18 Junho 2011
Em 1773, por meio do breve (e não bula) Dominus ac redemptor, o Papa Clemente XIV, incitado pelo rei espanhol Carlos III, suprimiu a Companhia de Jesus de todos os territórios católicos do mundo. E foi em países não católicos, principalmente Prússia e Rússia, onde a autoridade papal não era reconhecida, que essa ordem foi ignorada, e a Companhia pôde continuar existindo – embora no exílio. Somente 41 anos depois, em 1814, é que o Papa Pio VII leu a bula Sollicitudo omnium Ecclesiarum, que revogava o breve de Clemente XIV e restaurava a Companhia.
Todo esse episódio virou um romance histórico pelas mãos do jesuíta espanhol Pedro Miguel Lamet. Seu livro El último jesuita (Ed. La Esfera de los Libros, 2011, 628 p.) relata uma história não apenas baseada em um fato verídico: "Tudo é verídico no meu livro, até a ambientação, a forma de comer e de vestir, as comunicações, os mínimos detalhes da vida cotidiana, salvo, é claro, os personagens de ficção que dão unidade ao relato", afirma, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.
Ao analisar os pormenores desse período histórico e das atitudes tomadas pelos jesuítas de então, Lamet reconhece que "a história da Companhia está cheia de conflitos". Para ele, "o segredo de sua eficácia foi, de um lado, os Exercícios Espirituais, que cria homens livres e despertos, com independência de critério e ousadia apostólica. De outro, seu nível cultural e compromisso com as pessoas onde trabalha". Por isso, hoje, mesmo quando os jesuítas possuem "menos meios humanos", a valentia apostólica continua sendo a mesma, ou ainda maior: o desafio é sempre trabalhar dentro da Igreja nas fronteiras da fé. "E todas as fronteiras, já se sabe, sempre são e serão perigosas", afirma.
Pedro Miguel Lamet é escritor, poeta e jornalista jesuíta espanhol. Entrou na Companhia de Jesus em 1958, onde se formou em Filosofia, Teologia, Ciência da Informação e Cinematografia. Foi professor de Estética e Teoria do Cinema nas universidades de Valladolid, Deusto e Caracas, sendo também crítico literário e cinematográfico. Trabalhou como redator da emissora internacional Rádio do Vaticano e, em 1981, foi nomeado diretor da revista semanal Vida Nueva, da qual havia sido editor e editor-chefe desde 1975. Na década de 1980, trabalhou em diversos veículos da mídia espanhola, como a Rádio Nacional de España, Radio 1, El Globo, Tiempo e El País. Atualmente, é diretor da revista bimestral de desenvolvimento pessoal A Vivir. Entre suas inúmeras publicações, destacamos Arrupe, una explosión en la Iglesia (Ed. Temas de Hoy, 2007, 10. ed.); Hombre y Papa (Biografia de João Paulo II) (Ed. Espasa Calpe, 2005; Díez-Alegría: Un jesuita sin papeles: la aventura de una conciencia (Ed. Temas de Hoy, 2005, 2. ed.); e El místico: Juan de la Cruz (Ed. La esfera de los libros, 2009).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Seu livro El ultimo jesuita é narrado em formato de romance. Por que esse gênero literário? E como se deu o processo de produção? Foi baseado em alguma história verídica?
Pedro Miguel Lamet – Hoje, existem dois formatos dentro do boom do romance histórico. Um recria a história com tanta liberdade que a inventa e até a deforma. Para esse tipo de livro, o romance é mais importante do que a história. E uma segunda maneira de escrever, que é que eu cultivo na herança de mestres como Walter Scott, Tolstoi, Sienkiewicz ou o nosso Benito Pérez Galdós, que quer ser muito fiel aos dados históricos, levados nas asas, isso sim, de uma ficção o mais atrativa possível. Assim são, por exemplo, meus romances sobre Inácio de Loyola, Francisco Xavier, João da Cruz, Francisco de Borja.
"Os jesuítas encontravam-se no auge de sua capacidade de influência na sociedade da época" |
No entanto, no caso de El último jesuita a concepção foi especialmente difícil, pois me encontrei com fontes muito dispersas. Investigou-se muito sobre o tema, mas a partir de monografias muito parciais, que abordam aspectos muito concretos, como os estudos centrados nos políticos Roda, Moñino, Campomanes, Aranda e o rei Carlos III. Também na navegação dos exilados, seus diários, negociações em Roma, ou então na obra literária do padre Isla, na biografia de São José Pignatelli, e assim por diante.
