05 Abril 2008
O teólogo católico James Alison é padre e escritor inglês. Estudou, viveu e trabalhou no México, Brasil, Bolívia, Chile e Estados Unidos, bem como sua terra natal, a Inglaterra. Obteve o doutorado em Teologia pelas Faculdades Jesuítas de Belo Horizonte. É autor de, entre outros, Knowing Jesus (London: SPCK 1992), Raising Abel (New York: Crossroad, 1996), The joy of being wrong (New York: Crossroad 1998) e Faith beyond resentment: fragments catholic and gay (London: Darton Longman & Todd 2001).
Seu site pessoal é www.jamesalison.co.uk.
Teólogo sistemático, Alison busca uma compreensão não violenta do desejo associada a René Girard, procurando elaborar as intuições de uma nova relação entre criação e salvação a partir das suas experiências no campo acadêmico e pastoral. James Alison trabalha atualmente como um pesquisador itinerante. Acompanha uma imensa variedade de públicos, com leituras acadêmicas, seminários de pós-graduação, cursos de catequese para adultos, retiros para padres, e encontros católicos e ecumênicos de gays e lésbicas. Quando não está na estrada, Alison chama Londres de sua “casa”.
Confira, a seguir, a entrevista que ele concedeu por telefone para a IHU On-Line, quando falou sobre sua concepção a cerca da homossexualidade, principalmente relacionada com a Igreja.
IHU On-Line - Como entender a relação homossexual a partir da compreensão não violenta do desejo, com base no pensamento de René Girard?
James Alison – O pensamento de Girard com relação à questão do desejo se explica pelo fato de que o desejo de todos nós é mimético, ou seja, aprendemos a desejar segundo o desejo do outro/da outra. A partir do nosso nascimento, nos encontramos no desejo de outra pessoa, ou seja, dos nossos pais, guardiões, professores, e todos aqueles que nos ensinam a ficarmos “viáveis” como seres humanos. Isso significa que o desejo, em si, é algo bom. Se não fosse por ele, não chegaríamos à categoria de seres humanos. Porém, como ocorre com todos, começamos a receber esse desejo de forma distorcido.
Recebemos tanto a capacidade de desejar sem obstáculos quanto o desejo cheio de rivalidades. Por exemplo, se dermos várias bolas vermelhas para duas crianças brincarem, dentro de pouco tempo, apenas uma dessas bolas será desejada, embora as outras sejam idênticas. Elas terão menos prestígio, menos valor, do que aquela bola que ficou sendo cobiçada pelo grupo de crianças. Em outras palavras, aprendemos a desejar segundo o desejo do outro, e isso nos leva a uma rivalidade. Neste momento, vamos trazer isso para a questão gay. Todos aprendemos a desejar o outro sexual a partir da nossa imitação, daquilo que nos é parecido. Ou seja, a partir da imitação das pessoas do mesmo sexo, aprendemos a desejar as pessoas do outro sexo.
Segundo a maneira tradicional de pensar, algumas pessoas considerariam o desejo homossexual como uma distorção disso, em que pessoas do mesmo sexo não apenas aprendem a desejar segundo o desejo do próprio sexo, o qual é totalmente normal, mas de, alguma forma, aquele desejo é fixado no rival. Ou seja, ao invés de desejar o objeto apontado como rival, eu começo a desejar o próprio rival. Essa é uma explicação que as pessoas têm usado para afirmar que o desejo homossexual é intrinsecamente desordenado. A contribuição de Girard em toda essa área é para mostrar que, na verdade, o desejo é mimético, independentemente do objeto.
Tanto que uma pessoa heterossexual pode desejar uma pessoa do outro sexo de maneira rivalística como também pode aprender a desejar de maneira não rivalística, aprendendo a “segurar” essa pessoa não como objeto a ser “preso”, mas para fazer crescer, frutificar. O mesmo é possível para pessoas gays. É possível para uma pessoa gay amar outra do mesmo sexo, não só como “presa” para olhos cobiçosos, mas de maneira pacífica, de forma a querer o bem dela, a fim de que ela frutifique. Essa é a importância do pensamento de Girard: distinguir entre o desejo possessivo/rivalístico, por um lado, e o desejo pacífico/criador, por outro.
IHU On-Line - A partir das suas experiências no campo acadêmico e pastoral, como podemos pensar na elaboração de uma nova relação entre criação e salvação? O que fazer dentro da teologia moral para que o ser humano homossexual se sinta tão amado por Deus quanto aquele de orientação heterossexual?
