15 Janeiro 2007
“Lula da Silva é apenas o general patético do enorme exército Brancaleone que deixa em sua passagem rastro de desorganização material e moral do movimento social”. O historiador Mário Maestri, professor de História na Universidade de Passo Fundo-RS, assim resume a sua opinião quanto à atual situação e desempenho da esquerda e do movimento social em nosso país, fortemente desestruturados pela hegemonia imperiosa do capital financeiro há quase trinta anos. A enorme fragilidade da esquerda brasileira é, em sua opinião, reflexo direto da debilidade estrutural do movimento social, e a crise de ambos se alimenta reciprocamente. O Correiro da Cidadania, 14-1-2007, publicou uma entrevista com ele.
Mário Maestri do artigo As sete mulheres e as negras sem rosto: ficção, história e trivialidade publicado nos Cadernos IHU Idéias no. 17, Gilberto Freyre: da Casa-Grande ao Sobrado - Gênese e dissolução do patriarcalismo escravista no Brasil. Algumas considerações, Cadernos IHU no. 6 e O Escravismo Colonial: A revolução copernicana de Jacob Gorender, Cadernos IHU no. 13. Todas as publicações estão disponíveis nesta página.
Confira a entrevista.
A reeleição de Lula foi uma surpresa para você? Qual foi a principal razão da reeleição?
Lula da Silva estava virtualmente eleito quando o grande capital descartou José Serra, por menos confiável. É difícil imaginar objeto eleitoral midiático e politicamente menos potável que Alckmin, que teve seu nome mudado para Geraldo, em plena campanha! Heloísa Helena jamais se transformou na candidata de reunificação do movimento social. Com sua pregação moralista e individualista, obteve alta votação, no primeiro turno, mas impediu que a campanha avançasse na construção de pólo de esquerda classista. Cristóvam Buarque jamais foi tomado a sério pelo eleitorado. Lula da Silva disputou consigo mesmo, derrotando-se no primeiro turno, com a ajuda de seus próximos, pegos, outra vez, com a mão em milhões, novamente sem origem, e alcançou consagração plebiscitária para sua gestão neoliberal no segundo turno, ao assustar os eleitores conscientes com o bicho papão Alckmin.
Nos últimos anos, as retrospectivas de fim-de-ano não despertam grandes esperanças. Na sua opinião, qual teria sido a marca diferencial de 2006?
No Brasil, vivemos com saudades do passado. Após quatro anos de crescimento geral na América Latina, o Brasil acrescentou mais um ano, aos já quase trinta, de estagnação estrutural que tem transformado em forma patológica a sociedade e a nação. De novo, a extrapolação, generalização e banalização da corrupção da vida política. A tentativa de auto-aumento dos salários dos parlamentares para mais de trinta mil reais mensais – são quinze salários ao ano –, enquanto os mesmos parlamentares pontificam sobre a impossibilidade de elevação efetiva do salário mínimo, pois ameaçaria as finanças públicas, é exemplo excelente da utilização do serviço público para enriquecimento privado.
No entanto, a exigência de que os parlamentares comportem-se com decência republicana tem elementos de ingenuidade ou demagogia. O Brasil tornou-se máquina terrível de triturar o trabalhador em benefício do capital, acionada por parlamentares, juízes etc., que exigem participar minimamente do saque que apóiam e sustentam. Os salários diretos e indiretos mirabolantes são espécie de “salário insalubridade” pago com gosto pelos donos do poder, com os recursos da nação, aos serviçais excelentes, caso a população não se mobilize contra eles.
Têm razão os que sugerem que houve e ainda haverá uma forte desmobilização da sociedade civil e dos movimentos sociais durante o mandato de Lula?
Razões históricas complexas dificultam a constituição do movimento social no Brasil como ente para si. Somos país continental formado por múltiplas nações. A liberdade civil é recente: há 118 anos, o trabalhador era propriedade do explorador. Jamais contamos com um amplo campesinato. O movimento social sofreu derrotas profundas recentes – o Golpe de 1964; as eleições indiretas de 1984 etc. O mundo do trabalho jamais se elevou autonomicamente, a não ser, talvez, em forma confusa e transitória, em fins da década de 1970. A hegemonia do capital financeiro, construída desde o final da Ditadura, aprofundou a fragilização do operariado fabril com a desindustrialização relativa do país. Tivemos quase três décadas de estagnação econômica. Multidões de parlamentares, administradores, sindicalistas, intelectuais etc. apóiam a gerência do movimento social segundo as necessidades do capital como meio de progressão social. Lula da Silva é apenas o general patético do enorme exército Brancaleone que deixa em sua passagem rastro de desorganização material e moral do movimento social.