Era uma autêntica enxurrada de materiais que eu tinha sobre a mesa e não sabia como lhe dar forma. Finalmente, criei uma família galega, os Fonseca, cujo pai é secretário do Conselho de Castela. O enredo se articula, sobretudo, na vida dos dois personagens, seus filhos, Mateo e Javier, alunos de um colégio de jesuítas, que ingressam posteriormente no noviciado. Mateo, apaixonado por sua prima María Luisa, deixa a Companhia e se coloca ao lado dos perseguidores por razões políticas e econômicas; enquanto Javier, que persevera na ordem, sofre ao lado dos perseguidos. Isso me permite abranger as duas óticas da expulsão e da supressão, de dentro e de fora, em todos os seus aspectos de intriga política, eclesiástica e, o que é muito importante para um romance, de impressionante drama humano.
Em todo o caso, por que um romance e não um livro de história? Em geral, os livros de história são muito cansativos. Como jornalista e escritor, eu gosto de chegar ao grande público. Por outro lado, como digo, não é que eu tenha me baseado em uma história verídica: é que tudo é verídico no meu livro, até a ambientação, a forma de comer e de vestir, as comunicações, os mínimos detalhes da vida cotidiana, salvo, é claro, os personagens de ficção que dão unidade ao relato.
O resultado, para mim, foi, salvando-se as distâncias, uma investigação exaustiva, um sem fim de leituras, momentos de desassossego, mas, ao mesmo tempo, de aprendizagem e de iluminação sobre uma época que eu desconhecia e que, como a história em seu conjunto, é mestra de vida. Com o agravante de que a minha incumbência era também de criação, de pôr em cena, como em um filme ou em grandes relatos de televisão, fatos e personagens, até convertê-los em vida.
IHU On-Line – Seu Seu romance narra um fato histórico marcado por uma delicada conjunção de poder, política e igreja. Como esses três elementos se manifestam historicamente na supressão da Companhia de Jesus?
Pedro Miguel Lamet – Partimos de uma época muito peculiar, o século XVIII europeu, marcado pelo Despotismo Iluminado e pelos Pactos de Família das monarquias bourbônicas. Na França, imperava o galicanismo e, em geral, o regalismo nas monarquias europeias. Isto é, os reis queriam controlar o poder da Igreja e, para isso, lhes escapavam, sobretudo, as ordens religiosas isentas, principalmente a Companhia de Jesus, com seu quarto voto de obediência ao papa. No entanto, o poder do papa e dos bispos o controlavam de alguma forma. Por exemplo, na Espanha, com a Exequatur, uma lei que permitia o governo publicar ou não documentos segundo seus interesses para seus fins políticos.
"O caso de Clemente XIV foi ainda mais cruel, já que foi eleito com o compromisso verbal de extinguir os jesuítas" |
Os jesuítas, por outro lado, encontravam-se no auge de sua capacidade de influência na sociedade da época. Haviam sido confessores de reis, talvez o maior equívoco da história da Companhia de Jesus – escrevi um livro sobre o assunto, Yo te absuelvo, majestad. Confesores de reyes y reinas de España (Ed. Temas de Hoy, 1991/2004) –, e controlavam, na prática, o mundo da educação e da cultura. Se somarmos a isso o fato de que o governo havia estado nas mãos de nobres, até então, formados por jesuítas, não há dúvida do poder que a Companhia ostentava até esse momento.
Com a irrupção, na política, de ministros manteistas (não nobres que haviam tido acesso à educação), estabeleceu-se uma perseguição vingativa e iluminista contra a Companhia e seus amigos. A isso, contribuiu, sem dúvida, a condenação do jansenismo pelo papa, a doutrina do probabilismo na teologia moral, considerado como laxo por um setor, a teoria do tiranicídio (não regicídio, como falsearam alguns) do Pe. Mariana, a tentativa de beatificar seu grande inimigo, o bispo Palafox, vice-rei do México (que, aliás, acaba de ser beatificado agora na Espanha), e uma série de calúnias, como a de que os jesuítas haviam instigado para provocar o famoso Motim de Esquilache; que tinha um império na América, cujo rei seria um tal Nicolau I, com um exército de escravos para invadir a Europa; e os ciúmes de outras ordens e congregações religiosas. A isso, une-se o medo feroz de Carlos III, que fugiu do Motim por um túnel do palácio até Aranjuez, ao qual seus ministros haviam repreendido duramente, sobretudo Tanucci, conselheiro de seu filho, em cartas quase diárias de Nápoles.
A Igreja espanhola se alinhou, por interesses, com o rei, e a Igreja de Roma foi na prática "comprada" e duramente pressionada até a supressão. Como todos esses elementos se combinam? É difícil resumir aqui. Para saber em detalhes, convido à leitura do romance.
IHU On-Line – Quais foram os impactos da decisão de Carlos III sobre o papado de Clemente XIV e sobre a Igreja em geral? O que estava em jogo, do lado da Igreja, nessa decisão?
Pedro Miguel Lamet – O papado foi muito frágil em sua atuação em favor dos jesuítas. Embora Clemente XIII os tenha defendido por meio de documentos, na hora da verdade não os aceitou quando, em barcos fretados por Carlos III, enviou-lhes desterrados para sempre aos Estados Pontifícios, em 1768. É preciso levar em conta que, entre espanhóis, americanos e filipinos, eram nada menos do que 5 mil homens. Disse-se que o papa não os quis aceitar, porque esperava que Carlos III se arrependesse. Mas o resultado foi um terrível ano de penúrias na ilha de Córsega, que vivia então a guerra entre corsos, genoveses e franceses.
"A Igreja espanhola se alinhou, por interesses, com o rei, e a Igreja de Roma foi `comprada` e duramente pressionada até a supressão" |
O caso do seu sucessor, Clemente XIV, foi ainda mais cruel, já que foi eleito com o compromisso verbal de extinguir os jesuítas. Esse frei franciscano, que chegou ao sólio pontifício por uma espécie de compromisso político, era frágil, pouco claro em suas ideias e fascinado pela possibilidade de chegar a ser papa. Mas, quando recebeu a tiara, ele postergou o assunto, torturado pelo medo e pela responsabilidade de decretar a supressão de uma ordem tão numerosa e influente. As intrigas das cortes bourbônicas e sua influência no conclave, seu mal-estar pelo Monitório de Parma e pelo tráfico de influência em Roma, desembocaram na supressão de 1773.
Mas, acima de tudo, foi decisivo o papel de Moñino, recompensado depois com o título de Conde de Floridablanca, que comprou, com prebendas e grandes somas, o confessor e outros prelados e amigos do pontífice. Seu assédio psicológico sobre o papa, tal como aparece em sua abundante correspondência com Madri, acabou destroçando o ânimo e a saúde de Clemente XIV, que acabou assinando o breve (não bula) Dominus ac redemptor, o qual suprimia em toda a Igreja a Companhia de Jesus. A tese de que ele morreu envenenado pelos jesuítas é tão falsa que até os inimigos destes defendem que, na realidade, ele sucumbiu a um envenenamento mental por medo e angústia.
Nem toda a Igreja aceitou igualmente essa decisão. Por exemplo, o arcebispo de Paris contestou furiosamente. As consequências, por exemplo, para o ensino e a cultura foram fatais. E, na Ibero-América, as manifestações de dor por parte do povo foram muito frequentes.
Os historiadores continuam divididos perante a conduta de Clemente XIV. Os partidários do papa defendem que ele não tinha outra saída perante as pressões das cortes bourbônicas para evitar um cisma e que ele atrasou o extermínio o quanto pôde. Os defensores dos jesuítas alegam a grande debilidade do pontífice, seu obscuro compromisso durante o conclave, os funestos colaboradores dos quais se rodeou, a facilidade com que se converteu em marionete angustiada dos ministros em Roma, principalmente do implacável conde de Floridablanca, de certo modo seu verdugo; além de seu desinteresse pelas vítimas, quando outras potências continuavam sendo favoráveis aos jesuítas, e estes chegavam a sucumbir nas mãos do papa, o mesmo que eles defendiam perante os regalistas.
Na realidade, não deixava de ser um primeiro ato da tragédia que a revolução francesa significou para a Igreja, com a supressão de todas as ordens e que culminaria na detenção e na deportação do próprio papa.
IHU On-Line – Como a expulsão dos jesuítas, o antijesuitismo e o anticlericalismo de Portugal, em 1759, na pessoa do Marquês de Pombal , influenciaram na decisão espanhola?
Pedro Miguel Lamet – Portugal foi o primeiro país europeu a expulsar os jesuítas. O ambicioso Pombal, em minha opinião, é a mais cruel dos déspotas da época. Seus interesses eram sobretudo econômicos, de centralização do poder. Depois de reconstruir Lisboa habilmente após o terremoto, esse aspirante à nobreza quis controlar as explorações lusitanas na América, depois da partilha das reduções. Aproveitou a tentativa de atentado, quando regressava de se encontrar com sua amante, contra José I, outro monarca medroso que vivia em uma luxuosa tenda de campanha em Ajuda, temendo uma repetição do terremoto, e ao qual atribuiu aos jesuítas.
"As consequências para o ensino e a cultura foram fatais. Na Ibero-América, as manifestações de dor por parte do povo foram muito frequentes" |
Ele executou o padre Malagrida e manteve encarcerados em lôbregas masmorras muitos jesuítas, principalmente missionários alemães trazidos da América. Foi tão duro, servindo-se de seus parentes, um no Brasil e outro como embaixador em Roma – o "jumento português", chamava-lhe o agente espanhol Azara –, que o Vaticano rompeu relações com Portugal. Era mais drástico do que o rei espanhol. A Espanha estreitou relações com Pombal quando da expulsão, mas se atrasou em dez anos com relação à expulsão portuguesa, entre outras razões porque a rainha mãe de Carlos III, Dona Isabel Farnésio, era muito amiga dos jesuítas. Os padres portugueses sofreram maiores necessidades do que os espanhóis, já que estes – seguramente porque o monarca espanhol queria salvar sua "pia consciência" – foram expulsos com um modesto soldo vitalício como súditos espanhóis, que se converteu também em uma forma de controle dos expulsos por parte dos comissários do rei.
Outro caso também diferente é o da França, onde a figura poderosa é o ministro Choisseul. Ali, propriamente, foi supressão mais do que expulsão, embora, no final, muitos tenham cruzado a fronteira para se refugiar na Espanha. Na França, mistura-se com o fenômeno jansenista e com a funesta atuação econômica de um equivocado administrador jesuíta na Martinica. Em cada país, a tragédia tem acentos diferentes, mas a mais cruel foi, sem dúvida, a provocada por Pombal.
IHU On-Line – Ao serem expulsos de Portugal, por exemplo, os jesuítas foram tratados como bandidos. Como os jesuítas, especialmente o então superior geral, Pe. Lorenzo Ricci , foram tratados por parte da Igreja e do Estado após a supressão?
Pedro Miguel Lamet – A detenção nos colégios e residências espanholas no dia 2 de abril de 1778, mediante um cerco simultâneo em toda a Espanha e à ponta de baioneta, foi vergonhosa. Mantida em segredo absoluto e efetuada pelas Forças Armadas, seguramente por medo de uma rebelião dos "poderosos jesuítas", ela não encontrou a menor resistência, nem o menor episódio de violência. Humildemente e de carroça, com seus breviários e pouco mais, foram transferidos para os portos onde havia sido preparada toda uma complicada logística de barcos de guerra e de outras embarcações que foi preciso alugar de países como Holanda e Inglaterra.
A viagem, nos barcos a vela da época – apesar de terem sido previstos a intendência, os salários dos oficiais e a adaptação dos buques – foi muito penosa. Amontoados em depósitos, comidos por insetos, mareados porque a maioria nunca havia navegado e com pouca comida, tempestades e a terrível prolongação da viagem por causa da rejeição do papa, ela foi recolhida pelos diaristas jesuítas, sobretudo pelo Pe. Manuel Luengo, que chegou a escrever um diário de 33 tomos, obra monumental que se conserva praticamente completa, e agora a professora [Inmaculada] Fernández Arrillaga está publicando. Literalmente jogados nas praias da Córsega, conseguiram dar um jeito para sobreviver e inclusive reconstruir a vida comunitária e até mesmo seus escolasticados no desterro.
"Os que mais sofreram foram os noviços, pressionados até o último momento, sob ameaça de pecado mortal, a abandonar a Companhia" |
Os que mais sofreram foram os noviços, pressionados até o último momento, sob ameaça de pecado mortal, a abandonar a Companhia, sem pensão e à mercê da ajuda dos padres. É exemplar que, em tais circunstâncias, só 20% dos jesuítas expulsos abandonaram a Companhia. Alguns, em meio a essas tragédias, conseguiram alcançar a santidade, como José Pignatelli. Muitos outros, mesmo depois de extinta a ordem, contribuíram com seus estudos, livros e investigações para o florescimento da cultura na Itália e em outras partes do mundo, como o Pe. Miguel Batllori estudou sabiamente.
Em minha opinião, o geral padre Ricci foi superado pelos acontecimentos. Culto, tímido, de família aristocrata, era uma boa pessoa, mas se deixou levar, não foi valente. Ajudou como pôde os portugueses, muito pouco aos espanhóis, e acabou sendo injustamente encarcerado no Castel Sant’Angelo, em Roma, onde morreu de frio e de solidão, sem ser realmente acusado nem julgado. Só foi questionado sobre o único tema que interessava a todos: onde estava o famoso "ouro dos jesuítas", que nunca foi encontrado, apesar de terem sido escavados porões, pomares e jardins. Isto sim, as obras de arte de suas igrejas e os livros de suas esplêndidas bibliotecas foram mal vendidos e dilapidados. Na Espanha, seus colégios acabaram sendo, em sua maioria, seminários, e suas igrejas se converteram em paróquias.
IHU On-Line – Que sintonia há entre as questões históricas da época – como o iluminismo, o Tratado de Madri ou as reduções jesuítas na América – e a decisão do rei Carlos III?
Pedro Miguel Lamet – Como se sabe, 15 anos antes dos episódios que meu romance relata, o Tratado de Madri foi um documento assinado por Fernando VI da Espanha e por João V de Portugal em 13 de janeiro de 1750, para definir os limites entre suas respectivas colônias na América do Sul. Esse tratado faz parte da sucessão de tratados de limites firmados entre Espanha e Portugal desde o século XV, quando foi assinado o de Alcáçovas. Um tratado baseado no princípio de direito romano Ut possidetis, ita possideatis (quem possui de fato deve possuir de direito), ampliou os domínios de Portugal, deixando os limites do Brasil praticamente em seu estado atual.
Como consequência da demarcação das novas fronteiras, a região das Missões Orientais havia de passar para as mãos portuguesas. Essa resolução, no entanto, tinha maior importância do que podia parecer, já que, nos territórios de Portugal, se permitia a escravização dos indígenas (naquela região eram guaranis), enquanto que, nos territórios espanhóis, todos os índios eram automaticamente súditos de Sua Majestade e, portanto, gozavam de sua proteção, razão pela qual não podiam ser escravizados. Essa diferença de status legal da população indígena provocou a resistência a se entregar aos portugueses, resistência que acabou estourando a Guerra Guaranítica, que o famoso filme A Missão evoca.
"As reduções, que haviam sido uma espécie de `socialismo cristão`, tiveram muita importância nas decisões de Pombal e de Carlos III" |
Portanto, as reduções, que haviam sido modelos de sociedades autogestionadas, uma espécie de "socialismo cristão", embora não carente de um certo paternalismo, tiveram muita importância nas decisões de Pombal e de Carlos III, pois havia interesses econômicos no meio e o fantasma de que os jesuítas estavam por trás da Guerra Guaranítica.
Sobre o Despotismo Iluminado que eu mencionei, a importância do regalismo e do galicanismo: trata-se de uma contradição em termos, já que um despotismo nunca pode ser iluminado, e um autêntico iluminismo não pode ser déspota. Seus defensores, no entanto, argumentam que, assim, o Estado se libertou da tutela da Igreja, que está na origem da Revolução Francesa. Mas, na realidade, esta última se rebelou, depois, precisamente contra os déspotas. É preciso acrescentar a importância dos enciclopedistas no chamado Século das Luzes. Mas não deixa de ser uma contradição que os "iluminados" destruíram a instituição eclesiástica mais iluminista da época. Em seus colégios, com o método da Ratio Studiorum, haviam educado as elites do continente e das novas terras além-mar. Mantinham observatórios astronômicos. Tinham inclusive chegado às massas, graças às missões populares e estrangeiras. Haviam se vestido de mandarins para entrar nas cortes do Oriente, dando lugar à famosa disputa dos ritos chineses. Na Alemanha, o clero secular lhes havia acusado de monopolizar as cátedras universitárias, enquanto que, em Roma, os cardeais lhes imputavam publicamente o fato de se toparem com eles em quase todos os escritórios da Cúria. Depois da expulsão, Carlos III teve que trazer matemáticos da Itália, porque os únicos matemáticos que havia na Espanha eram jesuítas. IHU On-Line – Em uma autocrítica histórica, os jesuítas foram totalmente isentos nesse processo ou também cometeram erros? Quais? Pedro Miguel Lamet – Um personagem do meu romance, o Pe. Doreste, afirma que, na realidade, a Companhia de Jesus morreu de êxito. Ele diz assim quando se encontra com Mateo em Veneza: "A Companhia é culpada de ter êxito. Não há nada que seja mais perigoso do que o êxito. Para os outros e para si mesmo. Para os outros, porque o êxito humilha, produz inveja e competição. Para si mesmo, porque o êxito vai ligado ao poder e ao orgulho. A Companhia foi extinta na crista da onda. Quando as demais ordens religiosas e o clero estavam decrescendo em quantidade e em qualidade, a fundação de Santo Inácio vivia todo o contrário. Isso fomenta muito a autoestima, o espírito de corpo, a segurança. Creio que Voltaire disse que o que acabou conosco foi o orgulho. Talvez o momento de inflexão mais perigoso foi a entrada no confessionário real. A máxima de Santo Inácio de que "quanto mais universal, mais divino’ ou a ordem de educar aos que tiverem maior influência na sociedade pôde se voltar contra nós".
"Pio VII chamava de novo os `especialistas e vigorosos remadores que o Senhor lhe apresentava para vencer as ondas ameaçadoras`, 41 anos depois" |
Embora, depois, o mesmo personagem matize: "Mas nada, Mateo, justifica o que estamos sofrendo durante os últimos anos, desterrados, exilados e agora aniquilados de forma secreta, sem a mediação do menor julgamento civil e eclesiástico, com acusações inventadas em sua maioria, com calúnias manifestas, por vingança, para defender o papa contra os regalismos, por cobiça de um tesouro mítico inventado. Enfim, tu, melhor do que ninguém, sabes o que passamos amontoados nestes barcos, vivendo mal na Córsega, peregrinando a uns Estados Pontifícios que também não nos queriam. E, o que é pior, este ponto final, fruto de intrigas, subornos e o medo de um papa frágil e angustiado. A última palavra, Mateo, nessa história, é do medo, do medo de Carlos III, incitado pelos invejosos manteistas, e o medo Clemente XIV escolhido expressamente para nos liquidar. Seu breve suprime a Companhia sem condená-la. Como diz Choiseul, o papa, querendo ou não, evitou um cisma. Essa é a verdade, querido Mateo, ou, se preferes, minha humilde opinião. Não sei se te servirá para alguma coisa".
IHU On-Line – Qual foi o papel da czarina Catarina , da Rússia, na manutenção da Companhia? O que é preciso ressaltar da sua figura e de suas ações nesse período? Pedro Miguel Lamet – Curiosamente, a Companhia sobreviveu de alguma maneira graças a um príncipe e a uma princesa não católicos: um era protestante na Prússia, por algum tempo, e a outra era uma ortodoxa, a czarina Catarina da Rússia, que não quis publicar o breve papal. Isso criou um problema de consciência aos jesuítas por desobedecer ao papa. Mas, no final, conseguiu-se, pelo menos, uma aceitação verbal da Santa Sé. Catarina precisava de bons professores e pensava que manter os jesuítas poderia lhe ajudar em suas intenções de expansão ao Oriente. Mas, na realidade, foi providencial, já que essa reserva foi a célula que se manteve viva às tradições e à espiritualidade inaciana para voltar a germinar em 1814 com a restauração. No entanto, a obsessão e o ódio de Carlos III eram tão intensos que chegaram a reter em Cádiz a frota russa durante um tempo, pelo fato de que Catarina não havia aceitado a supressão. IHU On-Line – Por outro lado, como foi esse período de "exílio" dos jesuítas na Rússia? Como era a vida da Companhia nesse país? Pedro Miguel Lamet – Esse último broto, conservado com determinação por parte da ortodoxa Catarina II na Rússia Branca e seus dois sucessores, manteve a ordem viva em seus territórios sob a direção de cinco vigários gerais. O czar Paulo chegou a solicitar a aprovação formal da ordem a Pio VII, que, tendo-a anteriormente protegido em sua diocese, desejava restabelecê-la e criou uma comissão para isso. Já em 1792, o duque Fernando de Parma, desiludido pelos horrores da Revolução Francesa, pediu jesuítas para a Rússia, e três lhe foram enviados. O papa, apesar das cautelas e das pressões que ainda pesavam sobre ele, não pôs dificuldades e, em 1799, permitiu a abertura do noviciado de Colorno, sendo nomeado como mestre de noviços um personagem bem conhecido dos leitores do meu romance, José Pignatelli.
