24 Julho 2011
Considerado o berço da imigração alemã no Brasil, o município de São Leopoldo celebra, hoje, segunda-feira, 187 anos da colonização alemã na região. Em 25 de julho de 1824, chegou à cidade a primeira leva oficial de imigrantes para povoar o país com seus hábitos e costumes e desenvolver a agricultura.
Influenciadores na formação religiosa brasileira, os imigrantes alemães, diz o historiador René Gertz, "foram os primeiros a trazer para este país e para este estado contingentes significativos de protestantes. Apesar de todos os esforços, os luteranos, até hoje, continuam sendo predominantemente pessoas com sobrenome alemão".
O modelo colonizador dos alemães, segundo o pesquisador, ainda gera debates entre os historiadores, que questionam, inclusive, as práticas agrícolas adotadas à época. Eles questionam "se os agricultores de origem alemã realmente contribuíram para a modernização agrícola do estado. Alguns historiadores jovens, inclusive, os acusam de terem sido responsáveis pela destruição da natureza. Comerciantes, por sua vez, foram acusados de gananciosos, e industriais de exploradores de mão de obra".
Em entrevista concedida à IHU On-Line por e-mail, Gertz enfatiza que, ao analisar a história de imigrantes, "o verdadeiro reconhecimento deve ser feito por cada um, olhando para as obras efetivas do próximo, reconhecendo-o não por aquilo que ele diz ter feito ou por aquilo que outros dizem que ele fez ou deixou de fazer, mas por aquilo que cada um enxerga com seus próprios olhos, diante de si".
Graduado em História pela Unisinos, Gertz é professor nos Departamentos de História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS e da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual a contribuição dos imigrantes alemães na história do movimento operário no Brasil?
René E. Gertz – Certamente, esse não é um campo em que a contribuição de imigrantes alemães seja numericamente grande. Mesmo assim, a tradição social-democrata alemã teve influência nos primórdios do movimento operário brasileiro. E mesmo que a Alemanha não tenha sido um país em que o anarquismo estivesse muito difundido, temos alguns representantes dessa corrente que deixaram suas marcas por aqui. Anos atrás, traduzi as memórias de um imigrante anarquista (Friedrich Kniestedt), que, entrementes, virou nome de rua em Porto Alegre. E na Universidade de Campinas, o maior centro de documentação sobre o movimento operário brasileiro leva o nome Edgard Leuenroth, um anarquista alemão que atuou em São Paulo.
IHU On-Line – Que herança política a colonização alemã deixou para o povo gaúcho? É possível perceber um conservadorismo?
René E. Gertz – Até 1945, havia basicamente dois agrupamentos políticos oligárquicos no Rio Grande do Sul, diante dos quais não faz muito sentido estabelecer uma classificação entre "conservadores" e "não conservadores". Mas o bom senso mandava apoiar o governo. Mesmo assim, chama a atenção o fato de que Santa Cruz do Sul, por exemplo, foi majoritariamente oposicionista desde o século XIX, e, nas eleições de 1907, a governador do estado, o candidato oposicionista, Fernando Abbott (sobrenome inglês, de São Gabriel), fez, no mínimo, a metade de todos os seus votos na "colônia alemã". Em alguns outros momentos, ocorreram situações semelhantes. Isso significa que, mesmo naquela época, a "colônia" não foi tão conservadora assim.
Depois de 1945, a "colônia" votou tendencialmente mais conservadora, ainda que também com variantes, de lugar para lugar. E essas variantes são mais marcantes ainda no período posterior ao regime militar, assim que, à medida que nos deslocamos para o oeste do estado, as regiões de colonização alemã votam cada vez mais à esquerda. Cerro Largo, na fronteira oeste, por exemplo, apresentou os índices mais elevados de votos para Alceu Collares e para Olívio Dutra, quando concorreram ao governo do estado.
