02 Setembro 2008
"Em certa ocasião, quando veio a Bispa, hoje bispa primaz da Igreja Americana, numa visita à nossa província, eu convidei várias pessoas para participar de uma celebração em nossa Catedral e estava lá Dom Dadeus Grings, usando sua túnica e sua mitra e participou. E depois foi ao encontro dela para cumprimentá-la. E depois ele recebeu muitas pessoas que foram a ele dizer: `O Senhor me surpreendeu, Arcebispo!` `Gostei muito`. `Admiro-lhe muito mais`”. O relato é de Dom Orlando Santos de Oliveira, bispo anglicano da Diocese de Porto Alegre.
O bispo concedeu, pessoalmente, na catedral anglicana de Porto Alegre, a seguinte entrevista à IHU On-Line. Dom Orlando participou recentemente, com todos os bispos anglicanos brasileiros da Conferência de Lambeth, importante evento da Comunhão Anglicana.
Dom Orlando Santos de Oliveira é o bispo anglicano da diocese de Porto Alegre desde 1998.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O que é a Conferência de Lambeth e como funciona?
Dom Orlando Santos de Oliveira – Para compreender o que é a Conferência de Lambeth, é preciso lembrar como se formou a Comunhão Anglicana. Na realidade, o cristianismo está nas ilhas britânicas desde o início. Quando o Papa Gregório VII enviou Agostinho (não o Agostinho de Hipona, mas o que mais tarde se chamou Agostinho de Cantuária) com mais 40 monges para evangelizar as Ilhas Britânicas, achava que lá não existia mais cristianismo devido às invasões bárbaras. Na época não existia a Inglaterra: existiam as ilhas britânicas com seus reinos. Para sua surpresa, Agostinho encontra lá uma Igreja já estruturada, uma herança ainda dos celtas, que não foi extinta com as invasões dos bárbaros. Agostinho, durante um bom tempo, negociou com aquela Igreja para colocá-la sob a direção e tutela de Roma. Isto acabou acontecendo. Ou seja, aquela Igreja que nasceu autônoma passou a ser parte da Igreja romana.
O que a Reforma do século XVI fez foi reverter isto. Não nasceu uma Igreja nova, mas uma Igreja que já existia voltou a ser independente. Isto se deu por questões políticas, mais do que outra coisa: o rei Henrique queria casar e o Papa da época não concedia licença para o divórcio e isto acabou separando a Igreja da Inglaterra da tutela do Papa. Conseqüentemente, ela também abrigou alguns ventos da Reforma que se dava no continente, com Lutero. Ela manteve as tradições da Igreja Católica, mas resgatou sua autonomia.
Com a expansão do Império Britânico pelo mundo a Igreja foi junto. Com isto foram surgindo Igrejas em várias partes do mundo, inicialmente ligadas à Igreja da Inglaterra como capelanias e depois se tornaram antônomas. Assim, cada país tem uma Igreja Anglicana, porém não tem dependência jurídica da Igreja de Cantuária (em inglês Canterbury), onde vive o “Arcebispo de Cantuária”. A autonomia das Províncias é, portanto, uma característica importante. Por razões históricas Cantuária é considerada a primeira diocese porque foi aonde primeiro chegou Agostinho e é uma referência, mas as Igrejas Anglicanas são Igrejas nacionais. Todas têm seu sínodo e cada uma tem sua representação leiga. Cada país escolhe seu bispo primaz ou arcebispo, que é o encarregado, de certa forma, de manter a unidade da Igreja. Ele preside o Colégio dos Bispos, mas não tem poder de jurisdição sobre eles e suas dioceses. A autoridade maior na Igreja anglicana, como herança da Igreja oriental, está na Igreja reunida, o Sínodo. Esta é a autoridade máxima. E o primaz é o porta-voz desta autoridade e mantém a unidade. Cada província de cada país mantém sua autonomia, tem seu próprio primaz. Mas por razões históricas o Bispo de Cantuária é o primaz de toda a Comunhão Anglicana.