"A Companhia continua trabalhando dentro da Igreja nas fronteiras da fé. E todas as fronteiras sempre são e serão perigosas" |
IHU On-Line – Qual a sua análise das decisões e dos gestos de Pio VI e de Pio VII, que restauraram a Companhia, dando-lhe nova vida? E quais eram as características da Companhia que ressurgia da supressão?
Pedro Miguel Lamet – Embora o embaixador Floridablanca tenha se empenhado a fundo para voltar a conseguir que fosse eleito outro papa ao gosto bourbônico, no final, Pio VI não cumpriu suas expectativas. No entanto, apesar do fato de que esse pontífice sentia no fundo alguma simpatia pela ordem extinta e que nunca tenha aprovado o breve do seu antecessor, estava amarrado de pés e mãos para restabelecê-la, o que só o seu sucessor poderia fazer. Em 1802, reunida a Quarta Congregação russa, foi eleito geral o padre Gabriel Gruber, vienense, professor de Arquitetura e Mecânica, que construía artefatos de ferro ou madeira assim como pintava quadros inspirados. Gruber mandou a Roma o seu assistente Cayetano Angioloni e nomeou como provincial da Itália o nosso José Pignatelli, que seria uma ponte de união entre a Companhia suprimida e restaurada, implantada já no reino das Duas Sicílias, a pedido do rei de Nápoles, seriamente arrependido de suas condescendências com Tanucci. Embora isso já ultrapasse o período que o meu romance relata, deve ter sido todo um espetáculo comprovar, ao abrir-se a casa de Nápoles, que de mais de 100 ex-jesuítas que ali estavam, já idosos e cansados com tantas decepções, só três muito doentes deixaram de se reintegrar na Companhia. E uma outra história emocionante: os antigos expulsados levaram os seus livros queridos, que lhes serviram de refúgio intelectual no exílio, para engrossar a biblioteca da casa nova. O Pe. Luengo conta que o Pe. Pignatelli fez transportar 26 caixas de livros procedentes de sua biblioteca pessoal, muitos deles raros e de grande valor. Esses padres e irmãos não ficaram muito tempo tranquilos, pois em poucos meses foram enxotados pelas tropas napoleônicas. Alguns se transladaram para fundar obras na Sicília. Outros, com Pignatelli à frente, foram para Roma, onde trabalharam felizmente com todas as bênçãos de Pio VII. Em 1805, o padre Gruber faleceu, tendo sido sucedido, como quinto e último geral eleito na Rússia, o polonês Tadeu Brzozowski, que veria a total ressurreição da ordem inaciana.
"Um velho enfrentamento entre clericalismo e anticlericalismo ganhou novas cores hoje" |
Enquanto isso, o ambiente hostil contra os jesuítas havia mudado. Restabelecidos em Parma, Nápoles e Sardenha, e com o interesse da corte imperial de Viena por eles, só Carlos IV da Espanha continuou obstinado por algum tempo na política de seu pai e até mesmo empenhado em exterminá-los também dentro da Rússia. Não deixa de ser curioso que, mais tarde, despojado da coroa e desterrado na Itália, ele tenha agarrado à batina de Angiolini enquanto lhe dizia: "Se esta tivesse se preservado em Madri, eu não estaria em Roma". Também desterrado em Fontainebleau, Pio VII confiava a seus íntimos seus desejos de dar logo o passo definitivo, o que faria em 1814, vencido Napoleão e de regresso a Roma, surpreendendo até seus colaboradores, entre eles o cardeal Pacca, a quem assegurou: "Podemos celebrar a restauração da Companhia de Jesus na próxima festa de Santo Inácio".
