a estética e a cultura brasileiras?
Pedro Bustamante Teixeira – Não combina muito com a estética tropicalista a palavra sofisticação, que talvez sirva melhor para nos referirmos ao movimento da bossa nova. O tropicalismo joga o tempo todo com o brega, o cafona, justapondo-os ao que pode haver de mais sofisticado na música brasileira e internacional. Apesar de uma vontade de superação do subdesenvolvimento, presente nas experimentações com os instrumentos elétricos, a incorporação de elementos da eletrônica e uma experimentação cada vez mais incisiva nos estúdios, a sofisticação jamais foi um desejo da tropicália, que é, antes de tudo, escracho, escândalo e jogo. A sofisticação sublima, mas não assusta. E o tropicalismo viera munido do Kitsch, do brega , do rock e do pop, justamente para assustar “as pessoas da sala de jantar”.
IHU On-Line – “O nome de um movimento só existe enquanto o movimento existe. E o tropicalismo não existe mais como movimento.” Como avalia essa frase de Caetano Veloso, proferida em um programa português, recuperada de forma inédita recentemente no documentário Tropicália?
Pedro Bustamante Teixeira – No momento em que Caetano faz essa afirmação, nem ele nem Gil, nem mais ninguém poderia responder por um movimento que tinha sido dissipado, junto a tantos outros, com a promulgação do Ato Institucional no. 5 e a seguinte intensificação da reação aos tais ares pré-revolucionários. No momento em que Caetano e Gil não poderiam nem mais pisar em seus trópicos que doravante pareciam, mais uma vez, tristes; o tropicalismo não fazia mais sentido algum. O absurdo alegre tornava-se uma violenta desilusão. Era o momento de se restabelecer o mínimo, “o mínimo Eu”. Os ombros mal suportavam o próprio peso que dirá o do movimento. Caetano e Gil, depois do itinerário que vai da “transa” ao transe, e do tranco e da tranca, teriam que cuidar de si mesmos para não sucumbirem à dor.
IHU On-Line – Podemos afirmar que o tropicalismo foi além da música? O movimento influenciou também as artes plásticas, o teatro e o cinema? De que forma?
Pedro Bustamante Teixeira – Devido à diversidade de frentes de atuação, Flora Süssekind prefere o termo momento tropicalista ao mais usado movimento tropicalista. E já que estamos falando de um momento heterogêneo, é bastante complicado mapear quem influenciou quem. O que há é o surgimento de uma nova sensibilidade que rejeita tanto a filiação automática às diretrizes esquerdistas dos Centros Populares quanto uma inclinação nacionalista em nome da liberdade e da experimentação de novas formas artísticas. Sensibilidade que passa a ser sentida no teatro de José Celso Martinez Corrêa, no cinema de Glauber Rocha, nas artes plásticas com Hélio Oiticica, Lygia Clark e Rubens Gerchman, na Literatura de José Agrippino de Paula e na música tropicalista. Em cada área há uma ruptura intrínseca a ela. Para cada ruptura, uma nova batalha, a vitória de uns não dispensa a luta dos demais, mas também não deixa de ajudar.
IHU On-Line – Qual foi o papel que a televisão teve para a divulgação do movimento, dos cantores e da própria canção, na época?
Pedro Bustamante Teixeira – Como já dissemos, sem a televisão certamente não haveria o susto tropicalista. O susto tropicalista só é possível através das transmissões dos festivais e dos programas tropicalistas. Só é possível com a subversão da imagem do artista de televisão, a adoção de trajes e penteado indiscretos, das guitarras e dos gritos. A transmissão da juventude sorridente do rock em meio aos festivais da música popular brasileira reduzia um preconceito e uma resistência que se preservavam apenas pelo medo do diferente. A transmissão dessas imagens ao vivo evitava qualquer apropriação indébita. Os rostos jovens e sorridentes dos Mutantes, acompanhando Gilberto Gil e a orquestra regida por Duprat, falavam por si só. O sorriso de Caetano enfrentando as vaias, para defender Alegria, alegria, também. A televisão foi a plataforma ideal para os happenings tropicalistas. Transmitiu o início, no Festival da Record, em 1967, e o seu enterro, no primeiro e único programa de Divino Maravilhoso. A TV foi uma fresta pela qual os tropicalistas puderam emitir os seus sinais diretamente para as massas. Em suma, sem a televisão, o movimento não teria acontecido.
IHU On-Line – Qual a diferença entre tropicália e tropicalismo?
Pedro Bustamante Teixeira – Frederico Coelho faz uma distinção que pode ser muito produtiva nos estudos acadêmicos desenvolvidos sobre o assunto. O pesquisador separa o tropicalismo musical da tropicália. Segunda a sua divisão, o primeiro diz respeito ao lado musical do movimento e está centrado nas figuras de Gilberto Gil e Caetano Veloso; o segundo, mais abrangente, faz menção a diferentes áreas artísticas e não se centra em uma área específica.
No entanto, como o lado musical, no momento tropicalista, está muito imbricado com os demais, acho a tarefa um tanto quanto complicada. Um campo alimenta o outro, um artista de uma área está sempre influenciando um artista de outra área. Havia uma cena artística muito diversificada que se frequentava. Não é fácil fazer o inventário do movimento. Gosto muito da fala de Gil no documentário Tropicália, em que ele diz: “Tropicália é uma ilha, um território, uma utopia”, “o –ismo era coisa de momento”, passou.
IHU On-Line – Podemos dizer que, à época, nem todo mundo entendeu o tropicalismo? Por quê?
Pedro Bustamante Teixeira – Se o tropicalismo hoje ainda é mal entendido, imagine só naquele momento. Na época, ainda pesava uma dupla suspeita em relação à tropicália. Por um lado, ela era acusada de servir aos interesses da ditadura militar e do imperialismo Ianque; por outro, ela parecia representar uma séria ameaça à moral e aos bons costumes. Este lado reagiu sorrateiramente até o ato da prisão de Gil e de Caetano, aquele de imediato, com as vaias e as denúncias. Para estes, Caetano e Gil seriam espécies de instrumentos da atual conjuntura para a desmobilização da juventude brasileira. A esquerda que, segundo Schwarz, manteve de 1964 até o Ato 5 uma relativa hegemonia na cultura do Brasil, via na nova abordagem proposta por Caetano e Gil uma rendição incosequente ao mercado e uma adesão ao projeto de modernização proposto pelos militares. Curiosamente, essas suspeitas só seriam sanadas com a chegada mais que tardia da notícia da prisão de Gil e de Caetano. Poucos sabiam, na época, o que realmente tinha acontecido aos dois. E, além do mais, quando eles puderam retornar do exílio em 1972, ainda não havia espaço para maiores esclarecimentos.
O adeus
Ademais, não lhes interessava mais essa briga; o objetivo do movimento já tinha sido de algum modo alcançado. As estruturas estéticas já estavam descerradas. Além do mais, era preciso seguir em frente, pois já tinham perdido tempo demais de trabalho. O mal-entendido que houve se estendeu e foi de tal maneira recalcado que, volta e meia, ainda pesam denúncias contra o movimento. Uma das motivações para que Caetano Veloso escrevesse Verdade tropical era a de desfazer os malentendidos, recontando em detalhes a sua parte nessa história, mas essa história não termina aqui: ainda têm o ensaio de Schwarz de 2012, as respostas e as canções.
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Tropicalismo. Um movimento libertário? Entrevista especial com Pedro Bustamante Teixeira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU