13 Fevereiro 2009
Numa época em que o diálogo inter-religioso passa por graves momentos – especialmente a partir do cancelamento, por parte dos rabinos italianos, da tradicional Jornada Judaico-Cristã que deveria ter ocorrido em janeiro em Roma, dos ataques a cristãos no Oriente Médio e na Índia, e das recentes medidas da Igreja Católica com a revogação da excomunhão de bispos ultraconservadores, dentre eles um bispo negacionista – torna-se muito importante a reflexão sobre a importância das relações entre a Igreja Católica e as demais religiões mundiais.
Por isso, IHU On-Line entrou em contato telefônico com um dos maiores especialistas cristãos em Islã, o jesuíta egípcio Samir Khalil Samir. Nesta entrevista [1], Pe. Samir analisa todos esses fatos, a partir do ponto de vista de alguém que estuda profundamente o tema há mais de 30 anos, tendo inclusive fundado o renomado Centro de Documentação e Pesquisa Árabe-Cristã (Cedrac, em sua sigla em francês), em Beirute, no Líbano, no qual é assessorado pelo ex-superior-geral dos jesuítas, Pe. Peter-Hans Kolvenbach, seu diretor-delegado. Recentemente, estão trabalhando juntos na produção de um livro sobre a história da cultura árabe dos jesuítas dos últimos cinco séculos.
Tendo participado do Fórum Cristão-Muçulmano, ocorrido em Roma em novembro do ano passado, reunindo dezenas de líderes cristãos e islâmicos, Pe. Samir afirma que, para os orientais, o Ocidente se tornou laico e secular: para eles, vivemos em um neopaganismo. Dessa forma, em vários aspectos, o Islã desafia o cristianismo a tomar uma posição clara tanto em termos de convicção de sua fé, quanto ao primado que ainda devemos a Deus em nossa cultura.
Samir Khalil Samir também é professor de cultura árabe-islâmico-cristã e teologia oriental na Universidade São José, em Beirute, no Líbano, assim como no Pontifício Instituto Oriental de Roma, na Itália. Alguns de seus livros são "Christian Arabic Apologetics during the Abbasid Period (750-1258)" [Apolog[ética Árabe-Cristã durante o período Abbasid, em tradução livre] (Editora Brill, 1993), "Cento domande sull´islam" [Cem perguntas sobre o Islã] (Editora Marietti, 2002), também traduzido para o espanhol "Cien preguntas sobre el islam" (Ediciones Encuentro, 2003), e "Rôle culturel des chrétiens dans le monde árabe" [Papel cultural dos cristãos no mundo árabe] (Editora Cedrac, 2003). Além disso, colaborou na produção da Enciclopédia Copta, da editora Maxwell Macmillan International (1991), do Dicionário Enciclopédico do Oriente Cristão, da Editora do Pontificio Istituto Orientale (2000), e da Enciclopédia Maronita, da Editora Université Saint-Esprit (1992).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como o senhor vê a postura do Vaticano com relação ao diálogo entre as culturas e as religiões?
Samir Khalil Samir – Em primeiro lugar, este Papa colocou o acento sobre o diálogo entre as culturas e o diálogo entre as religiões. Isso ficou bem claro desde o começo. E o objetivo do seu famoso discurso em Regensburg no dia 12 de setembro de 2006 foi precisamente a promoção das culturas e das religiões. A sua crítica, principalmente contra o Ocidente, foi de que as concepções ocidentais de razão não permitem qualquer tipo de diálogo com outras culturas fora da cultura ocidental. E a sua crítica à posição muçulmana foi, por outro lado, de que o fato de colocar o acento essencialmente sobre a religião, e não sobre a razão, não permite o diálogo com o Ocidente. Então, ele estava propondo uma nova abordagem e um novo enriquecimento do conceito de razão, para que esteja aberto ao Terceiro Mundo, às tradições asiática, africana e muçulmana, e uma nova abordagem da religião incluindo a razão, para que o Islã possa também se comunicar com o Ocidente.
IHU On-Line – Qual a sua opinião com da recente revogação da excomunhão dos bispos lefevbrianos e o cancelamento, por parte dos rabinos italianos, da Jornada do Judaísmo?
Samir Khalil Samir – O que o Papa fez, há duas semanas, ao retirar a excomunhão foi um gesto muito claro para dizer: “Nós queremos ajudar esses católicos cismáticos a integrar a Igreja católica”. Então, é um ato de caridade. Isso não significa que não houve erro ou que eles não sejam cismáticos. Significa que nós não concordamos com eles, mas queremos dar-nos as mãos para ajudá-los, exatamente como o Papa Paulo VI, no dia 07 de dezembro de 1965, que retirou a excomunhão da Igreja Ortodoxa Grega – o que não significa que não haja mais problemas, mas significa que é um ato de caridade. Esse foi o objetivo.
Na sequência do levantamento da excomunhão, os rabinos italianos cancelaram a conferência prevista entre católicos e judeus como forma de protesto. O motivo é que, justamente dois dias depois que a excomunhão foi retirada, a televisão sueca publicou, em 21 de janeiro de 2009, uma entrevista feita no dia 1º de novembro de 2008 com [Dom Richard] Williamson, que negava a existência da Shoah e do massacre dos judeus. No entanto, o levantamento da excomunhão não tem nada a ver com o negacionismo do bispo Williamson – essa é uma posição privada do bispo.
Considero que seja lamentável que os rabinos italianos tenham reagido dizendo “Então, não se faz mais diálogo”, como se o Papa tivesse retirado a excomunhão para reafirmar o negacionismo. O Papa, em mais de uma ocasião, afirmou, começando com o discurso de Colônia, no início do seu pontificado, que o antissemitismo é um grande pecado, e por isso é inaceitável.
No entanto, a chanceler Angela Merkel disse que a reação do Papa não era suficiente, que ele devia ser mais claro. Então, o Papa reagiu, no dia 04 de fevereiro, com um discurso em que disse que não podemos aceitar os bispos cismáticos se eles negam a realidade da Shoah. E a reação dos judeus norte-americanos e da Conferência Judaica Mundial foi então: “Aceitamos essa explicação. É claro para nós que a Igreja católica não defende o bispo Williamson, mas, pelo contrário, se opõe a ele”.
Enfim, para concluir, parece que uma grande parte da responsabilidade tenha sido do cardeal Darío Castrillón Hoyos, que era encarregado do dossiê dos integristas cismáticos com Roma e que não sabia da posição de Williamson ou, sabendo, não lha transmitiu ao Papa. Mas a intenção clara do Papa era um gesto de caridade para facilitar aos fiéis hesitantes de reintegrar a Igreja-mãe. Essa intenção foi rejeitada pelos bispos [cismáticos] e por Williamson. Então, o Papa disse: “Se é assim, se não aceitam todos os particulares do Concílio Vaticano II e se não renunciam a esse ato de pensamento negacionista, não podemos aceitá-los”.
Eu considero a atitude dos rabinos italianos exagerada, extremista. Se você pensa que há um ponto a ser discutido, discutamo-lo. Mas cancelar é romper, é fazer um ato político de chantagem. “Se é assim, não fazemos o encontro”. Isso não se faz no diálogo religioso.
IHU On-Line – Qual a sua avaliação do recente Fórum Cristão-Muçulmano celebrado em Roma, em novembro de 2008? Houve avanços nas relações entre essas duas fés?
Samir Khalil Samir – Eu participei do encontro, e foi muito bonito. Estavam presentes cerca de 29 muçulmanos e 29 católicos. Cada grupo tinha escolhido os seus participantes. O tema era a carta escrita pelo grupo dos chamados 138 Doutores, pela iniciativa do príncipe jordaniano Ghazi bin Muhammad bin Talal, da família real, e que tinha como título "Uma palavra comum entre nós e vocês" [A Common Word].
O texto, bastante longo, dizia que as duas religiões têm, como escopo, o amor: o amor a Deus e o amor ao próximo. Assim, tivemos o primeiro dia sobre o amor de Deus, o segundo dia sobre o amor do próximo e, por fim, uma síntese no terceiro dia. E como isso ocorreu? O dia começava com uma conferência de meia hora apresentada por um muçulmano, seguida de outra do mesmo tema apresentada por um católico. Seguiam-se os debates. No segundo dia, trocava-se a ordem: o católico antes, e o muçulmano depois, sempre com os debates.
O que mais me tocou foi a escuta entre todos. Alguém falava, e deixavam-no falar sem reagir imediatamente. Por isso, não era um debate violento, mas uma reflexão aprofundada, em que cada um podia intervir e completar o discurso cristão ou muçulmano, ou fazer perguntas ou objeções. O encontro ocorreu quase totalmente sem desencontros – talvez, duas ou três vezes, o discurso era um pouquinho duro, mas, em geral, não.
Depois, no fim do segundo dia, nos reunimos em dois grupos – católicos em uma sala e muçulmanos em outra – para discutir o texto final comum que gostaríamos de apresentar à imprensa e ao mundo. Esse texto havia sido preparado anteriormente por uma comissão muçulmano-católica comum, e queríamos analisá-lo, ponto a ponto, para saber se estávamos de acordo sobre tudo, ou se gostaríamos de acrescentar, suprimir, apagar alguma coisa. Essas reuniões foram longas, e, depois, cada grupo encarregou um grupinho de quatro ou cinco pessoas, católicas ou muçulmanas, para formular todas as sugestões e críticas feitas nos grupos. No terceiro dia, 06 de novembro, nos reencontramos com um documento para ser discutido pelas duas comissões, o grupo católico e o grupo muçulmano, com o cardeal [Jean-Louis] Tauran (para os católicos), e o grão-mufti de Saraievo, [Muhammad] Ceric (para os muçulmanos). Nós esperávamos na sala.
Depois de longo tempo, o cardeal Tauran chegou e disse: “Tenho uma notícia ruim. Infelizmente, não chegamos a um acordo sobre todo o documento”. Na prática, era o parágrafo cinco do documento que tinha dificuldades, o parágrafo sobre a liberdade religiosa. Estávamos verdadeiramente tristes. Porém, um ou dois minutos depois, o grão-mufti de Saraievo, Muhammad Ceric, entrou e disse: “Tenho uma boa notícia. O grupo muçulmano aceitou o parágrafo cinco sobre a liberdade religiosa”. E foi muito sábio e disse: “Esse parágrafo reassume essencialmente a declaração universal dos direitos humanos. Essa declaração de 1948 foi assinada pela maioria dos países muçulmanos. Portanto, nós, muçulmanos, aceitamos esse parágrafo. E, por isso, não vejo por que devamos apagá-lo”. Houve, então, um silêncio e depois um grande aplauso, e tínhamos um texto comum, com pequenos retoques ainda a serem feitos. E fomos ao Papa, para uma recepção na qual ele abraçou primeiro os representantes da parte muçulmana, e, de passagem, falou pessoalmente com cada um dos 29 muçulmanos e dos 29 católicos, mais os intérpretes, pessoalmente. Tudo ocorreu em um ambiente positivo.
A coisa mais importante para mim é que decidimos que, de agora em diante, a cada dois anos, haverá um Fórum católico-muçulmano, uma vez organizado em um país muçulmano, outra vez em um país católico. Portanto, em dois anos, os muçulmanos organizarão, em um país muçulmano, o próximo encontro. Enquanto isso, a Comissão Comum proporá os temas.
Por que eu digo que para mim é muito importante? Porque já é um processo de diálogo, organizado, estruturado, e não apenas um momento de entusiasmo. Cada um estava um pouco desiludido, porque entendia que, para tratar do amor de Deus, em um dia, e do amor do próximo, no outro, não se pode aprofundar muito. Mas, o importante é começar um caminho juntos, baseado na reflexão, e de um altíssimo nível.
Dentre outras coisas, surgiram pontos essenciais no discurso do segundo dia sobre o amor ao próximo, destacados por um cristão britânico convertido ao Islã, que, sendo imã muito bem formado como muçulmano, tem também um conhecimento excelente como cristão. Ele colocou em relevo o fato de que a sociedade secular, laica, que se encontra no Ocidente, é a maior dificuldade para os muçulmanos. E dizia, ainda: “Eu prefiro viver em um país de tradição e de norma católicas, do que em um país laico, secular”. E isso espelha muito bem a posição sócio-cultural dos muçulmanos. O problema deles é que o Ocidente se tornou laico, secular, Deus não tem espaço nele, estamos em um neopaganismo, dizem.