Naquele tempo, Pignatelli havia morrido em odor de santidade (beatificado por Pio XI em 21 de maio de 1933 e canonizado por Pio XII em 12 de maio de 1954), e não deixavam que o superior geral Brzozowski saísse da Rússia. Elegeram, portanto, para receber o histórico documento um idoso de 80 anos, Luis Panizzoni, como símbolo daquele broto que se conservou na Rússia, pois ali esse italiano havia entrado como noviço. O padre Luengo recordaria com grande alegria, em seu monumental diário, esse tão insigne acontecimento, que encerrava um tremendo ciclo. Às oito horas da manhã do dia 7 de agosto de 1814, às portas da Igreja del Gesù, uma centena de jesuítas idosos meio enfermos, junto com cardeais e outras personalidades, esperavam a chegada do papa, que, entre aclamações do povo romano, passou para o Quirinal. No altar de Santo Inácio, Pio VII celebrou a missa, onde foi lida a bula Sollicitudo omnium Ecclesiarum, que revogava o breve de Clemente XIV, e, respondendo a um apelo unânime, chamava de novo os "especialistas e vigorosos remadores que o Senhor lhe apresentava para vencer as ondas ameaçadoras", 41 anos depois. IHU On-Line – Em nível mundial, ainda há traços de antijesuitismo, dentro da Igreja ou em determinados governos (por exemplo, na própria Espanha, com o socialismo)? Qual o papel da Companhia perante esse desafio? Pedro Miguel Lamet – Como se sabe, a Companhia sofreu outras expulsões e rejeições. Basta recordar, por exemplo, a da Segunda República espanhola, que, sob a desculpa de expulsar as "ordens com um voto de obediência a um poder estrangeiro", desterrou de novo os jesuítas antes da Guerra Civil. Entre eles, estavam jesuítas famosos, como os padres Arrupe, Llanos ou Díez-Alegría.
"O segredo da eficácia da Companhia foram os Exercícios Espirituais, que cria homens livres e despertos" |
A história da Companhia está cheia de conflitos. Por quê? Ultimamente, não se pode atribuir a seu poder político precisamente. Santo Inácio queria unir virtude com letras. O segredo de sua eficácia foi, de um lado, os Exercícios Espirituais, que cria homens livres e despertos, com independência de critério e ousadia apostólica. De outro, seu nível cultural e compromisso com as pessoas onde trabalha. A partir do penúltimo general, Pedro Arrupe, isso se traduziu na promoção da fé e da justiça, o que custou o martírio a Ellacuría e seus companheiros de El Salvador, aos quais seguiram uma centena de jesuítas em diversos países. Essa é a melhor prova de que ela está viva e que hoje seus prediletos são os últimos em meio aos abismos criados pela globalização e por uma perversa ordem internacional.
Essa forma de proceder também significou alguns atritos com a hierarquia. O próprio Arrupe foi um mártir incruento de sua tenacidade pela inculturação e por responder com novos moldes aos desafios do nosso tempo, que é, sobretudo, a defesa dos pobres contra os desaforos de um mundo injusto. Mas, no final, a santidade da Arrupe, de quem tive a honra de escrever uma biografia extensa e reeditada, está fora de toda a dúvida, embora não tenha sido oficialmente reconhecida pela Igreja. Na Espanha, a situação é diferente. Eu não acho que haja agora um conflito específico com a Companhia, mas sim com toda a Igreja. Ganhou novas cores, de certo modo, um velho enfrentamento entre clericalismo e anticlericalismo, que procede, de um lado, de um involucionismo eclesial, que se defende um pouco assustado perante o fenômeno da secularização nos castelos de inverno, e de um revanchismo de uma certa esquerda contra a repressão religiosa dos 40 anos do franquismo. Mas isso já ultrapassa por completo a questão jesuíta. Hoje, o que faltam lamentavelmente são vocações sacerdotais e religiosas, e o que urge é uma inculturação no mundo dos jovens que se movem nas redes sociais e são vítimas das solicitações nem sempre boas da aldeia global. No entanto, a Companhia, com menos meios humanos, mas com a mesma ou, se cabe, com uma maior valentia apostólica, continua trabalhando dentro da Igreja nas fronteiras da fé. E todas as fronteiras, já se sabe, sempre são e serão perigosas. (Por Moisés Sbardelotto)
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A supresssão da Companhia de Jesus: episódio-chave de sua ação nas fronteiras da fé. Entrevista especial com Pedro Miguel Lamet - Instituto Humanitas Unisinos - IHU