21 Novembro 2010
“O país tem hoje uma situação privilegiada”, constata o economista Ricardo Abramovay. Segundo ele, este privilégio “exprime-se no fato de que a transição para uma economia de baixo carbono é capaz de compatibilizar seu crescimento com a preservação dos serviços ecossistêmicos básicos”. Para que o Brasil seja um exemplo internacional na relação entre economia e ecossistemas, elementos básicos devem ser cumpridos, menciona.
“É preciso que (da mesma forma que está ocorrendo na União Européia, no Japão, na China e nos EUA) a inovação industrial tenha por vetor fundamental a preocupação em reduzir ao mínimo o uso de materiais e energia por unidade de produto. Isso exige rastreamento mais aprofundado não só das emissões de gases de efeito estufa, mas dos impactos da produção material sobre a biodiversidade e, de maneira geral, sobre os materiais consumidos pela indústria. Além da chamada pegada de carbono, é fundamental rastrear a pegada de água e de todos os materiais usados na produção”. De acordo com Abramovay, outro elemento importante refere-se ao padrão de consumo atual. "Os padrões de consumo atuais tão concentrados em produtos alimentares de má qualidade, num padrão de mobilidade urbana insustentável e em formas de moradia apoiadas em imenso desperdício devem ser discutidos e modificados".
Na entrevista que segue, concedida, por e-mail, à IHU On-Line, o economista enfatiza que o “Brasil pode continuar desempenhando papel de destaque na oferta de commodities, ao mesmo tempo em que transita para uma economia de baixo carbono e baseada no conhecimento (e não na destruição) da natureza”.
No que se refere aos investimentos a partir das reservas de pré-sal, Abramovay é enfático: “O importante é que ao menos parte dos recursos do pré-sal seja dirigida para acelerar a transição do Brasil para uma economia de baixo carbono, de maneira que os usuários dos resultados da exploração do pré-sal respondam pelo pagamento dos direitos de emissão ligados a seu uso. É fundamental que se ampliem os investimentos em ciência e tecnologia ligadas ao conhecimento dos mais importantes biomas do país, para que o uso sustentável da biodiversidade”.
Ricardo Abramovay é mestre em Ciências Políticas, pela Universidade de São Paulo (USP), doutor em Ciências Econômicas, pela Universidade de Campinas (Unicamp), e possui ainda cinco pós-doutorados, entre eles citamos o curso concluído na Ècole dês Hautes Études em Sciences Sociales. Coordenador do Núcleo de economia socioambiental (NESSA), ele faz parte do Programa de pesquisa Dinâmicas Territoriais Rurais do Centro Latinoamericano para el Deserrollo Rural (RIMISP), do Chile e do International Development Research Center (IDRC), do Canadá.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Como a política econômica brasileira deve ser repensada a partir da questão ambiental?
Ricardo Abramovay - O país tem hoje uma situação privilegiada que ele pode usar de forma inteligente ou desperdiçar. Este privilégio exprime-se no fato de que a transição para uma economia de baixo carbono, capaz de compatibilizar seu crescimento com a preservação dos serviços ecossistêmicos básicos, pode ser levada adiante de forma muito menos traumática que na maior parte dos países com a importância econômica do Brasil. A matriz energética brasileira é dependente de combustíveis fósseis em pouco mais de 50% (embora a presença das termelétricas esteja aumentando de forma preocupante). A média mundial é superior a 85% e a dos países mais ricos do planeta ultrapassa 90%. A redução no desmatamento da Amazônia aumenta a probabilidade de que os compromissos internacionais quanto à emissão de gases de efeito estufa sejam cumpridos.