Mas ainda há outro fator a considerar. Votar em partidos classificados como conservadores não significa votar pela antidemocracia. Permito-me citar um exemplo de um pequeno município não muito distante de São Leopoldo. São José do Hortêncio, durante toda a década passada, sustentou o primeiro lugar, em todo o Brasil, de município em que se faz o maior bem possível para o maior número possível, da forma mais equitativa possível, com os recursos existentes. Ninguém, de sã consciência, poderá dizer que esse dado permita classificar o município de conservador. Um observador externo, porém, forçosamente o classificará como tal, pois ele possui apenas uma vereadora do PT, enquanto todos os demais vereadores, o prefeito e o vice-prefeito pertencem a partidos que vão do PMDB para a "direita". Isso significa que as palavras e os gestos políticos da população de muitas "colônias" podem parecer conservadores, mas não significa que o comportamento efetivo também o seja. Está na Bíblia: "Nem todo aquele que grita "Senhor! Senhor!’ entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu pai". E, na "colônia", sem dúvida, acontece um pouco isso – a despeito de tudo aquilo que se ouve na rua, e até em renomados centros universitários de Ciência Política.
IHU On-Line – Quais as críticas mais comuns feitas ao processo de colonização alemão no Rio Grande do Sul?
René E. Gertz – Há duas avaliações diametralmente opostas a respeito do projeto de colonização com alemães. Uma louva os frutos materiais (economia) e imateriais (senso de ordem, de dedicação ao trabalho). A outra destaca os prejuízos para a constituição da nação: os alemães e seus descendentes seriam gente que não se "integra", que é racista, que destruiu a unidade religiosa do país.
Se a primeira visão está eivada de evidentes exageros, a segunda está baseada em indícios muito frágeis, sem comprovação científica. Mas, em muitos momentos da história, esta última avaliação prevaleceu entre parcelas significativas da opinião pública brasileira, e até internacional.
IHU On-Line – Quais os principais conflitos que descendentes de imigrantes alemães vivem aqui no estado?
René E. Gertz – Grandes conflitos mais generalizados ocorreram apenas durante as duas guerras mundiais. Os conflitos anteriores e posteriores a esses dois episódios sempre foram localizados e até individualizados. Um exemplo que temos hoje, na grita – inclusive difundida, de forma irresponsável, por pessoas de grande influência nos meios de comunicação – sobre uma suposta responsabilidade da "colônia alemã" pela existência do "neonazismo", acusação que não tem qualquer sustentação em fatos.
Em 2009, um "neonazista" refugiou-se em Teutônia, após ter (suposta ou efetivamente) participado de um assassinato no Paraná. Quando foi preso, parte da imprensa colocou toda a população de Teutônia sob suspeita de "neonazista". Em agosto de 2010, placas de trânsito ao longo da rodovia que atravessa o município apareceram pichadas com símbolos nazistas. Durante alguns dias, a imprensa, mais uma vez, divulgou matérias sugerindo que essa seria uma nova manifestação da população "neonazificada" de Teutônia. Quando essa versão se tornou insustentável, as próprias autoridades admitiram que se tratava de uma falsificação – na verdade, de um atentado praticado por terroristas "antineonazistas". Contra esses, as autoridades, porém, nada fizeram. A população de Teutônia teria tido toda razão para rebelar-se contra essa indiferença policial frente ao ataque sofrido, mas, aparentemente, ela resolveu evitar qualquer conflito, e se comportou como se nada tivesse acontecido.
IHU On-Line – Como se dá ainda hoje a integração entre a cultura brasileira e a cultura alemã?
René E. Gertz – Na convivência cotidiana, a massa da assim chamada população brasileira de todas as origens e a massa da assim chamada população de origem alemã age de forma muito sensata, e a integração é muito tranquila, nem chega a ser tematizada. Tenho ido aos famigerados Oktoberfest, e tenho visto a confraternização de gente com os mais diferentes fenótipos e as mais diferentes tradições culturais. Se há problemas em alguns lugares, decorrem da ação de elementos desclassificados, de lado a lado.
IHU On-Line – Qual o sentido do ufanismo germânico no RS, sendo que brasileiros com origem alemã vão ao país e não são reconhecidos lá? O que isso diz sobre a autoestima dos imigrantes que aqui chegaram?
René E. Gertz – É um fenômeno recorrente que pessoas que pensam saber falar alemão chegam à Alemanha e não conseguem fazer-se compreendidas. Isso porque dominam um dialeto regional de quase 200 anos atrás, que ninguém mais entende naquele país. Não deve ser agradável para a autoestima dessas pessoas, mas quem tem dinheiro para viajar para a Alemanha deve ter dinheiro também para pagar um psicólogo, depois. O povo simples das "colônias" se entende na sua linguagem dialetal arcaica, e não sofre prejuízos em sua autoestima.
IHU On-Line – Quais as peculiaridades da língua alemã falada no RS (dialeto) e em que medida esse idioma acabou se tornando obsoleto no Brasil, pela falta de atualização?
René E. Gertz – Como disse na resposta anterior, os dialetos que aqui se preservaram não são mais falados na Alemanha. Por isso, falá-los ajuda pouco para conseguir um emprego numa empresa alemã que venha a instalar-se aqui no Brasil. Agora, dizer que, por isso, essa linguagem se tornou obsoleta é arriscado. Apesar de que os pepinos graúdos em conserva que minha mãe fazia, o pão de milho que ela fazia e o melado que nós fazíamos terem se tornado obsoletos, não muda nada no fato de que, quando consigo encontrar esses três produtos, minha salivação aumenta tremendamente, e minha autoestima vai lá em cima. Em português claro: assim como comer uma fatia de pão de milho com uma grossa camada de melado e mais um pepino em conserva faz parte de uma tradição pessoal que é prazerosa, também esses dialetos são elementos constitutivos da cultura do povo simples, que continua se sentindo bem ao falá-los.
IHU On-Line – O que caracteriza os descendentes de imigrantes alemães no RS sob o ponto de vista religioso? E como a religião e a política se relacionam?
René E. Gertz – Não vou aprofundar o tema catolicismo e imigração alemã, mas concentrar-me no fato de que os imigrantes alemães foram os primeiros a trazer para este país e para este estado contingentes significativos de protestantes. Apesar de todos os esforços, os luteranos, até hoje, continuam sendo predominantemente pessoas com sobrenome alemão. Mais ou menos como disse na pergunta específica sobre política, há até professores em universidades públicas deste país, com vistosos títulos obtidos nas mais flamantes universidades do planeta, que ensinam aos seus alunos que os luteranos são reacionários por natureza. Ao menos naquilo que tange aos luteranos gaúchos, isso não é totalmente válido, nem para o passado e, muito menos, para o presente. Mais uma vez, vale lembrar a diferença entre o dizer e o fazer.
Certamente, nem o Pe. Amstad nem o Pr. Buchli passariam pelo crivo da patrulha ideológica. Mas ambos são festejados, com razão, como os mais importantes divulgadores do cooperativismo, não só neste estado, mas até neste país. E o cooperativismo costuma ser louvado até pelos "patrulheiros". Num outro sentido, lembro de uma entrevista do conhecido sociólogo José de Souza Martins, da USP, ao falar da questão agrária no Brasil (assunto em que é autoridade). Quando lhe perguntaram quais os principais atores envolvidos nessa questão, ele respondeu: o governo federal, o MST, os católicos e os luteranos. E quem for verificar os nomes dos padres e dos pastores envolvidos encontrará um número muito grande de nomes de "coloninhos". O ex-presidente Lula parece que reconheceu isso, e nomeou para o Incra um "coloninho" pomerano gaúcho.
IHU On-Line – Quais as principais contribuições que os imigrantes alemães trouxeram ao Brasil sob o viés socioeconômico e político-cultural?
René E. Gertz – Os historiadores discutem se os agricultores de origem alemã realmente contribuíram para a modernização agrícola do estado. Alguns historiadores jovens, inclusive, os acusam de terem sido responsáveis pela destruição da natureza. Comerciantes, por sua vez, foram acusados de gananciosos, e industriais de exploradores de mão de obra. Como em tudo aquilo que tentei dizer nas respostas anteriores, não há nada incontestável. Mas diante da constatação de que, se não acontecer uma catástrofe, daqui a 300 anos nossos descendentes ainda estarão obrigados a conviver neste espaço que é o Rio Grande do Sul, deve-se recomendar a citada sabedoria bíblica de que cada um deve reconhecer seu próximo pelas suas obras. Isso significa que o falar sobre a contribuição do outro ou sobre o prejuízo causado por esse mesmo outro sempre estará carregado com alguma dose de exagero. O verdadeiro reconhecimento deve ser feito por cada um, olhando para as obras efetivas do próximo, reconhecendo-o não por aquilo que ele diz ter feito ou por aquilo que outros dizem que ele fez ou deixou de fazer, mas por aquilo que cada um enxerga com seus próprios olhos, diante de si.
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25 de julho: relembrando a imigração alemã no Brasil. Entrevista especial com René E. Gertz - Instituto Humanitas Unisinos - IHU