O que é a Conferência de Lambeth? É engraçado que ela surge de um modo esquisito. Ela surge na década de trinta, por uma questão disciplinar de um Bispo na África do Sul. Houve uma questão de disciplina na Província da África do Sul e eles não tinham como resolver a questão e apelaram ao Bispo de Cantuária para moderar esta situação. E ele disse que não ia decidir a questão e que ia convocar uma consulta de bispos. Daí surgiu a primeira Conferência. Ele convidou todos os bispos existentes para uma reunião no Palácio de Lambeth (que é a residência do Arcebispo, onde também funciona o escritório da Comunhão Anglicana), em Londres (daí o nome de “Conferência de Lambeth”), para estudar o caso em questão que queriam disciplinar na África e que nem tinha razão para isto. Com isto, o Arcebispo de Londres decidiu implantar a Conferência, que desde então se reúne a cada dez anos. E se reúnem sempre a convite pessoal do primaz de Cantuária enviado para todos os bispos da Comunhão. Ele não pode convocar, por isso convida.
IHU On-Line – Além do reconhecimento da autoridade do Bispo de Cantuária por motivos histórico, o que sustenta a ligação e relação entre as diversas Províncias da Igreja Anglicana?
Dom Orlando Santos de Oliveira – E como é que se vive e se mantém esta comunhão, já que não existe um cânone jurídico que determine isto? A ligação se dá por meio de uma comunhão de Igrejas. Existem quatro focos ou instrumentos desta unidade que eu cito, não por ordem de importância:
- primeiro, o Arcebispo de Cantuária: Apesar de não ter uma função jurídica e não ter uma cúria que decide com ele é respeitado como foco de unidade e como símbolo pastoral. Ele redige cartas e preside a Conferência.
- o segundo foco de unidade são as reuniões dos primazes: anualmente, os trinta e oito primazes da comunhão anglicana se reúnem em consulta. Em consulta, determinam linhas e consensos de apoio para a pastoral, mas suas decisões não podem ser emitidas como decretos para as Igrejas. É uma consulta.
- o terceiro foco de unidade é o Conselho Consultivo Anglicano. Este é formado por uma representação leiga e por representação de sacerdotes e de bispos. É o único conselho que têm as três ordens. Ele se reúne também para consulta sobre os temas do que está acontecendo na comunhão. Existem comissões que trabalham na área de missão, de liturgia, entre outras, e que promovem encontros e também emitem recomendações, resoluções e documentos, e envia para as Províncias.
- o quarto foco da unidade e momento de consulta é a Conferência de Lambeth.
IHU On-Line – Quais os objetivos da Conferência e como ela funciona internamente?
Dom Orlando Santos de Oliveira – Na Conferência, os bispos se reúnem para uma consulta sobre vários que nos afligem, os temas da vida da Igreja como missão, o desafio da questão social, a questão do meio ambiente, o desafio da cultura, o tema quente neste ano dos alvos da ONU para a erradicação da pobreza até o ano 2015. Sobre isto tivemos uma marcha dos bispos em Londres, passando pela frente do Parlamento e da casa do Primeiro Ministro. Depois disto ele foi ao Palácio e falou para os bispos. Enfim, a Conferência é isto: uma consulta dos bispos a cada dez anos. E é interessante que paralelamente à Conferência dos bispos acontece uma coisa bem diferente do que é possível na Igreja católica, que é a conferência das esposas e dos esposos de bispos e bispas. Estavam lá 15 homens em meio a todas as mulheres. Esta é uma curiosidade. Havia uma parte que era feita em conjunto, como as celebrações. Mas elas tiveram seu próprio programa, com estudos, plenárias, trabalhos em grupos e suas discussões.
IHU On-Line – O que fazia parte desta programação das esposas e esposos?
Dom Orlando Santos de Oliveira – Lá elas discutiram, por exemplo, o que significa ser esposa de um Bispo e as implicações disso. Também discutiram muito sobre toda a questão da opressão da mulher, que continua ainda um grande problema. Por exemplo, discutiram, a partir de um texto bíblico o que significa a opressão da mulher. Tocou-nos que lá eles separaram num plenário, as mulheres dos homens. Depois nos explicaram porque isto era importante: algumas mulheres africanas ainda não falam quando o homem está presente. Mesmo sendo bispos, ainda mantém a cultura do chefe tribal e a mulher ainda é submissa e algumas, até hoje, quando falam, olham para o marido pedindo aquiescência. Então, naqueles plenários, quando se fazia cochicho em grupos, elas falavam quando estavam sozinhas entre elas e com eles juntos não falavam. Por estas coisas a questão da violência contra as mulheres foi muito debatida. E se viu que em alguns países esta questão é ainda muito grave. A desvalorização da mulher é muito séria. Há províncias da comunhão anglicana que não aceitam de jeito nenhum a ordenação de mulheres. Inclusive, algumas províncias que não ordenam mulheres não aceitam que uma mulher ordenada sacerdotisa possa celebrar quando está lá. Isto está mudando aos poucos. Houve também uma sessão conjunta com as esposas, em que se debateu sobre as questões das mulheres e especialmente da violência e opressão.
IHU On-Line – Além da questão da violência contra as mulheres, quais foram os principais temas tratados durante a Conferência?
Dom Orlando Santos de Oliveira – Um tema forte na Conferência foi a Bíblia. Por quê? Porque às vezes a Bíblia foi usada para fundamentar e legitimar situações e posturas complicadas em torno a alguns fatos, alguns temas. Um primeiro fato que gerou polêmica na Comunhão foi a questão da poligamia. No passado, com a expansão missionária, onde foi a Igreja do Ocidente, em alguns lugares encontrou uma poligamia natural e aí começam questionamentos. Alguns, talvez por uma questão de visão teológica muito puritana e visão cultural que não concebia isto, chegam lá, como Igreja e com uma missão de Igreja, quiseram impor a sua cultura. Com isto, houve um grande choque e houve um grande debate na Comunhão num esforço de ajeitar isto quando surgiu este problema. E isto se deu porque os missionários junto com o evangelho levaram uma cultura, levaram o evangelho “enrolado” numa cultura e parecia que ser cristão exigia ser igual. Hoje isto é enfrentado de outra forma, mas em épocas anteriores foi muito difícil.
Outra questão também difícil em outras épocas foi a escravidão. Alguns povos foram escravizados e a Igreja usou a Bíblia para justificar a escravidão. Depois temos a questão da ordenação feminina, que foi um grande tema na década de 1980, mas que continua ainda hoje. É um tema que já gerou muita polêmica e até divisão em Províncias que aprovaram a ordenação de mulheres. Inclusive temos bispos que não aceitam e até renunciaram à sua posição de bispos porque não aceitam isto. E o quarto tema, que surgiu como tema forte já na Conferência de 1998, é o tema da sexualidade humana como um todo, e que agora voltou com um acento na questão da homossexualidade. É preciso compreender isto, inclusive com o apoio das ciências. A própria ciência está tentando entender como se dá isto. Ninguém se torna gay de um momento para outro, como se pudesse acordar um dia e dizer: “Agora vou me tornar gay”. Vários fatores podem levar a desenvolver esta orientação sexual. A ciência tenta entender, porém, a Igreja muitas vezes se nega a ouvir a ciência e acolher suas contribuições.
O que estes temas têm a ver com o tema da Bíblia é que grande parte destas polêmicas é fundamentada biblicamente, com uma leitura fundamentalista da Bíblia, que não toma em consideração o contexto. No contexto anglicano, nós sempre entendemos que, na leitura da Bíblia nós temos que ter presente a razão e a tradição. Isto é importante porque a Igreja continuou refletindo depois que fechou o cânone bíblico (deixando de lado livros que hoje achamos interessantes e nos perguntamos por que não estão na Bíblia). Temos de raciocinar e entender que aquilo que a Bíblia nos ensina reflete uma civilização, uma cultura patriarcal uma cultura totalmente diferente da nossa. Se não lermos o que está por trás politicamente, sociologicamente, economicamente, culturalmente e eticamente falando, nós vamos ser desonestos na aplicação destes ensinamentos. Precisamos retirar o que é fundamental e colocar a nossa realidade frente a isto. Uma leitura linear e fundamentalista é um horror.
Por exemplo, há quem tome a afirmação de Paulo de que as mulheres fiquem caladas na comunidade para justificar que as mulheres não devem ser ordenadas. Ou então se diz que Jesus Cristo não teve mulheres entre seus apóstolos. Naquela época, isto era totalmente impossível, devido a uma cultura em que a mulher era completamente relegada, mas o próprio Cristo buscou as mulheres, como também as crianças que eram igualmente desvalorizadas. Enfim, por estas questões a hermenêutica tornou-se um tema muito importante, indicando que precisamos avançar numa interpretação da Bíblia, especialmente nos países mais pobres, na ótica dos oprimidos, do “últimos”. Isto é uma grande contribuição das Igrejas do Terceiro Mundo, especialmente da América Latina e também da África.
Outro tema muito importante foi a missão. Aliás, a Conferência teve como tema “Equipando os bispos para a missão”. E assumiu uma compreensão numa perspectiva integral, não apenas como evangelismo e busca de adeptos. Nós anglicanos temos uma visão de missão ampla em que distinguimos as “marcas da missão” como a luta contra estruturas injustas na sociedade, a preparação para o batismo, a catequese e nutrição da pessoa em Cristo. Então, a abertura para o social, a responsabilidade para com a integridade da criação faz parte da missão. Por isso, o tema da missão foi amplo e em alguns momentos se dividiu em vários enfoques. É por isso também que entram nas discussões da Conferência os alvos que a ONU colocou como desafio. E a Igreja reinterpretou tudo isto com o tema da justiça social, com as questões das guerras, da opressão... Todas estas questões estavam sendo debatidas nos diversos grupos, a partir de suas respectivas realidades, na busca de consensos sobre como lidar com estas realidades. E depois se produziu um documento para uso que a comunhão pode fazer uso de acordo com as necessidades e possibilidades de cada Província.
IHU On-Line – Qual era o processo feito para se chegar a consensos? Quantos bispos estavam reunidos e como era a dinâmica da Conferência?
Dom Orlando Santos de Oliveira – Éramos em torno de 700 bispos. A Conferência estava organizada em uns 17 ou 18 grupos, cada um com 40 bispos, que se chamavam de “indaba”. É uma palavra de origem zulu, uma tribo africana, que significa o seguinte: a aldeia se reúne para discutir toda a sua situação. A aldeia se reúne e todos têm que falar e dizer sua opinião e chegarem a alguma conclusão. Os quarenta grupos trabalhavam desta forma. A indaba é um processo e um método. A idéia é que todas as pessoas pudessem se engajar mutuamente e que todas as conclusões fossem buscadas coletivamente. O que se queria era garantir que todos os bispos pudessem falar expor suas idéias, contribuir, contestar e ouvir uns aos outros. E se insistia muito que sempre houvesse o respeito mútuo.
Havia um grupo articulador e coordenador, umas doze ou treze pessoas, representativo de várias partes do mundo, que juntamente com o primaz pensaram toda a dinâmica da Conferência. A Conferência começou com um retiro. Todos os bispos estiveram em retiro durante três dias, a portas fechadas. E quem pregou o retiro foi o arcebispo primaz, a partir das cartas paulinas, em que ele foi tentando discernir nosso papel, nossa relação com as comunidades, nossas dificuldades... Foi um momento de oração, de reflexão, de silêncio, formando um espírito de comunhão entre nós dentro daquela enorme catedral. Havia também um gramado onde podíamos caminhar e fazer almoços juntos, sentados na grama. Tudo isto foi importante no início, criando um clima de espiritualidade que perpassou a Conferência. E isto foi importante porque uma das coisas que se buscava era resgatar a comunhão.
A Conferência iniciava sempre em torno da mesa eucarística, celebrada cada manhã por uma das Províncias, e depois tínhamos um tempo de estudo bíblico com todo o grande grupo, mas fazendo reflexões e partilhas em pequenos grupos, sempre remetendo da bíblia para a nossa realidade e a nossas experiências e dificuldades. Com isto se buscava formar uma comunhão com o pequeno grupo. Depois disso, num segundo momento, se partia para os grupos de 40 bispos. Aí entravamos na discussão dos diversos temas da Conferência, dentro do processo e da metodologia da indaba. Cada dia se fazia um sumário do que estava sendo debatido, o qual era repassado na manhã seguinte para todos do grupo, para que pudessem revisar e, se fosse o caso, corrigir o que não estava de acordo com o que foi discutido no dia anterior. E havia em todos os grupos alguns encarregados de fazer uma escuta para depois construir o documento final.
Os temas discutidos na indaba foram: o Bispo e a identidade anglicana, ou seja, a nossa contribuição no mundo cristão com o modo anglicano de ser; o bispo e o evangelismo, discutindo a questão da evangelização no mundo de hoje; o bispo e a justiça social; o bispo na relação com as outras Igrejas, aprofundando a questão do ecumenismo; o bispo e a relação com as outras religiões e com as outras crenças – esta é uma questão muito quente em alguns lugares do mundo. Há lugares em que os cristãos estão sofrendo muito. Há uma tensão muito grande e em alguns lugares a Igreja sofrendo muito, como no Paquistão e no Sudão. Hoje, por exemplo, um muçulmano que no Paquistão se fizer cristão assina sua sentença de morte.
Lá se discutiu também sobre uma tendência que havia por parte de alguns de que se criassem uma espécie de pacto na Comunhão Anglicana que seria como que transformar a Comunhão numa espécie de federação. Mas se viu que não é o caso e se manteve a posição de que queremos manter a Comunhão, baseada nos focos de unidade e mantendo a autonomia das Províncias. O que se queria era ter uma instância que iria julgar as situações. Mas isto seria uma muito complicada, e nem há uma cultura eclesial que possibilite isso.