Quem é essencialmente a esquerda do Brasil, hoje? E o que pensa de sua atuação em 2006?
O grande acontecimento de 2006 talvez seja a aceleração da crise da esquerda. O PCdoB apoiou com disciplina o governo do capital, recebendo por isso a presidência do Congresso. Aldo Rabelo não entrará para a história por ocupar telegraficamente a presidência da República, mas por comandar o maior espetáculo nacional de impudicícia parlamentar e, sobretudo, ser o primeiro comunista nacional a mandar prender 497 camponeses! O que, convenhamos, não é pouco!
Em 2006, vimos as esperanças despertadas pelo PSOL encolherem-se. O refluxo social após a luta contra a reforma da Previdência contribuiu para que o PSOL se mantivesse como federação de tendências parlamentares, sem construir um programa, funcionar democraticamente, centrar sua ação no movimento social. Por não ter superado o eleitoralismo, não se transformou sequer no pólo de reunificação eleitoral do movimento social.
O PSTU, a maior organização marxista-revolucionária do Brasil, reúne escol de militantes. Sofreu mais uma rejeição eleitoral sem que sua direção abandone a posição de direção revolucionária autoproclamada e proponha uma real reflexão sobre sua prática, organização e programa. Sobretudo, 2006 será conhecido como o ano em que parte da vanguarda abandonou a CUT à burocracia pelega para construir central vermelha, apenas com trabalhadores avançados, que, com uma nova direção, abrirá o caminho da mobilização. Uma divisão dramática para o movimento operário, mesmo em momento do ascenso da luta. O que se dirá sob o domínio do refluxo social!
Qual a sua opinião quanto aos movimentos populares e de esquerda que apoiaram criticamente Lula no segundo turno?
Houve as exceções, os que defenderam o voto no segundo turno e seguiram conscientes na oposição. Mas foram poucos. Mais comum foi a renúncia à frágil ruptura com o governo, com o retorno à casa paterna, o rabo entre as pernas, pela porta dos fundos, enquanto Lula da Silva atendia na sala os que importam. Esses arrependidos, para prestar serviços, atacaram sem dó os que propunham o voto nulo; agitaram o perigo Alckmin; ressuscitaram do reino das ilusões perdidas a “vitória da esquerda”, o “espaço de mudanças”, a “segunda possibilidade”, o “governo em disputa”.
O voto da burocracia da CUT em Lula da Silva foi desdobramento automático da adesão anterior plena ao social-liberalismo. Na esquerda socialista e classista, há mágoa com a direção do MST, pelo apoio à reeleição do governo neoliberal. Creio que temos que compreender esse ato. O MST constitui nosso mais valioso movimento social, que conquistou ganhos para multidões de brasileiros pobres. Por além da orientação de militantes da base e da direção, é movimento político-sindical de defesa da pequena propriedade, de cunho democrático-radical. Na luta pela refundação social do Brasil, a aliança cidade-campo terá seu pólo forte e anti-sistêmico no grande operariado urbano. Ou não terá.
Em entrevista ao Correio da Cidadania, quando do segundo turno das eleições presidenciais, você prognosticou a continuação do projeto neoliberal. Porém, a surpresa do segundo turno foi a retomando da crítica às privatizações por Lula.
Alguém escutou algo sobre investigação das privatizações e devolução dos bens públicos? Sobre a orientação da economia ao mercado interno, acréscimo substancial dos salários, melhoria das condições de trabalho, ampliação da legislação trabalhista? Não. Prosseguem a internacionalização da economia, a hemorragia financeira, a priorização das exportações, a privatização do futuro com as parcerias público-privadas, as PPPs, a prioridade do agronegócio. Segue a carência na saúde, segurança, educação e trabalho. Fortalecido pela consagração plebiscitária, o governo discute elevar o nível pífio da expansão econômica, sem propor modificação da realidade antinacional e antisocial dominante. Discute, ao contrário, cortes nos investimentos e novo ataque à Previdência. E por que faria diverso? Em time vitorioso, não se mexe!
Qual o caminho que imagina será feito pela esquerda no Brasil? O que configuraria um autêntico projeto de esquerda? O socialismo pautaria ainda esse projeto?
O socialismo não é utopia referencial, mas necessidade urgente. Não há catastrofismo em propor que do socialismo dependa a sorte da humanidade, ferida por ondas de doenças, guerras, crises ambientais e climáticas cada vez mais complexas e globalizadas. Apenas o socialismo apresenta saída ao domínio da violência, tristeza, miséria material e espiritual. Porém, vivemos ainda sob o peso terrível da derrota histórica do mundo do trabalho simbolizada na Queda do Muro, em 1989, que ensejou retrocessos objetivos e subjetivos materializados pela perda dos trabalhadores da confiança em suas próprias forças.
Devido a esse processo, as vanguardas abandonaram também comumente o programa socialista. Muitos anunciaram seu fim e passaram a servir os poderosos. Outros enviaram o socialismo às calendas, ao propô-lo como eventual opção das gerações a nascer. Houve igualmente o abandono do programa socialista através de reafirmação retórico-dogmática que impede a discussão de sua necessária atualização e concretização. Há diferenças essenciais entre esses movimentos, mas todos são nefastos.
Quais as razões mais profundas da situação específica que vivemos?
A enorme fragilidade da esquerda brasileira é reflexo direto da debilidade estrutural do movimento social, com destaque para o grande operariado urbano. Há crise de direção porque há crise de constituição do movimento social. Não há pólo operário que se confronte, programaticamente, mesmo fragilmente, ao capital. Personagens como Lula da Silva e Luiz Marinho são produtos e não razões do atraso do movimento social. Se Lula da Silva batesse a cabeça, confundisse suas idéias, e se tornasse – aos sessenta anos! – um honesto socialista, tornar-se-ia um estranho para sua base social!
A fragilidade da esquerda e a do movimento social alimentam-se reciprocamente. Dificilmente conheceremos reversão próxima dessa realidade sem uma ruptura paradigmática da relação de forças, nacional ou mundial. Uma realidade que depende portanto também da luta que avança, mais ou menos forte, em níveis diversos, no mundo, no Afeganistão, Iraque, Itália, França, Venezuela, Equador, EUA etc. Porém, o governo conservador de Lula da Silva, devido à importância do Brasil, fragiliza esse avanço, direta e indiretamente. Nossos soldados ocupam o Haiti, por determinação dos EUA, sem um muxoxo dos setores mais avançados da sociedade.
Qual seria, a seu ver, ainda que idealmente, o caminho da oposição ao governo e de luta por uma autêntica transformação em nosso país?
O fundamental é a luta por movimento que transforme a oposição ao governo em questionamento do Estado e das instituições. Ou seja, a luta pela construção de movimento que impulsione, nas esferas política, social, cultural, ideológica, comportamental etc., programa e proposta de refundação da nação a partir das necessidades do trabalho. A ação tradicional pragmática de esquerda no parlamento, organização sindical, administração do Estado etc. já é parte do problema, e não sua solução. Necessitamos de profunda discussão sobre a participação dos socialistas no parlamento, na administração, na estrutura sindical, a origem da dependência orgânica patológica ao Estado, que tem pesado contra a organização democrática e pela base do movimento social.
Necessitamos de organização classista, pela base, da moderna classe trabalhadora, para que ela assuma a direção da sociedade que lhe cabe necessariamente. Urge um sindicalismo enraizado na produção, já que o mero controle da direção de sindicatos tem servido principalmente para a separação política e social dos sindicalistas da vida real dos trabalhadores. Sobretudo, necessitamos movimento que coloque a questão da construção de partido do trabalho no Brasil, organizado em torno de programa de refundação social da nação. Um partido que tenha sua direção e suas políticas definidas a partir da gestão democrática dos militantes de base organizados, entranhados nas lutas sociais quotidianas.
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É fundamental que a oposição ao governo se transforme em questionamento do Estado" Entrevista com Mário Maestri - Instituto Humanitas Unisinos - IHU