James Alison – No atual estado da teologia católica, esta é a pergunta-chave. O ensino tradicional da Igreja católica, com respeito à relação entre natureza e graça, indica que a natureza humana é boa e que Deus, ao salvar-nos, não estava abolindo a natureza humana, mas abrindo a possibilidade de que ela chegasse à sua perfeição. Lembramos, aqui, a frase de São Tomás de Aquino “A graça aperfeiçoa a natureza”. Isso significa que é impossível considerar que uma pessoa humana tenha, em uma parte de si, um desejo que seja intrinsecamente perverso. O desejo de todos nós é, em si, em princípio, uma coisa boa, mesmo que todos vivamos numa distorção e desordem muito grande. Há uma grande diferença entre dizer a uma pessoa “Olha, eu te amo, você vai crescer a partir de quem você é, para chegar a ser ainda maior do que você possa imaginar”; ou dizer a essa mesma pessoa “Você é radicalmente depravado. Do jeito que você é não vai a lugar nenhum. Eu vou precisar fingir que você é outra coisa, para te aperfeiçoar a partir de algo que você não é. Dessa forma, vou te salvar. Mas o custo é que você precisa abolir tudo o que é originalmente seu”. Há muita diferença entre essas duas posições.
Curiosamente, a posição da Igreja Católica é a primeira.
O olhar de Deus diz isso: “Eu te quero e, a partir de quem você é, você é capaz de chegar a ser algo que ainda não é, em harmonia orgânica com aquilo que faz parte de você de forma ainda bagunçada, por enquanto”. Porém, o atual ensino da Igreja, nessa matéria, tende a sugerir que o desejo homossexual é uma desordem objetiva. Na medida em que esse ensino insiste na depravação radical do desejo pelo mesmo sexo, ele está caindo numa heresia, a partir do ensino tradicional do ponto de vista da graça e da natureza.
É importante que recuperemos o ensino mais tradicional nessa matéria. Por exemplo, será que o desejo homossexual pode ser considerado como um desvio parecido com o fato de ter canhotos e não sermos todos os humanos destros? Aprendemos que há uma considerável proporção da humanidade que é canhota, e isso não é nenhum empecilho ao desenvolvimento dessas pessoas. Será que a homossexualidade é um tipo de “anomalia” como o fato de ser canhoto, ou uma patologia, como o alcoolismo ou a cleptomania, que consideramos como desordens objetivas e que fazem as pessoas se autodestruírem? Assim como é verdade que a graça aperfeiçoa a natureza, é verdade que ser gay e lésbica é uma anomalia, e não uma patologia. Então, o crescimento moral e humano das pessoas passa pelo reconhecimento disso de forma íntegra, honesta e sem medo.
IHU On-Line - Como o senhor vê a postura do Vaticano em não admitir homens gays no exercício do sacerdócio? O que orientação sexual tem a ver com a vocação? Um padre gay pode não ser um “bom exemplo” para a moral a ser pregada pela Igreja?
James Alison – Sobre esse tema, vocês podem ler no meu site um artigo chamado “Uma carta a um jovem católico gay” (1). A melhor e mais suave leitura possível do documento da Igreja sobre o assunto é a de que o próprio Vaticano sabe que, por enquanto, não está preparado para falar a verdade em relação à questão gay. Ele não ousa reconhecer a verdade e vai demorar um certo tempo até que este assunto da vivência não patológica do ser gay seja tão evidente que até o Vaticano possa aceitá-lo. Sendo assim, podemos ler o documento como se fosse uma maneira de dizer: “Olha só, por favor, enquanto nós não conseguirmos falar a verdade sobre esse assunto, é imoral tentar convencer pessoas gays honestas a entrar no sacerdócio, pois sendo pessoas honestas não vão encontrar uma moradia sadia para a sua vivência, pois serão obrigadas a viver num mundo onde há muita caça de bruxas, muita hipocrisia, muitas pessoas que são doentes patologicamente, ou seja, gays que só conseguem perseguir outros gays”. Por outro lado, pode-se fazer uma interpretação fantasiosa do documento. Porque, se eles pensam que esse decreto terá alguma função verdadeira, estão enganados.
Eu não acredito que, de repente, todos os seminaristas são heterossexuais. Seria muito extraordinário se assim fosse. Conheço vários seminaristas, em diversas partes do mundo, que são gays, e simplesmente foram obrigados a viver com mais duplicidade do que antes diante das situações. Muitos bispos que, em tese, dizem ao público que defendem o ensino da Igreja, na verdade, no âmbito privado, dizem sim ao ingresso de um seminarista gay. Contanto que o cara seja uma pessoa mais ou menos estável, não se quer saber se ele é heterossexual ou não. Muitos bispos e cardeais no mundo driblaram o referido decreto.