IHU On-Line – A questão da homossexualidade parece ter ganhado um bom espaço na programação da Conferência. Como este tema foi abordado?
Dom Orlando Santos de Oliveira – O tema da sexualidade entrou como um tema bem importante para o atual momento. Sobre a questão da homossexualidade tivemos um depoimento dramático de dois bispos norte-americanos, sendo uma bispa do Canadá, em que puderam expor como estão vivendo isto, porque a Igreja acolheu esta realidade. Este fato foi importante, porque se criou a possibilidade para tratar do tema sem aquela emoção em que não se quer escutar o outro. Ele puderam dizer suas razões, dizer como sua Igreja está vivendo esta realidade. Foi bom também porque se vende muita imagem sobre este assunto que não traduz a realidade. O que a Comunhão está dizendo é que está respeitando as pessoas nesta situação, mas ao mesmo tempo pediu cautela. E em alguns casos se pediu uma moratória, pedindo para que enquanto esta situação está ainda confusa não se ordene mais bispos nesta condição, para que a Comunhão possa ter tempo para discutir isto, entender esta realidade. Até mesmo por parte do Canadá houve esta sugestão de esperar um pouco. É interessante ter presente que são algumas dioceses que aceitam a ordenação de homossexuais e não toda a Comunhão. E também no Canadá e nos Estados Unidos há pessoas contrárias, que não aceitam isto de jeito nenhum.
Este era um tema que todo mundo esperava que a Conferência tratasse e se pensava que seria dominante na Conferência. Porém, não foi assim. Ele teve seu espaço, mas não transformou a Conferência num debate sobre sexualidade humana. O que se fez foi garantir que, mesmo que haja posições contrárias, as experiências destas pessoas sejam escutadas nas comunidades. E que as comunidades não expulsem de seu meio estas pessoas, mas que pastoralmente elas sejam acolhidas. Há, inclusive, uma carta sobre esta questão emitida pelos bispos do Brasil.
IHU On-Line – E como esta questão da homossexualidade, particularmente a questão da benção de uniões homossexuais e ordenações de sacerdotes e bispos gays, repercute na Igreja anglicana nos diferentes países?
Dom Orlando Santos de Oliveira – Isto é hoje, realmente, um tema muito quente e trouxe problemas o sério, inclusive no Brasil ou, mais especificamente, no Nordeste. O bispo anterior do Nordeste era radicalmente contra, “crucificou” dois ou três sacerdotes que eram homossexuais. Não teve qualquer gesto pastoral e acabou ele mesmo saindo da própria Igreja. E a nossa Igreja não tolerou isto. Nós dissemos: “Não precisa concordar, mas também não pode reagir dessa forma”. E ele fez o que fez reagindo ao que aconteceu nos Estados Unidos, não aqui. Ele comprou o debate.
O que isso já provocou nos Estados Unidos? Há o caso de dioceses contrárias à ordenação de lideranças homossexuais, que pediram inclusive asilo pastoral em outras partes da Comunhão Anglicana, que também são contrárias. Com isto, nós temos hoje uma coisa que é para nós fora do comum e é difícil de aceitar e se discutiu isso de que existem dioceses dentro dos Estados Unidos que estão vinculadas a uma diocese da África ou outra parte da Comunhão Anglicana, porque eles não aceitam a liderança pastoral de Igreja que aceita e tolera isto.
Isso se transforma também numa questão com implicações políticas, porque há grupos conservadores que exploram muito isso e inclusive apóiam economicamente todas as paróquias e dioceses que estão contestando isso e, da mesma forma, não aceitam, não querem discutir, e simplesmente se fecham à questão. São grupos que fazem uma leitura fundamentalista da Bíblia, sem uma atitude pastoral, e vêem esta realidade simplesmente como pecado, condenada por Deus. Esta situação de conflito também trouxe problemas jurídicos. Há dioceses que inclusive tem litígio sobre propriedade: há pessoas que saem da diocese ou da paróquia, mas acabam ficando com parte da propriedade e isto é realmente um problema sério. Essa questão administrativa e política é muito quente na Comunhão Anglicana.
IHU On-Line – Estas tensões repercutiram de que forma na Conferência de Lambeth?