Pode-se criticar as particularidades, mas, grosso modo, o Fórum foi um grande passo adiante, um ato de fraternidade, porque havia também um aspecto de amizade e de troca fraterna fora dos debates. E isso foi muito positivo.
IHU On-Line – Como o islamismo e o cristianismo podem encontrar pontos em comum com relação à liberdade religiosa e ao fator de reciprocidade necessário para um verdadeiro diálogo nas sociedades mulirreligiosas contemporâneas?
Samir Khalil Samir – Os muçulmanos pensam sempre como grupo, porque o Islã é uma realidade não apenas religiosa, mas também sócio-cultural-política. É uma realidade global. Então, dizem eles, se um muçulmano abandona o Islã para aderir a uma outra religião – o cristianismo, por exemplo – ou proclama o seu ateísmo – e a palavra “proclama” é importante –, esse muçulmano agrediu a comunidade muçulmana, a enfraqueceu. É como um traidor, traiu a comunidade. E como a comunidade é mais importante do que o indivíduo, esse muçulmano deve ser eliminado. E a regra é que a apostasia deve ser punida com a morte, o apóstata deve ser morto.
O mundo moderno, e hoje o cristianismo, coloca o acento sobre o indivíduo, sobre a pessoa humana. E diz: “Mesmo que a ofensa faça mal à comunidade, cada um é livre para escolher a sua religião ou escolher não ter religião”. O conflito é entre duas visões da religião: uma em que a pessoa é o essencial: a visão ocidental moderna; e a outra é a visão em que a comunidade é importante: a abordagem sócio-política. E esta é a abordagem muçulmana e era, historicamente, também a abordagem católica, até há pouco tempo.
Devemos compreender isso não para justificar, mas para saber como explicar. Eu digo aos muçulmanos: “Vocês têm razão sob o aspecto do grupo, mas a pessoa humana e o seu direito de consciência são mais importantes do que a religião”. Toda pessoa tem direito a ter suas opiniões, sua consciência. A religião é um fator secundário, não primário. Penso que, quanto mais alguém reflete e é educado em modo moderno, mais entende a liberdade religiosa.
Devo dizer que damos passos importantes quando discutimos, e vê-se que essa abordagem que insiste sobre a liberdade religiosa se difunde aos poucos. Sobretudo, se pensarmos no aspecto das sociedades de hoje. Hoje, vivemos em sociedades multiculturais e multirreligiosas. No Brasil, vocês têm muitas religiões. Não posso mais dizer: “Todos devem ser seguidores do catolicismo, do direito canônico”. Por exemplo, para o divórcio, a Igreja tem razão em dizer que nós temos as nossas normas: não existe o divórcio, pode-se apenas reconhecer que o casamento tinha a aparência de legalidade, mas não era legal, ou seja, a anulação. Essa posição é a da Igreja católica, mas não posso impô-la a todos, sobretudo se muitos não pertencem a essa tradição religiosa católica. Essa explicação vale no mundo islâmico. Os muçulmanos encontram-se em todo o mundo hoje. Porém, nos países muçulmanos, encontram-se sempre mais não-muçulmanos. Por isso, devo dizer que, se queremos viver juntos, devemos aceitar as escolhas de um cristão que se torna muçulmano, como de um muçulmano que se torna cristão.
Enfim, está o problema da reciprocidade. O muçulmano tem o dever de difundir o Islã em todo o mundo. Isso se chama "Daawa". Eles dizem que o Islã é a melhor religião, porque foi a última que Deus deu à humanidade. Em todo o mundo, particularmente nos países cristãos ou católicos, eles fazem conversões, também no Brasil, em toda a América Latina, em todo o mundo. Eles fazem isso porque estão convencidos de que o Islã é a melhor escolha possível, e os cristãos também fazem o mesmo, porque estão convencidos de que o cristianismo é a melhor escolha. Portanto, temos duas convicções idênticas, mas que se aplicam a duas religiões. Isso significa que, se aceito para mim o dever de propaganda, de pregar, devo aceitar para os outros. Se aceito que um cristão se convenceu e se tornou muçulmano, devo aceitar a possibilidade de que um muçulmano se convença e se converta ao cristianismo.
IHU On-Line – "Amor a Deus, Amor ao vizinho", esse foi o tema do encontro. Qual é a interpretação do Amor para o islamismo? Em que ela encontra conexão com o cristianismo?
Samir Khalil Samir – Destaco duas diferenças que tocam o amor ao próximo e o amor a Deus. Amor a Deus é um tema raro no pensamento muçulmano. O amor a Deus se expressa como misericórdia no Islã, mas não é a qualidade primária. Deus é o onipotente, aquele distante, que faz o que quer porque é transcendente. Não é a proximidade de Deus que é primária. Não é o Deus que se fez pequeno, que se fez homem. Ele permanece distante. Pode ter compaixão, mas é um gesto de rico com relação ao pobre. E isso, obviamente, é diferente da expressão cristã “Deus é Amor”, expressão de São João no Novo Testamento.
Sobre o amor ao próximo, no texto árabe oficial, diz-se “amor ao vizinho de casa”. A expressão do amor pelo próximo, no cristianismo, vem da parábola do Bom Samaritano, em que Cristo não pergunta “Quem é o meu próximo?” – essa é a pergunta do fariseu –, mas diz: “Quem se fez próximo do homem caído entre os bandidos?”. O que significa que não existe um próximo e um distante. Existem apenas pessoas, e eu me faço próximo ou me mantenho distante delas.
Em outros termos, o amor ao próximo, também na parábola do Bom Samaritano, significa, concretamente, amor também pelo inimigo, porque o samaritano é inimigo do judeu. E o amor pelo inimigo faz parte do fundamento do Evangelho e do cristianismo. De fato, é muito difícil explicar ou fazer com que um muçulmano aceite o amor pelo inimigo. Também é difícil para o cristão. Mas é uma obrigação, é a norma, mesmo que a norma seja difícil de se alcançar.
IHU On-Line – Quais os principais desafios teológicos e práticos que o islamismo apresenta nas relações com o cristianismo?
Samir Khalil Samir – De fato, o Islã desafia o cristianismo. Como? Desafia-o porque se apresenta, primeiramente, com mais convicção. Hoje, o cristão – não no Egito, no Líbano, no Oriente, mas sobretudo no Ocidente – parece tão indiferente à religião que diz: “Todas as religiões são boas, todas as religiões têm o mesmo valor”. O muçulmano vem e diz: “O Islã é a única e verdadeira religião”. Esse é um desafio positivo. Eu agradeço aos muçulmanos por serem tão convictos. Espero que os cristãos também sejam assim, com uma diferença: sem excluir ninguém. Eu posso dizer: “O cristianismo é a mais bela tradição religiosa que conheço e agradeço a Deus todos os dias por ter sido educado cristão”. Mas essa afirmação não significa que as outras são ruins. Ela significa, segundo a minha experiência, que o cristianismo é a mensagem mais bela. Mas aceito que o muçulmano diga justamente o contrário.
O segundo desafio é que o muçulmano é tão convicto que coloca Deus em primeiro lugar em tudo. Deus ao excesso. Por exemplo, eu estava hoje no aeroporto do Cairo, e, no momento da oração do meio-dia, algumas pessoas, dentre elas alguns oficiais, se retiraram a um canto e fizeram, sem publicidade, a pequena oração de cinco ou dez minutos do meio-dia. Porque não importa que as pessoas olhem ou não. Deus nos deu o dever de fazer a oração ao meio-dia, então a fazemos. Também isso é um desafio para os cristãos. Essa força, esse primado que se dá a Deus existe no cristianismo, mas perdeu-se um pouco. Como o da oração, o do jejum. O jejum quase desapareceu. Não no Oriente: a Igreja copta tem cerca de 200 dias de jejum por ano. Mas perdeu-se no Ocidente, e é um valor para todas as religiões, para o hinduísmo, para o budismo, para o judaísmo etc. E penso que a presença dos muçulmanos estimula os cristãos a repensar a sua fé, a se perguntar: “Nós não excluímos Deus da sociedade colocando-o somente no privado?”. É o problema do secularismo. Por esse motivo, os muçulmanos dizem que o Ocidente é pagão. E como o Ocidente, para eles, é cristão, então dizem que o cristianismo leva ao paganismo, ao ateísmo. E isso também é um desafio que devemos levar a sério.