IHU On-Line - Podemos pensar na possibilidade de pessoas do mesmo sexo se unirem com a bênção de Deus e da Igreja? Elas poderiam receber o sacramento do matrimônio?
James Alison – É evidente que podemos pensar na possibilidade de pessoas do mesmo sexo se unirem com a benção de Deus e da Igreja. Isso já acontece em alguns lugares. No entanto, é importante fazer uma distinção aqui. Todos os movimentos civis que tem acontecido, seja na Espanha, na Holanda, na Bélgica, nos Estados Unidos, no Estado de Massachussets, são para exigir uniões civis. Não confundamos as coisas. A união civil e o sacramento do matrimônio não são a mesma coisa. Existem muitas pessoas, nesses países, que, além de terem feito o matrimônio civil, também têm procurado fazer algum tipo de celebração religiosa para festejar a ocasião. Eu tenho participado dessas festas. Não há nada, absolutamente, que impeça duas pessoas em se unirem civilmente, numa parceria, reconhecida pelo estado, realizando, depois disso, uma liturgia de celebração com a presença de amigos, pessoas da família, padres etc. E isso acontece muito, porém de forma mais discreta.
No entanto, isso é diferente da questão do matrimônio como sacramento. Este, no pensamento da Igreja Católica, é visto como a celebração feita pelos próprios noivos, que são duas pessoas batizadas, de sexo oposto, com três elementos básicos: fé, a possibilidade de ter filhos e a unidade de autodoação até que a morte os separe. Veremos ainda de que forma a Igreja vai celebrar publicamente a união entre pessoas do mesmo sexo. Evidentemente, seriam duas pessoas batizadas, que estão fazendo sua autodoação até que a morte os separe, mas sem a abertura à possibilidade de poder procriar, evidentemente. É muito interessante ver que os casais do mesmo sexo que organizam liturgias para receber a bênção de Deus para suas uniões estão inventando diferentes formas de liturgia, porque ainda estamos em fase de descobrimento de que tipo de testemunha de vida divina essas uniões vão dar para a Igreja.
IHU On-Line - Quais dilemas e dificuldades um homossexual católico (homem ou mulher) costuma enfrentar? Que tipo de conflito interno e de fé aparece aí? Como um jovem católico gay se sente em sua Igreja? Como ele é recebido?
James Alison – Isso é curioso e varia muito de país para país, de cultura para cultura. Pessoas que vivem em países católicos de tradição abrangente e liberal têm pouca dificuldade em relação a isso. Há pessoas assim, e o importante é que floresçam como são. Há outras que crescem em ambientes ideológicos muito fechados, nos quais a maior tragédia que poderia acontecer para os pais é ter um filho gay. Então, ouvimos aquelas frases famosas, como “prefiro ter um filho drogado do que gay”. Vai depender totalmente em qual desses mundos a pessoa cresce. Não há nem uma tragédia universal, nem uma bênção universal. O que eu tenho notado é que nos países de tradição católica, no universo mais jovem, a mudança com relação à aceitação e a auto-aceitação da homossexualidade é muito grande. É enorme a aceitação pacífica desta realidade entre as pessoas de 40 anos para baixo. Mas quando a Igreja não aceita é triste, porque há pessoas que seriam ótimas atuando nela e se sentem rejeitadas. Também há aquela que são muito sensíveis ao ensino da Igreja e o assunto é recebido de maneira muito trágica, porque sentem no fundo do coração o ódio transmitido pelas palavras oficiais, como se fossem palavras de Deus. E isso é terrível. É escandalizar os pequenos.
IHU On-Line - Como a mensagem de amor pregada por Jesus Cristo pode ser associada na defesa pela luta da união entre pessoas do mesmo sexo?
James Alison – Jesus não diz nada nem a favor nem contra essa matéria. Não sou muito a favor de instrumentalizar Jesus. Acho importante usá-lo nem como arma de defesa de valores conservadores, nem como arma de defesa de valores liberais. Sendo Jesus o próprio Deus, tendo aparecido no meio de nós para nos perdoar e abrindo a possibilidade de nos descobrirmos como filhos de Deus, precisamos ter muito respeito em relação a Ele. Porém, não tenho dúvida de que pessoas vão tratar de utilizar a fé, a religião, a Igreja, como arma para combater a possibilidade de pessoas gays se casarem. A fé católica é uma religião da presença de Jesus. Onde está Jesus: nas pessoas que atiram pedras ou nas pessoas que lutam para construir um mundo melhor?
Nota:
1.- A carta está publicada na íntegra na última edição da revista Concilium. A versão portuguesa desta revista é publicada pela Editora Vozes.
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O amor homossexual. Um olhar teológico-pastoral. Entrevista especial com James Alison - Instituto Humanitas Unisinos - IHU