Dom Orlando Santos de Oliveira – Quatro primazes formalmente disseram que não iam participaram da Conferência de Lambeth: foram os primazes da Nigéria, da Uganda, do Cone Sul – este acabou indo, e o outro era do Quênia. Mas havia na Conferência bispos de todos estes países. O primaz da Nigéria realmente boicotou e como lá têm mais de 100 bispos foi um a ausência muito sentida. Foram só uns quatro ou cinco. Realmente foi uma ausência muito sentida. Também o Quênia como um todo também esteve muito ausente, mas tinha um ou dois deles de lá. A Província do Cone Sul engloba Uruguai, Paraguai, Chile, Argentina, Bolívia e Peru e tem sua sede em Buenos Aires. Aqui na América Latina temos duas províncias, a do Brasil e a do Cone Sul. A Província do Brasil é uma só, devido à dimensão. Todos os bispos daqui do Brasil estavam na Conferência.
O tema da sexualidade se transformou num tema da divisão da Comunhão. Mas os que apostavam que a Conferência seria o fim da comunhão tiveram uma surpresa. Porque, ao contrário, os bispos saíram da Conferência saem fortalecidos na idéia e na permanência da Comunhão, com sua diversidade, e na compreensão de que essa é a riqueza da Comunhão Anglicana. É a unidade numa diversidade. Acontece que é muito mais difícil manter essa diversidade: normalmente se quer uniformizar tudo. É interessante que dentro da própria Igreja Católica, com todo o seu peso jurídico, também têm uma diversidade, com presença de grupos bem diferentes que vão desde o Apostolado da Oração até a CPT. E é difícil de manter essas pessoas juntas. Enfim, eu acho que foi muito bom a Comunhão. discutir estas questões todas e os bispos saíram fortalecidos.
IHU On-Line – E como está a relação da Comunhão Anglicana com as outras Igrejas e com o Conselho Mundial de Igrejas?
Dom Orlando Santos de Oliveira – De modo geral há uma relação normal. Existem hoje alguns estremecimentos com a Igreja Católica devido à ordenação feminina e, mais recentemente, à ordenação de Bispas, mas não tem havido ausência dos católicos na Conferência de Lambeth. O cardeal Kasper, por exemplo, foi lá e participou, apesar de ter afirmado, que, a partir da ordenação feminina, o diálogo ficou um pouco mais difícil. E nós respeitamos isso. Ele retoma o que já dizia, João Paulo II, mas não fecha as portas. Os ortodoxos também tiveram o primeiro momento de estremecimento muito grande, mas não se fecham, Deixam claro que vão continuar a caminhada, mas não na velocidade que se esperava. Porque, realmente, é uma questão muito complicada para os católicos e, mais ainda, para os ortodoxos. Para os católicos, acho que a ordenação feminina é mais séria que a do celibato, porque o celibato é uma questão histórica mais recente na história da Igreja Católica. E, a meu ver, é uma questão mais política e econômica, porque se abre para todos os padres se casarem isto vai ser um problema sério para a Igreja. Acho que não existem tantas questões teológicas implicadas, porque é uma decisão que não passa por uma Bula Papal, mas uma decisão administrativa da Igreja.
IHU On-Line – Na Igreja Católica, se costuma fundamentar teologicamente a não ordenação de mulheres. Como a Comunhão Anglicana fundamenta e justifica a ordenação feminina?
Dom Orlando Santos de Oliveira – Isto foi um debate longo, mas houve muita produção de material! E, basicamente a grande questão foi de que há ausência de ordenação da mulher. Há evidências documentais da existência de diáconas nos primeiros séculos, embora não se fale em presbíteras. E há também a liderança de mulheres, por exemplo, nas missões da Igreja Cristã no Novo Testamento. Os evangelhos mostram que havia muitas mulheres que acompanhavam Jesus não apenas para ajudar a servir a mesa. Elas tinham também algum papel na missão. Na questão sacerdotal, a maioria dos estudos teológicos fica muito presa a dados da questão social, do contexto cultural da época de Jesus. Isso foi mantido. Mas hoje mudou a situação da mulher na sociedade. Há uma ascensão da mulher no mercado de trabalho, na profissão, as mulheres ocupam postos-chave no mundo da política. Acho que a Igreja acompanhou. Na minha visão, se a mulher foi digna de ser portadora do próprio Deus no seu ventre, pra gerar o Filho de Deus, porque hoje ela não pode distribuir a Eucaristia?!