IHU On-Line – Muçulmanos e cristãos juntos formam mais da metade da população mundial e, sem paz e justiça entre essas duas comunidades, não pode existir uma verdadeira paz no mundo. Porém, muito se fala da violência que nasce "inspirada" em passagens do Corão. Qual é a verdade com relação a isso? Nesse sentido, a Bíblia não seria até mais "violenta" do que o próprio Corão?
Samir Khalil Samir – A violência sempre existiu. E a Bíblia relata isso, começando com Caim e Abel, para dizer que, desde o início do mundo, a violência existia. Mas, hoje, a violência tomou uma dimensão terrível, porque os meios que utilizamos, as mil formas de bombas, não são o mesmo que lançar uma pedra, uma flecha. Portanto, a violência se difundiu, todos podem adquirir armas. E é muito fácil, sem arriscar nada, ir com um avião e lançar bombas sobre um povo. Vimos isso nos últimos dias e nas últimas guerras, infelizmente. Verdadeiramente, todo o mundo deve enfrentar a questão da paz e da violência.
Às vezes, eu ouço dizer que as religiões monoteístas são as que provocam a violência. Eu acho que isso não é correto e não é verdade. Se olharmos a experiência do século XX, são, pelo contrário, as não-religiões, o comunismo, o nazismo e atualmente o liberalismo extremista que fizeram mais violências, não as religiões. Mas as religiões são, muitas vezes, a síntese da identidade de um povo, mais do que a língua, a história, o sentimento, a solidariedade... Tudo isso se coloca sob a palavra religião. Quando alguém diz “sou muçulmano” ou “sou cristão”, coloca dentro dessa palavra uma condensação de toda a sua história, de toda a sua identidade, não apenas sua, individualmente, mas do grupo. Por isso, a religião tem uma força imensa, tanto de bem quanto de mal. O uso que as pessoas fazem dela é que é ruim ou mau.
Depois dessa premissa, a pergunta é: o Islã é uma religião de paz ou uma religião de violência? Eu escrevi um pequeno livro sobre isso, em francês, intitulado "Violência e não-violência no Corão e no Islã". Não quero dizer que o Islã, por natureza, é violento ou que o Islã é, por natureza, não-violento. Porque, quando eu leio o Corão, vejo que há violência, e como! Mas vejo que há também apelos à paz. Quando leio a história de Maomé, a violência está em todo o lugar, mas há também apelos à não-violência. Sendo sincero, quando leio o Antigo Testamento, encontro a violência em todo o lugar, mas encontro também belíssimos apelos à fraternidade com o estrangeiro, com o inimigo e o apelo à paz. Devo dizer honestamente que, quando leio o Evangelho, é difícil encontrar apelos à violência. E, quando vejo a vida de Cristo, é impossível encontrar apelos à violência. Pelo contrário, a morte de Cristo na cruz significa: “Destruo a violência com a minha vida”. E, como diz Paulo na Carta aos Efésios: “Destruiu o ódio com o seu corpo, na cruz, trazendo a paz”, o contrário do ódio.
O Corão é portador tanto de violência quanto de paz, assim como o Antigo Testamento é portador de violência e de paz. Então, o que fazer? A solução está no interpretar. Se eu fosse muçulmano, acreditaria que o Corão é palavra de Deus para mim. Então, a palavra de Deus se concretiza na vida de hoje, isto é, sou eu que devo dizer qual é a palavra de Deus. Quando encontro uma contradição como esta – violência e paz –, qual é a palavra de Deus?
E falta esse esforço de interpretação do Corão. Não se faz. Esse é o verdadeiro problema. Quando escuto Bin Laden fazendo breves discursos na televisão para justificar a sua atitude, eu digo: “Bin Laden tem razão, segundo o Corão”. E ele cita o Corão. Um outro poderia dizer o contrário, citando versos do Corão, e eu diria o mesmo: “Tem razão”. Mas qual dos dois têm razão? Falta, no Islã, uma autoridade espiritual, que possa dizer: “O Islã é assim, o Islã é paz. Quem escolhe a violência, o ódio, baseando-se no Corão, interpretou-o erroneamente”. Mas ninguém pode dizer isso, porque não existe uma autoridade absoluta, reconhecida, no mundo muçulmano, como é o caso do mundo católico.
Esta é a grande força do catolicismo, também com relação ao protestantismo: há uma autoridade para interpretar o Evangelho. E não o faz depois de uma noite de sono. Mas reflete, discute e chega a uma conclusão que diz que esse é o verdadeiro sentido do Evangelho. Então, isso muda, lentamente, todo o pensamento de quem se diz católico, da comunidade de milhões de católicos. No protestantismo, encontramos quem diz coisas muito justas, antes de todos os outros, e quem, depois de um século, continua dizendo coisas velhas, digamos, porque não há uma autoridade que sirva de guia.
Por isso, o Islã precisa interpretar o Corão, mas não ousa fazê-lo, e tem a necessidade de ter um guia espiritual para o povo, mas isso não existe.
IHU On-Line – Como o senhor vê a perseguição dos cristãos em todo o Oriente Médio, Iraque, Palestina, Índia, Síria etc? Por que é tão difícil para o Islã superar a divisão entre política e fé?
Samir Khalil Samir – Em primeiro lugar, deve-se dizer que a perseguição dos cristãos no Oriente Médio é diferente de país para país. Muitas vezes, está ligada à política. Esse é o grande problema. Mais uma vez, o fato de que, para grande parte dos muçulmanos, política e religião estão interligadas torna a atitude frente aos cristãos muito difícil. Quando os EUA agrediram o Iraque e bombardearam Bagdá, eu fui o primeiro a condenar os EUA na televisão. Eu estava na Itália. Telefonaram-me no sábado anterior para um debate televisivo, quatro dias antes do bombardeio, e eu fui o único que condenou esse ato, dizendo: “Não há nenhuma justificativa ética”. E as outras cinco pessoas comigo defendiam a necessidade de bombardear. Portanto, eu era contra. Mas não disse que eram os cristãos que bombardeavam o Iraque, ou até que os cristãos bombardeavam os muçulmanos. É esse o primeiro erro. A maioria dos muçulmanos pensa no Ocidente como sendo cristão e pensa no Oriente como sendo muçulmano. O Iraque não é muçulmano. Há muçulmanos no Iraque, muitos, o que não quer dizer que o Iraque e todos os iraquianos são muçulmanos ou que a decisão é religiosa. É o mesmo com os EUA.
Por fazerem essa confusão, eles pensam: “Os cristãos bombardearam os muçulmanos. Nós temos cristãos entre nós. Portanto, vinguemo-nos contra os cristãos”. E isso é inaceitável. Essa é uma reação primitiva. Infelizmente, não são os intelectuais muçulmanos que a fazem ou a decidem, mas o povo.
É a mesma coisa na Palestina. Vimos, em Gaza, que agrediram a única escola católica. Vemos a mesma coisa na Índia. Agrediram, no último ano, e destruíram tantas casas, tantos vilarejos cristãos e também orfanatos e etc. para se vingar de coisas das quais os cristãos não são responsáveis.
Outra coisa é o desejo que existe em muitos muçulmanos de dominar. É sempre o mesmo problema: a relação entre religião e política. A política é dominação, no fim das contas. Se misturo religião e política, a religião se torna o instrumento do poder. E isso está errado. Então, a perseguição é mais forte em um país como o Egito, mesmo que não se possa falar em perseguição, mas em pressões contínuas, em esforço para islamizar. Isso não existe na Síria, porque lá há um regime mais laico. Não existia na Palestina, mas começou em Belém, em Gaza, em Nazaré etc. Portanto, depende do nível cultural e de certos aspectos históricos ou políticos.
IHU On-Line – O politólogo francês Gilles Kepel viu nas primeiras palavras de Obama em seu discurso de posse (“somos uma nação de cristãos e muçulmanos”) um claro sinal à comunidade islâmica de qual será a prioridade de seu governo, colocando em um segundo plano o judaísmo e principalmente Israel. O que Obama será capaz de fazer no sentido das relações entre Ocidente e Oriente, incluindo questões políticas e de fé?
Samir Khalil Samir – Espero que seja assim como diz Kepel, mas não estou certo disso. Por que espero? Porque é óbvio para todo o mundo que os EUA, há mais de 60 anos, desde a criação do Estado de Israel, fizeram uma escolha unilateral por Israel e pelos judeus. O motivo é claro: porque há, nos EUA, seis milhões de judeus – até mais do que em Israel –, os quais, em nível qualitativo, têm um peso maior do que 50 milhões talvez, não apenas por causa do dinheiro, mas também pela sua cultura. O jornalismo e as universidades estão muito sob a influência dos judeus. Os judeus são um grupo cultural-religioso – não ético, portanto – dinâmico por vários motivos. Esse é outro problema.
Se buscássemos equilibrar a política dos EUA, daríamos um passo a mais pela paz. Não se trata de fazer concessões, nem aos muçulmanos, nem aos cristãos, nem aos judeus, nem aos hindus, a ninguém. Trata-se de aplicar os direitos internacionais e os direitos humanos tais quais são, sem compromissos. Isso é o que os EUA não fazem. É só ver como usaram o direito de veto nas Nações Unidas de um modo vergonhosamente parcial a favor de Israel para se entender que, malgrado a sua grande democracia e a sua luta pelos demais valores, eles ainda estão muito, muito longes, na política internacional, desses valores.
Eu espero que a história multicultural de Obama e a sua passagem, digamos, de um estágio menos favorecido à cúpula da nação, e que toda essa experiência o ajudem a ser mais justo com relação ao problema palestino-israelense, com relação ao problema islâmico-cristão-judaico, com relação a todos os problemas. E, sobretudo – o que para mim é mais importante –, os EUA devem deixar de pensar: “A democracia somos nós. Nós é que devemos colocar ordem no mundo”. Se as Nações Unidas lhes pedirem, é outra coisa. Mas ninguém pediu que os EUA sejam a polícia do mundo. E eu seria contrário a isso.
O que eu acho mais triste é que, sendo a nação do mundo mais forte, mais inteligente, mais educada, deveriam usar esse poder para servir, segundo o ideal evangélico, e não para dominar. Penso no capítulo 13 de João, em que Cristo diz aos discípulos: “Vós me chamais Mestre e Senhor, e o sou. Estou entre vós como aquele que serve”. Já em Lucas 22, diz: “Que o maior dentre vós seja aquele que serve”. E essa é a verdadeira grandeza. Então, sim, os EUA seriam a nação mais cristã, no sentido mais evangélico. O poder é sempre fonte de injustiça, de guerras, de violência. Pelo contrário, a humildade não pode ser fonte de violência.
Tenho grandes esperanças nos EUA. São o maior país do mundo, em todos os sentidos da palavra. E também são uma nação que quer ser cristã, tem princípios, começou com o cristianismo. "In God we trust", diz no seu dólar. Se esse é o lema dos EUA, que o seja de verdade, que mostrem verdadeiramente que o Deus cristão é um Deus de serviço, um Deus de abaixamento, um Deus da encarnação até a crucificação para chegar à ressurreição. Mas a visão islâmica de Deus é a americana: sou o mais forte, o mais poderoso, o transcendental e faço o que eu achar melhor, julgo eu.
Estou certo de que o presidente Bush Jr. foi sincero e honesto quando dividiu o mundo entre bons e maus e quando decidiu atacar o Iraque. Penso que não era, em primeiro lugar, por causa do petróleo, como se disse. Ele realmente pensava isso.
Para mim, a grandeza significa responsabilidade, como o irmão maior que é responsável pelo irmão menor. Quer dizer, se amanhã alguém está em dificuldade, ele o ajuda. Esse é o ideal que todos temos da família. E por que não considerar assim também a família humana?
(Reportagem de Moisés Sbardelotto)
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Islã, um desafio para os cristãos. Entrevista especial com Samir Khalil Samir - Instituto Humanitas Unisinos - IHU