O fundamental, então, é que estas vantagens sejam utilizadas para fazer da sociedade brasileira um exemplo internacional na relação entre economia e ecossistemas. Isso se traduz por três elementos básicos. Em primeiro lugar, é preciso que, da mesma forma que está ocorrendo na União Europeia, no Japão, na China e nos EUA, a inovação industrial tenha por vetor fundamental a preocupação em reduzir ao mínimo o uso de materiais e energia por unidade de produto. Isso exige rastreamento mais aprofundado não só das emissões de gases de efeito estufa, mas dos impactos da produção material sobre a biodiversidade e, de maneira geral, sobre os materiais consumidos pela indústria. Além da chamada pegada de carbono, é fundamental rastrear a pegada de água e de todos os materiais usados na produção.
O segundo elemento refere-se à Amazônia: não é possível que ela continue sendo encarada estrategicamente como o local de onde se extraem minérios, onde se produz energia e como o paraíso das commodities. É verdade que melhoram, nos últimos anos, as condições de exploração de energia, minérios e commodities. Mas ainda estamos a anos-luz da recomendação de Bertha Becker e Carlos Nobre, no documento de 2008 da Academia Brasileira de Ciências de construir uma economia baseada no conhecimento da natureza, no uso sustentável da floresta em pé. Estamos assim desperdiçando uma riqueza nacional fantástica e, mais que isso, a oportunidade de desenvolver um padrão de uso dos recursos produtivos que pode ser exemplar em termos internacionais.
O terceiro elemento refere-se ao próprio padrão de consumo atual. A contrapartida da redução da pobreza e da desigualdade é que deixa ainda mais patente a insustentabilidade do padrão de consumo que marca a sociedade brasileira. Quem mora em São Paulo percebe que a aspiração e o verdadeiro culto à propriedade de um automóvel individual, sua transformação não numa utilidade, mas num valor é apenas um exemplo de que aumento da renda não conduz necessariamente a aumento do bem-estar. Isso não significa que a renda dos mais pobres deva parar de crescer, é claro. Significa que os padrões de consumo atuais tão concentrados em produtos alimentares de má qualidade, num padrão de mobilidade urbana insustentável e em formas de moradia apoiadas em imenso desperdício, devem ser discutidos e modificados. O Plano Brasileiro de Ação para Produção e Consumo Sustentáveis – PPCS, atualmente em consulta pública, é um avanço importante nesta direção.
IHU On-Line - A presidente eleita, Dilma Rousseff, prometeu erradicar a miséria e reduzir a pobreza a apenas 4% da população até 2014. Quais os desafios nesse sentido? O Brasil tem condições de continuar reduzindo a pobreza, considerando o atual modelo de desenvolvimento econômico?
Ricardo Abramovay - Há duas dimensões importantes nesta pergunta. A primeira é que o sucesso em cada passo adicional na luta contra a pobreza é mais difícil que o passo anterior. Os que se encontram em situação de miséria absoluta, muitas vezes, são indivíduos e famílias – na maior parte dos casos famílias monoparentais, dirigidas por mulheres e, com frequência, por mulheres relativamente idosas – distantes de redes básicas de solidariedade capazes de suprir suas necessidades em momentos mais críticos e de abrir horizontes de mudança de vida em termos de emprego ou oportunidade de geração de renda. Se a ideia é realmente zerar a miséria absoluta, um caminho importante é a formação de equipes de agentes de desenvolvimento capacitados a dialogar com estas famílias e, sobretudo, a lhes abrir contatos e oportunidades que permitam recuperar sua autoestima e ampliar o horizonte social em que vivem. Os custos de formação de uma rede de agentes de desenvolvimento seriam certamente compensados pela redução na demanda por atendimento de urgência por parte destas famílias.
A segunda dimensão fundamental está na necessidade de se avançar muito mais na luta contra a desigualdade. Isso não depende estritamente de política econômica e sim de decisões que se referem à disponibilidade de assistência de qualidade às crianças desde a primeira infância e à qualidade do ensino público. Mais que de renda, o Brasil é um país em que ainda há uma profunda desigualdade de expectativas entre os filhos dos ricos e os que vêm de famílias pobres. O passo mais importante para extirpar a miséria absoluta é criar uma sólida rede de proteção à infância e uma política consistente de aumento na qualidade do ensino público e que permita que todos tenham a aspiração de cursar as melhores universidades e ingressar nos melhores postos do mercado de trabalho. Não se pode deixar de mencionar também as diferenças brutais na qualidade dos serviços de saúde de que desfrutam ricos e pobres no Brasil. Isso é um elemento que não apenas desperdiça vidas, mas que corrói o sentimento mínimo de solidariedade que deve marcar uma sociedade democrática.
IHU On-Line - A estratégia de manter o Brasil como o celeiro do mundo está na contramão da terceira revolução industrial, baseada na baixa emissão de carbono?
Ricardo Abramovay - O Brasil pode continuar desempenhando papel de destaque na oferta de commodities, ao mesmo tempo em que transita para uma economia de baixo carbono e baseada no conhecimento (e não na destruição) da natureza. Os segmentos mais esclarecidos do agronegócio já se deram conta disso e não é por outra razão que as mesas redondas da soja, dos biocombustíveis e da pecuária avançaram tanto. A produção brasileira de commodities sairá fortalecida de uma decisão em que os próprios empresários endossem uma política de desmatamento zero em todos os biomas do país e não só na Amazônia. Não é possível imaginar que seja necessário persistir no desmatamento da caatinga como base para a produção de gesso ou de ferro gusa. O desmatamento é a expressão do capitalismo brasileiro da primeira metade do século XX, que, entretanto, ainda tem uma força extraordinária. Um dos grandes desafios dos próximos anos é o fortalecimento de coalizões empresariais que façam da preservação dos serviços ecossistêmicos básicos uma das fontes fundamentais de inovação tecnológica e de ganhos econômicos. Mas, para isso, é fundamental sinalizar que aumento da produtividade e produção de qualidade não combinam com devastação.
IHU On-Line - Qual deve ser a posição do Brasil, a partir da descoberta de reservas do pré-sal, diante da questão energética e ambiental?
Ricardo Abramovay - O ponto de partida para esta resposta é a constatação da extraordinária eficiência energética do petróleo. Thomas Homer-Dixon e Nick Garrison, em Carbon Shift - How the Twin Crisis of Oil Depletion and Climate Change Will Define the Future (Random House Canada) não hesitam em afirmar que a população mundial quadruplicou no último século graças ao petróleo. “Convertemos petróleo em comida e comida em bilhões de pessoas”, dizem eles. Três colheres de petróleo cru contêm tanta energia quanto oito horas de trabalho humano. No último século a quantidade de energia por hectare nas terras agrícolas aumentou cerca de oitenta vezes. É óbvio que há inúmeras consequências negativas no uso do petróleo, que vão da poluição e das emissões de gases de efeito estufa até o próprio poder das companhias petrolíferas. Mas a verdade é que se trata de uma fonte de energia com eficiência impressionante e da qual a humanidade vai continuar dependente ao menos durante todo o século XXI.
Só que com o próprio esgotamento do petróleo a eficiência econômica na extração vai sendo reduzida: em 1930 o retorno energético do investimento em petróleo era de um para 100. Ou seja, cada unidade de energia gasta para extrair petróleo traduzia-se em cem unidades de energia obtidas. Hoje, a proporção caiu de um para 17, a profundidade média da extração subiu de 1000 para 2000 metros e o tamanho médio de um novo campo diminuiu de 20 milhões para um milhão de barris. Estes custos vão aumentar ainda mais como decorrência do acidente de Macondo, o poço da BP que explodiu no Golfo do México. Em reportagem recente no Valor Econômico (17-11-2010), Sérgio Gabrielli, presidente da Petrobras, afirma que a indústria de petróleo tem deficiências no sistema de segurança da exploração em águas profundas. Corrigir estas deficiências significa aumentar os custos da exploração.
A este inevitável aumento no preço do petróleo acrescenta-se, é claro, a necessária cobrança pelas consequências destrutivas das emissões de gases de efeito. Ainda mais se forem levados em conta os trabalhos do mais importante especialista da NASA no assunto, James Hansen, de que não basta estancar as emissões, é necessário reduzir o nível de concentração de gases de efeito estufa na atmosfera se quisermos legar a nossos filhos ecossistemas mais ou menos próximos ao que conhecemos.
O resultado é que o petróleo ficará mais caro em função de sua escassez, de seus crescentes custos de exploração e dos riscos a que esta exploração se associa. Além disso, o uso do petróleo deverá ser taxado por seus impactos negativos sobre a biosfera. Claro que haverá um imenso esforço de captação de carbono, mas isso só vai contribuir para encarecer as emissões, já que não se sequestra carbono gratuitamente.
O grande problema é que, apesar de tudo isso, nada indica, por enquanto, que as energias alternativas poderão substituir o petróleo como fonte de crescimento para a economia mundial. Uma conclusão possível desta constatação é que este crescimento terá que ser contido, sobretudo para os países mais ricos do planeta cujas necessidades básicas já foram atingidas e que já possuem a infraestrutura necessária a uma vida social digna. O que chama a atenção é que a ideia de que deve haver limites ao crescimento econômico, repudiada como quase folclórica no início da década passada, ganha um prestígio crescente nos círculos de negócios e entre alguns dos mais importantes economistas contemporâneos.
IHU On-Line - O petróleo do pré-sal pode financiar a transição do Brasil para uma economia com menor emissão de carbono? Como?
Ricardo Abramovay - Mesmo que do ponto de vista internacional o desafio estratégico esteja na redução das emissões de gases de efeito estufa, seria insensato não organizar a exploração do pré-sal, tendo em vista o inevitável aumento da demanda mundial por petróleo. O importante é que parte significativa dos recursos do pré-sal seja dirigida para acelerar a transição do Brasil para uma economia de baixo carbono, de maneira que os usuários dos resultados da exploração do pré-sal respondam pelo pagamento dos direitos de emissão ligados a seu uso. É fundamental que se ampliem os investimentos em ciência e tecnologia ligadas ao conhecimento dos mais importantes biomas do país, para que o uso sustentável da biodiversidade, a economia da floresta em pé, a economia do conhecimento da natureza, possa ganhar escala e influir sobre o próprio padrão de crescimento da economia brasileira.
IHU On-Line - Que heranças o governo Lula deixa para a nova presidente?
Ricardo Abramovay - A contribuição mais importante do governo Lula é de natureza institucional e se exprime em três realizações decisivas. A primeira refere-se à independência da Polícia Federal. É uma instituição respeitada e que leva adiante suas investigações de forma totalmente legal e profissional. O resultado é um avanço inédito na luta contra a corrupção em todos os níveis e por todo o país. Ali, onde há eventuais abusos de autoridade, o país dispõe de mecanismos claros para coibir. A segunda refere-se ao Ministério Público: era uma organização meio folclórica e radicaloide e hoje tornou-se uma instituição coesa que atua em áreas que vão da corrupção ao meio ambiente, atraindo para si alguns dos melhores jovens talentos. O terceiro elemento importante refere-se ao próprio funcionalismo. O aumento na quantidade de gestores públicos melhorou de forma impressionante a qualidade da máquina estatal. Dizer que nos últimos anos ampliaram-se os gastos com pessoal é um equívoco, pois não é esta a origem dos problemas do financiamento do Estado brasileiro e não leva em conta que gestores bem formados e bem pagos fortalecem justamente o caráter republicano do Estado. Quando se acrescentam a estes elementos institucionais o avanço na luta contra a pobreza e a desigualdade o resultado é que o país está em condições excepcionalmente favoráveis para enfrentar seu mais importante desafio econômico: mudar a qualidade de seu crescimento como base para aprofundar a luta contra a pobreza e a desigualdade.
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Economia de baixo carbono: o desafio brasileiro. Entrevista especial com Ricardo Abramovay - Instituto Humanitas Unisinos - IHU