Isto já está mudando nas Igrejas. E, hoje, se tirar a mulher de todas as Igrejas Cristãs a Igreja morre. Quando eu era da Comissão do Conselho Mundial, eu visitei na Bahia Comunidades Eclesiais de Base, no interiorzão do daquele sertão, e o que encontrei eram leigas dirigindo comunidades, também algumas Irmãs. Religiosas, em lugares em que não aparecia um padre há muitos anos! A Igreja sobreviveu à custa de mulheres que mantinham dominicalmente a Igreja reunida. E há muitas paróquias que ainda hoje são lideradas por Irmãs, porque não tem sacerdotes suficientes. E as Irmãs se queixam muito. Uma Irmã me dizia em certa ocasião: “A gente aqui faz de tudo, faz um trabalho enorme... aí chega um padre e faz uma missa que não tem nada a ver com nossa realidade”. Eu sei que é preciso fazer processos, mas existe muita documentação de reflexão teológica nas Igrejas que mostram que chegou o momento que não há como contestar decisivamente a questão da ordenação feminina.
Entre as Igrejas históricas, os luteranos e os anglicanos foram os que mais avançaram na questão das mulheres. A Igreja Anglicanos talvez tem uma diferença um pouco maior em relação à Igreja Católica, à Igreja Ortodoxa. É interessante que isto afeta a relação, mas não há um corte no diálogo. E eu vejo que há muitos bispos e muitos padres que não vêm problema nenhum na ordenação feminina. Tenho visto cultos ecumênicos em que as nossas clérigas são convidadas. Inclusive em missas católicas que foram convidadas a participar, estiveram no altar paramentadas, sem problemas. Em certa ocasião, quando veio a bispa, hoje bispa primaz da Igreja Americana, numa visita à nossa província, eu convidei várias pessoas para participar de uma celebração em nossa Catedral e estava lá Dom Dadeus Grings, usando sua túnica e sua mitra e participou. E depois foi ao encontro dela para cumprimentá-la. E depois ele recebeu muitas pessoas que foram a ele dizer: “O Senhor me surpreendeu, Arcebispo!” “Gostei muito”. “Admiro-lhe muito mais”.
IHU On-line – Há uma boa relação de Dom Dadeus com essas diferenças?
Dom Orlando Santos de Oliveira – Ele tem uma postura de diálogo. E isso é a riqueza dele. Dos arcebispos dos últimos anos, na relação ecumênica, não teve ninguém como ele. Eu sei disso pela minha própria experiência ao lidar com ele, nas muitas reuniões do CONIC, para as quais a Cúria sempre está aberta. Ele teve um gesto muito grande quando convidou as Igrejas para o Fórum da Igreja Católica no Rio Grande do Sul. Dentro de um Fórum que estava tentando renovar a Igreja, para que retomasse mais fortemente sua missão, ele colocou o ecumenismo como algo para o debate, possibilitou uma celebração ecumênica, colocou as outras Igrejas á no foco da atenção para todo aquele povo e também para os sacerdotes.
Certamente alguns não gostaram disso, mas ele mesmo, nesse ponto, é um homem bem positivo. Foi impressionante aquele gesto que ele teve na missa em homenagem a João Paulo II, lá na Rótula do Papa, quando ele convidou o Grupo de Diálogo Interreligioso para participar. Eles lá, junto ao altar, em cima, e ele deu a palavra a cada um. Aquilo não é qualquer um que faz. A reação do povo foi incrível. A gente sentiu que o admiraram mais, admiraram aquele momento e vieram dizer isto para nós que estivemos lá, em vez de haver alguma reação não. Quer dizer: o que aconteceu ali? A figura de João Paulo II para todos os que estavam ali era muito mais importante que qualquer outra questão de diferenças religiosas. Todos os que estavam ali admiravam a ele, que foi um homem que se comprometeu com o diálogo inter-religioso, foi ao encontro dos judeus, foi aos muçulmanos, etc. Então, D. Dadeus foi honesto com a figura de João Paulo II e com a visão de João Paulo II. Ele buscou até aí mostrar quem foi João Paulo II através das presenças das Igrejas e de outras religiões porque ele foi um homem que buscou o diálogo as religiões. Eu acho que isto foi muito significativo.
IHU On-Line – Agora que passou a Conferência, como continuam na Comunhão Anglicana os diálogos lá realizados e as conclusões reunidas no documento final?
