25 Setembro 2011
Há 90 anos nascia Henrique Cláudio de Lima Vaz, na bucólica Ouro Preto, no interior de Minas Gerais. Intelectual de saber enciclopédico e considerado uma "lenda" já em vida em função de sua trajetória filosófica, o jesuíta dedicou sua vida à filosofia, construindo um majestoso e importante edifício teórico centrado na importância do ser humano e de suas relações com a alteridade e a transcendência. Para isso confrontou-se com gigantes do porte de Aristóteles, Platão, Tomás de Aquino, Kant e Hegel.
Henrique de Lima Vaz, padre jesuíta, morreu no dia 23 de maio de 2002, foi professor, filósofo e humanista brasileiro.
A edição desta semana da revista IHU On-Line, sob o título, "Henrique Cláudio de Lima Vaz (1921-2002). Um sistema em resposta ao niilismo ético", reúne um grupo de pesquisadores e pesquisadoras da obra vaziana.
"Entre os séculos XVII e XIX d.C., o agora do ato de filosofar – sua modernidade – não se eleva mais a um fundamento transmundano e transtemporal para assegurar as pretensões de seus métodos. A razão calculadora reorganiza os traços comuns do sistema simbólico, ou sistema das razões, da civilização que se colocara sob a regência do logos filosófico greco-cristão. Lima Vaz o denomina, inicialmente, idade pós-sacral, cultura pós-teísta, em seguida modernidade pós-moderna, fixando-se finalmente em modernidade pós-cristã", afirma Marcelo Fernandes de Aquino, professor e pesquisador do PPG em Filosofia da Unisinos e reitor desta mesma universidade.
Marcelo Fernandes de Aquino é pós-doutor em Filosofia pelo Boston College, Estados Unidos. Especialista em Hegel, fez doutorado na Pontifícia Universidade Gregoriana, onde também obteve dois títulos de mestre, em Teologia e em Filosofia. Realizou graduação em Filosofia na Pontifícia Faculdade Aloisianum, Itália, e especialização em Filosofia na Hoschschule für Philosophie, em Munique, Alemanha. Foi reitor do Centro de Estudos Superiores da Companhia de Jesus, em Belo Horizonte-MG.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Poderia explicar em que consiste a tríade que compõe o sistema vaziano: antropologia, ética e metafísica? Quais são as relações que se estabelecem entre esses aspectos?
Marcelo Fernandes de Aquino – Antes de tudo, é preciso esclarecer a significação da ideia de sistema no pensamento do Pe. Vaz. Segundo ele, o termo sistema é a transliteração do grego sýstema, proveniente do verbo synistánai, synistemí, que significa "estar de pé" ou "estou de pé". Da acepção metafórica inicial aplicada ao significar "conjunto" ou "reunião", o termo sýstema foi empregado para designar o discurso (logos) cujas partes se inter-relacionam por meio de conexões lógicas de sorte a formar um todo ordenado segundo critérios de natureza lógica. Melhor, significa um todo ordenado linguisticamente segundo critérios de natureza lógica cujas partes se inter-relacionam por meio de conexões lógicas.
Para Vaz, a ideia de sistema é uma das raízes da civilização que, ao longo de 26 séculos, coloca a razão demonstrativa no centro do seu universo simbólico. Esse construto especulativo propõe-se pensar a liberdade ou unir dialeticamente liberdade e razão. Nele a liberdade não é exterior à razão. É intrínseca ao movimento de sua autoconstituição, ou, antes, é essa autoconstituição mesma. O desafio maior inerente à ideia de sistema é o de pensar a liberdade no próprio coração da necessidade racional que preside a construção do sistema das razões universais, e instaurar, assim, uma ordem translúcida às razões individuais numa história, enfim, sensata.
O problema das relações entre sistema e liberdade, para Vaz, configura uma opção intelectual básica cujas repercussões marcam profunda e decisivamente a história espiritual do ocidente. Se a razão demonstrativa é, por essência, sistemática, e se o sistema postula uma homologia com a realidade, onde situar a liberdade no interior do sistema? Essa é uma questão decisiva que, segundo ele, de Platão a Hegel, impele o desenvolvimento da ideia de sistema na filosofia ocidental.
Antropologia, ética e metafísica são dimensões fundamentais do discurso filosófico do todo. Essa ordem da exposição sinótica proposta por Vaz reflete a seriação cronológica do aparecimento dos livros "Antropologia iilosófica", "Introdução à ética filosófica" e "Raízes da Modernidade" profundamente imbricada com as vicissitudes pessoais e as contingências históricas do existir individual do Pe. Vaz. Não creio que esta ordem exponha o entrelaçamento do tempo histórico e do tempo lógico que tecem a trama da história da filosofia como intrínseca ao próprio ato de filosofar em favor da qual ele tanto se empenhou, nas aulas, nas conferências, nos escritos e nas conversas ao longo de sua fecunda atividade filosófica.
O leitor atento saberá matizar a eventual aproximação com a doutrina hegeliana dos três silogismos apresentada como fecho da exposição do Espírito Absoluto na Enciclopédia das Ciências Filosóficas. Antes de tudo, seria o caso de aproximar antropologia e ética para entender o desenho e a envergadura especulativa da eventual doutrina vaziana do Espírito, nas vertentes subjetiva e objetiva. Pari passo, reconstruir a filosofia da natureza que Pe. Vaz deixou nas notas e apostilas de cursos que deu em diferentes ocasiões e instituições.
Lembro que ele foi aluno e privou de intensa proximidade intelectual do Pe. Roser, fundador do Instituto de Física da PUC-Rio. Creio ter sido uma pena ele não ter dado continuidade à sua aproximação das categorias da mecânica da relatividade, pois ele teria feito com ela, o que Kant logrou fazer com as categorias da mecânica newtoniana.
IHU On-Line – De que forma a obra filosófica de Pe. Vaz relê criticamente a modernidade, diagnosticando sua crise?
Marcelo Fernandes de Aquino – Para o Pe. Vaz, a história intelectual da razão ideonômica que se desdobra de Platão a Hegel segue o curso das vicissitudes histórico-teóricas da noção de Ser na sua procedência aristotélica, passando pela inflexão henológica de Plotino, pela interpretação da especulação árabe, sobretudo aviceniana, pela recepção e evolução no pensamento latino-medieval desde as primeiras indicações de Boécio até seu apogeu metafísico no século XIII com Tomás de Aquino, pela inflexão desencadeada por Duns Scotus, pela sistematização suareziana do século XVI e sua posteridade na ontologia moderna de matiz cartesiano.
O significado desse curso histórico-conceitual é a passagem da concepção polissêmica ou analógica da noção de Ser da tradição aristotélico-tomásica para a concepção monossêmica ou unívoca de Ser da tradição escotisto-suareziana. Duns Scotus, Guilherme de Ockham e Francisco Suarez anunciam outro ciclo de modernidade que eclode, grosso modo, com Descartes. Kant e Hegel o levam a sua completude. Feuerbach, Marx, Nietzsche, Freud são seus construtores maiores.
Como consequência dessa transformação da razão ideonômica em razão hipotético-dedutiva, esta história intelectual acompanha a rota da reformulação da metafísica em sistema, segundo a acepção deste termo consagrado na epistéme moderna. Essa transformação assinala o abandono da concepção da metafísica como ciência estruturalmente aberta em seu procedimento mais elevado como ciência do Absoluto ou theologia, para a concepção da metafísica como sistema fechado, de natureza axiomático-dedutiva, regido pelos princípios de causalidade e razão suficiente e pela noção unívoca de ser.
Entre os séculos XVII e XIX d.C., o agora do ato de filosofar – sua modernidade – não se eleva mais a um fundamento transmundano e transtemporal para assegurar as pretensões de seus métodos. A razão calculadora reorganiza os traços comuns do sistema simbólico, ou sistema das razões, da civilização que se colocara sob a regência do logos filosófico greco-cristão. Lima Vaz o denomina, inicialmente, idade pós-sacral, cultura pós-teísta, em seguida modernidade pós-moderna, fixando-se finalmente em modernidade pós-cristã.
O pensamento do mundo e do tempo, nos sucessivos ciclos da modernidade pós-cristã, passa a ser acompanhado pela intenção de efetivo e definitivo instalar-se no próprio tempo. A história passa a ser o primum ontologicum na fundamentação das razões da filosofia, o agora do ato de filosofar. As linhas fundamentais da representação do mundo e do tempo passam a ter outro traçado.
IHU On-Line – Qual é o impacto da filosofia de Hegel no pensamento vaziano? Em que aspectos Lima Vaz conserva e supera o hegelianismo?
Marcelo Fernandes de Aquino – Vaz considera a filosofia hegeliana como uma filosofia que pensa a liberdade no próprio coração da necessidade racional que preside a construção do sistema das razões universais e tende a instaurar uma ordem translúcida às razões individuais, numa história, enfim, sensata. Tenta remodelar – com que resultado? – a estrutura teórica da metafísica tomásica em chave dialética de inspiração hegeliana.
Inicialmente, procede por síntese dialética do simples ao complexo, para então seguir por procedimento analítico do complexo ao simples. A remodelação dialética do método metafísico desenhada por Lima Vaz diz respeito a um caminho do logos através de oposições que se apresentam tanto na ordem real como na ordem nocional, que o logos integra numa unidade superior. Oposição significa sempre distinção dos termos que se opõem. Oposição real implica uma distinção real dos seus termos. Oposição nocional implica distinção de razão dos conceitos que se opõem.
O procedimento dialético para Lima Vaz traduz a lógica intrínseca, o dinamismo próprio da inteligibilidade do conteúdo, da qual sua consideração e avaliação são inseparáveis. Não se deixa guiar por rígida necessidade em termos de lógica formal cujo procedimento aplica formas lógicas ao conteúdo que lhe é exterior. O caminho dialético avança através de opções ontológicas, onde razão e liberdade interagem para responder ao desafio das oposições que se manifestam na realidade. A afirmação "alguma coisa é", segundo ele, constitui o conteúdo inteligível mais elementar do método dialético. Mediante o argumento de retorsão exprime-se logicamente pelo princípio de não contradição, suprassume a oposição mais primitiva que opõe o ser ao nada. Esse é o fundamento a partir do qual se forma a oposição do uno e do múltiplo que, sobrelevada na relação de alteridade, dá início ao caminho da metafísica.
A síntese dialética percorrida por Lima Vaz aplica-se primeiramente à esfera do Esse absoluto, em seguida à esfera dos esse relativos. Parte da intuição e afirmação originais do esse e desenvolve as implicações lógico-dialéticas dessa posição inicial. A intuição do esse, no roteiro vaziano, não é uma intuição pura, a priori. Ao termo do percurso, obedecendo a procedimento analítico, retorna ao princípio. Instaura-se uma totalidade de estrutura dialética que realiza a natureza de um sistema aberto, já que seu termo é o reconhecimento de um hiato metafísico infinito, intransponível pelo discurso e que separa a esfera dos esse relativos da esfera do Esse absoluto, e com ela a articula pela via da causalidade. Penso que na fase final de sua jornada filosófica, Pe. Vaz tornou-se reticente quanto ao projeto hegeliano e, sem dúvida, quanto à própria modernidade pós-cristã.
IHU On-Line – Em que medida Pe. Vaz procura responder ao avanço prodigioso da razão técnica e sua indigência ética, bem como ao niilismo na cultura que vem se firmando na modernidade pós-cristã? A partir dessa percepção, em que aspectos sua filosofia promove uma reflexão e uma crítica ao paradoxo da racionalidade ao qual estamos submetidos?
Marcelo Fernandes de Aquino – Segundo Vaz, os herdeiros de Duns Scotus aprofundaram o abandono da concepção da metafísica como ciência estruturalmente aberta no seu procedimento mais elevado como ciência do ser absoluto ou theologia pela concepção da metafísica como sistema fechado, de natureza axiomático-dedutiva, regido pelos princípios de causalidade e razão suficiente e pela noção unívoca de ser. O conceito unívoco de ser da metafísica escotista recupera a primazia da essência inerente à metafísica grega.
Transformará profundamente a configuração do campo noético-especulativo sobre o qual se edificou a metafísica greco-cristã. Traçará o horizonte último da epistéme moderna. A ideia de Deus e sua nomeação filosófica, nesta primeira figura da modernidade pós-metafísica, migram da noção de ser do paradigma ideonômico clássico para o da ontoantropologia moderna. Inaugura-se o primeiro ciclo moderno do "fim da metafísica", ao cabo do qual a antropologia passa a ocupar o lugar antes reservado à metafísica. Seu desdobramento resultará no advento da metafísica da subjetividade e, finalmente, na modernidade pós-metafísica. O niilismo contemporâneo será o ponto de chegada desta pretendida desconstrução da metafísica.
A teoria da representação, desenhada pelo nominalismo tardo-medieval, suprimiu, pelo menos virtualmente, a distinção aristotélica entre as três grandes formas de conhecimento, o teórico, o prático e o poiético. Um campo ilimitado de possibilidades de referir-se ao objeto – na sua verdade, bondade ou utilidade – como sendo um ergon, isto é, um produto da atividade poiética do próprio sujeito abre-se para o sujeito nesta concepção que privilegia a representação como sendo o objeto imediato da intenção cognoscitiva. O espaço da representação submete o objeto aos procedimentos operacionais definidos e estabelecidos pelo sujeito, inaugurando novo estilo de trabalho teórico. Este novo estilo de trabalho teórico dá origem à forma de razão estruturalmente operacional, isto é calculadora, e à ciência físico-matemática. Razão calculadora e ciência físico-matemática são raízes da revolução científica, que transformou profundamente as referências do universo mental do ocidente, tornando possível a revolução tecnológica que criou para os humanos um novo mundo de objetos. Seremos absorvidos em nossa humanidade por este prodigioso mundo de objetos, hoje virtuais? Esta era a pergunta que não se calava ao Pe. Vaz em seus últimos anos de vida.
IHU On-Line – Qual é a importância do legado filosófico e teológico de Lima Vaz para a filosofia brasileira?
Marcelo Fernandes de Aquino – Antes de tudo, como ser humano, Pe. Vaz nunca negociou suas convicções mais profundas no altar da fama. Nunca traiu os jovens que nele confiaram por medo da violência física ou por conveniência aos vários oportunismos que rondam a vida intelectual brasileira. Cometeu acertos e erros sem escamotear sua fé cristã e sem esconder que era um sacerdote jesuíta.
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"Será a humanidade absorvida pelo mundo dos objetos, hoje virtuais?" Uma pergunta que não se cala. Entrevista especial com Marcelo Fernandes de Aquino - Instituto Humanitas Unisinos - IHU