Dom Orlando Santos de Oliveira – Cada Província tem sua forma de encaminhar os resultados da Conferência. A Igreja Anglicana tem uns escritórios em Londres e lá existem vários departamentos: de missão, diálogo ecumênico etc. O material recolhido durante a Conferência vai ser elaborado e repassado para essas comissões, porque são elas que mantém o “rodar da carruagem”. Lá elaboram as sínteses e remetem para as várias províncias. Já saímos de Lambeth com uma síntese do documento dos Indabas. Já temos em mãos aquele material como instrumento de estudo. Isto será novamente estudado, com lideranças leigas e clericais. Isto é apresentado nas paróquias, as pessoas são convidadas para participar, reagir etc. Agora começa o processo de consulta dentro das províncias. E o diálogo continua com aqueles quatro instrumentos de consulta de que falamos no início. Esse é o processo. É difícil e exigente, mas, em todo caso, é assim que funciona. E isto cria um processo participativo bem interessante.
IHU On-Line – Como se dá a escolha de bispos na Comunhão Anglicana?
Dom Orlando Santos de Oliveira – É diferente em cada província. No Brasil, a diocese elege o seu bispo. Nesse aspecto, a Igreja Anglicana é bem mais democrática que a Igreja Católica. Por exemplo, cada diocese tem uma reunião anual que nós chamamos de Concílio Diocesano. No Concílio Diocesano, são delegados todo o clero, ativo e passivo, e cada paróquia envia três delegados leigos. Este é o corpo que decide a vida diocesana. Quando um bispo se aposenta (os cânones determinam que aos 70 anos o Bispo deve se aposentar) a Igreja Diocesana reflete sobre talvez o perfil de um bispo que é necessário. E se realiza um Concílio extraordinário para eleição do bispo, no qual votam, separadamente, os clérigos e os leigos. Na eleição do novo bispo é preciso que haja maioria de votos nas duas ordens. E aí, então, o escolhido é consagrado. Já na Inglaterra, a escolho dos bispos se dá com na Igreja Católica, mediante indicação e uma comissão faz todo o processo. Nos Estados Unidos, a escolha é feita também por eleição, mesmo que haja diferentes modalidades ou perfis para o processo de eleição. A tradição é a eleição. Algumas igrejas da África também há eleição e, às vezes, indicação. No caso da África, a maioria fica até morrer, é vitalício.
O modo de escolho de primazes,varia também de Igreja para Igreja. A nossa tradição é mais democrática. Nós temos um órgão maior que rege a Província do Brasil que é um sínodo, constituído de delegados: três clérigos e três leigos representam a Diocese e todas as dioceses tem que estar representadas por três clérigos e três leigos e todos os bispos diocesanos. Esse é o órgão máximo que legisla. O bispo primaz é eleito pelo sínodo. Então, a cada três anos eles podem revisar. Outra coisa, o bispo primaz, ele não o é em tempo integral. Ele tem que ser um bispo diocesano e continuar à frente de sua diocese. Isto é importante para não se desligar da vida pastoral e se tornar um burocrata. Por isso nós temos uma estrutura com secretário executivo e todo um sérvio de apoio.
IHU On-Line – Para finalizar, o que significou para o senhor, pessoalmente, participar da conferência de Lambeth?
Dom Orlando Santos de Oliveira – Para mim, foi muito importante. Eu voltei de lá, em primeiro lugar, muito contente, porque eu vi reafirmada a comunhão. Eu acho que o que presidiu a Conferência foi o espírito de comunhão, de diálogo, de encontro, de respeito, de escuta. Então, isso tudo foi a riqueza maior que eu colho: ter um grupo de oito bispos partilhado da leitura da Palavra e fazer a leitura da Palavra a partir da nossas experiência, podendo partilhar e também ouvir que certas questões são as mesmas, não importa o país; outras são bem distintas. Mas a gente se encontrar e, muitas vezes, também ouvir do outro uma palavra de esperança, uma palavra de apoio. Acho que a riqueza que eu trago é mais uma alegria por ter voltado de um encontro que se indicava que seria o fim da comunhão, mas ao contrário, nós saímos de lá revigorados, reforçados e pactuados na comunhão. Isso foi importante tanto no pequeno grupo de estudo bíblico quanto no indaba. O último momento foi bem emocionante: nós nos damos as mãos, rezamos juntos e reafirmamos um pacto de manutenção de nossa comunhão, nós, os quarenta que estávamos ali, no indaba, e junto com os outros também. E também assumimos que iríamos partilhar nossas dores, nossas alegrias, também por email, para manter essa comunhão. Comunhão é isso: não são documentos, mas uma vivência. Então, trago essa animação muito grande desse momento que a gente teve lá.
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Conferência de Lambeth. Entrevista especial com Dom Orlando Santos de Oliveira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU