29 Fevereiro 2008
“A moda e a roupa fazem parte das relações sociais. Para mim, não ficar atento a isso é como ignorar as relações sociais que temos diante de nós e que são objeto, por excelência, das Ciências Sociais.” Esta afirmação é do pesquisador Alexandre Bergamo, entrevistado por telefone pela IHU On-Line. Ele falou sobre sua pesquisa relacionada à moda e ao status. Como sociólogo, Bergamo explicou a importância de entendermos a moda hoje, de como é para um homem estudar um tema dito feminino e de como a roupa é um mediador de relações. “Quando uma pessoa escolhe uma roupa é uma maneira de ela criar uma série de ligações sociais, de se ligar a diversos contextos”, afirmou.
Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), Alexandre Bergamo acaba de lançar o livro A experiência do status: roupa e moda na trama social (São Paulo: Edunesp, 2008). Atualmente, é professor da Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho (UNESP).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O que a moda significa hoje?
Alexandre Bergamo – De uns 30 anos para cá, a moda virou um elemento extremamente forte de distinção social, no sentido de hierarquizar com uma força incrível. Isso porque as pessoas olham umas para as outras e a roupa, de certa forma, cria identificações com posições sociais, econômicas, políticas. Então, ela permite essa distinção bastante rápida e se torna um instrumento de hierarquização social. Por outro lado, é por meio dela que as pessoas tentam se inserir na sociedade, às vezes tentando driblar essa hierarquização imposta. Então, nós temos que pensar a moda dessas duas formas, tanto como algo que pesa sobre a cabeça das pessoas quanto como um mecanismo possível de inserção e articulação social que elas tentam buscar.
IHU On-Line – Porque a moda é um importante meio de inserção e mediação de indivíduos com certos grupos?
Alexandre Bergamo – É porque permite essa identificação. Mas não é só identificação. Vamos pensar o seguinte: quando uma pessoa escolhe uma roupa, é uma maneira que encontra de criar uma série de ligações sociais, de se ligar a diversos contextos. Pode ser um grupo clubber (1) ou punk (2), mas não necessariamente. Às vezes, por meio da escolha de uma peça de roupa, você se liga a um certo passado, a uma certa história da qual você pensa fazer parte. A roupa e a linguagem permitem essas articulações com os demais grupos sociais, mas também articulações temporais, pois permite que eu me ligue não simplesmente a um presente, mas também a um passado ou, talvez, a um futuro imaginado.
IHU On-Line – Para a sociedade atual, que está pensando num pós-modernismo, na autonomia do ser humano, qual é a importância de possuir um status, de pertencer a um grupo que se intitula superior socialmente?
Alexandre Bergamo – Para nós, que somos da área da Sociologia, essa idéia de uma certa liberdade de pensamento, de autonomia de pensamento, é bastante relativa e, portanto, a individualidade é também bastante relativa.
IHU On-Line – Por quê?
Alexandre Bergamo – Ninguém pode ser tão individual assim a ponto de sua própria individualidade não poder ser comunicada. Significa que, para eu comunicar qualquer coisa que seja minha, eu preciso utilizar a linguagem que todos utilizam, os símbolos que todos utilizam. Caso contrário, eu não posso comunicar a minha própria individualidade. Ou seja, eu preciso encaixar a minha individualidade dentro de uma comunicação possível, seja em termos de linguagem, seja em termos visuais. Então, eu não comunico apenas a minha individualidade, mas também aquilo que a própria sociedade aceita que seja comunicado e para que seja inteligível para ela. Então, a autonomia e a liberdade são bastante relativas. Quando se fala demais desse discurso de individualidade, se esquece que as pessoas precisam comunicar, se fazer entender e que essa individualidade é bastante relativa. Não existem seres humanos independentes, ou seja, eles estão em constante relação uns com os outros.
"Ninguém pode ser tão individual a ponto de sua própria individualidade não poder ser comunicada."
IHU On-Line – Esse caminho do ser humano autônomo, pós-moderno, explica, por exemplo, a moda da customização?
Alexandre Bergamo – Não, eu penso que o que explica isso é a mudança geral em termos sociais que envolvem trabalho, educação, moradia. O que significa que mudaram as formas de inserção social das pessoas. Há 30 anos, alguém poderia falar que era operário e podia entender isso como participação maior, em algo coletivo. A pessoa se auto-definia como operária. O mercado de trabalho se modificou tanto que hoje é difícil as pessoas se definirem desse modo. Elas buscam outras formas de definição para si mesmas. Isso tem a ver com mudanças estruturais na sociedade, cujas possibilidades de inserção e de afirmação social se modificaram, dando a sensação de que esses referenciais coletivos desapareceram mesmo. Mas não significa que eles desapareceram para no lugar surgir alguém completamente individual. Acontece que a mudança estrutural na sociedade é bastante profunda e no nosso dia-a-dia não somos capazes de percebê-la.
IHU On-Line – O senhor afirma que a roupa de grife dá a impressão de que algum bom retorno virá para quem a usa. Isso explica a satisfação, a sensação de prazer que algumas pessoas têm de adentrar um shopping center, por exemplo?
Alexandre Bergamo – Se você pensar que a roupa se torna, diante de todas essas mudanças estruturais, uma possibilidade de inserção nessa nova configuração social, eu acredito que o prazer tem mais relação com isso e não com o consumo ou com a vaidade. As estratégias de afirmação social se modificaram, e nós temos que pensar que a roupa é uma possibilidade de afirmação social. Eu creio que, se entendermos o prazer apenas como algo psicológico, poderemos perder a dimensão de que existe uma mudança social mais profunda acontecendo, que justifique que a pessoa a vivencie como uma forma de prazer que talvez não fosse vivenciado em outros momentos. Ou seja, ela vivenciaria isso de outra forma.
"As estratégias de afirmação social se modificaram, e nós temos que pensar que a roupa é uma possibilidade de afirmação social."
IHU On-Line – Como um homem que estuda a moda, qual foi a principal dificuldade que vocês encontrou nesse meio?
Alexandre Bergamo – Como pesquisador, eu precisava achar um lugar ali para mim. Eu me relacionava muito bem com os fotógrafos. Conseguia me inserir bem entre eles e trocava “figurinhas”, porque eu também estava sempre fotografando. Então, sempre tive um trânsito muito legal nessa área. Além disso, o pessoal que fazia moda sempre me recebeu bem. Minha primeira inserção foi por meio da Faculdade de Moda Santa Marcelina. Nela, eu conheci pessoas fantásticas, que estavam preocupadas não simplesmente em refletir sobre moda. Elas estavam ligadas ao ensino e, por isso, me olhavam de forma bastante respeitosa, à medida que eu vinha como pesquisador da USP. Isso me permitiu ter um diálogo muito bom com várias pessoas. Quando eu procurava certas revistas, aquelas em que eu conseguia entrada, eu sempre tive também uma aceitação muito respeitosa. Penso que sempre foi bacana e, em parte, o respeito vinha exatamente por eu ser homem e porque vinha de uma universidade. Se você olhar para mim, verá que eu não sou o sujeito mais preocupado do mundo com o vestuário e isso tudo era traduzido com uma forma de seriedade, de profissionalismo. A minha preocupação ali era tentar entender em termos sociológicos, mas não significa que eu não sou capaz de perceber o quanto tinha de pessoas criativas e bacanas. Enfim, creio que não tive problemas.
IHU On-Line – Neste livro sobre a função social da moda e das roupas o senhor fala da experiência de status que não apenas a roupa dá, mas os grandes eventos de moda promovem...
Alexandre Bergamo – Primeiramente, temos que lembrar o que é status. Muita gente confunde status com prestígio, como se fossem sinônimos, o que não é verdade. Status é uma posição na hierarquia social, ou seja, todo mundo o possui. Só que existem alguns status com prestígio e outros sem. A maneira como a pessoa lida com a posição social que ela ocupa e a maneira como ela tenta se inserir – e então a moda e a roupa entram como parte dessa inserção –, nessa hierarquia social, me levou a pensar sobre a roupa. Pensá-la não simplesmente como uma mediação simbólica, mas como uma experiência que as pessoas vivem e revivem todos os dias, na tentativa de inserção social e na tentativa de lidar com uma série de conflitos sociais, dependendo da posição que elas ocupam. Tudo isso é vivenciado, muitas vezes, como uma tensão. Assim, eu sempre pensei o status não como algo dado, por exemplo, alguém é rico e alguém é pobre e ponto final, mas como algo que as pessoas tentam construir e reconstruir todos os dias. De certa forma, a roupa permite essa construção.
IHU On-Line – Sabendo que a apresentação das próximas tendências nesses eventos é sempre repleta de subjetividade provida pela criação das peças, para que as grifes sejam sempre diferentes, apresentem coisas diferentes, como o senhor explica o fato de algumas tendências serem homogeneizadas pela sociedade?
Alexandre Bergamo – É homogeneizado mais ou menos, aliás, não é mais. Foi bom você ter tocado nisso porque isso tem a ver com essas mudanças estruturais. Por exemplo, do final dos anos 1960 até o final dos anos 1970 você tinha uma produção de moda que envolvia um certo saber em relação a como se fazer moda: o que devia ser feito em termos de publicidade, em termos de roupa, as pesquisas que deveria ser feitas. A partir daí, eles publicavam em cadernos de tendência como se fosse um direcionamento possível para as empresas aparelharem sua produção. Então, você tinha um saber ali envolvido que era de monopólio de algumas empresas. No caso do Brasil, era a Rhodia (3), que ocupava a posição central e tinha maior parte do saber em relação às tendências. Depois, aconteceu uma série de transformações e, até por desinteresse da Rhodia e outras empresas, deixou-se de investir nesse segmento. Então, aqueles profissionais que faziam as tendências para grandes empresas foram mobilizados, alguns anos depois, na formação dos cursos de moda. Isso significa que essas pessoas que detinham o saber, por sua vez de propriedade das grandes indústrias, começaram a passar o seu saber em cursos de moda. Então, existe uma série de novos estudantes que chegam. Vários eram muito criativos, mas não tinham compromisso com as grandes empresas necessariamente. Passou-se a se constituir uma rede de relações que permitia a consagração desses estilistas. Vários deles eram amigos de artistas, jornalistas e, assim, faziam com que circulasse a criação de moda deles. No entanto, nós não temos mais o monopólio de uma ou outra indústria. Isso tudo aconteceu por causa de uma mudança estrutural profunda e fez com que esses estudantes concorressem com as antigas grandes indústrias. Como esse saber foi disseminado pelos cursos de moda, existe um saber que depende de uma rede de relações, abrindo a questão da homogeneidade. A minha impressão, como pesquisador, é que essa mudança estrutural aconteceu e não foi sentida, percebida pelas pessoas, e por isso elas continuam com o mesmo discurso de 20 ou 30 anos atrás.
IHU On-Line – Para a área de sociologia e antropologia, qual é a importância, hoje, de estudar o campo da moda?
Alexandre Bergamo – Eu penso que precisamos ficar cada vez mais ficar atentos a essas novas possibilidades de articulação e inserção social, além de procurar entender as novas formas de comunicação social também. A moda e a roupa fazem parte dessas relações sociais. Para mim, não ficar atento a isso é como ignorar as relações sociais que temos diante de nós e que são o objeto, por excelência, das Ciências Sociais.
Notas:
(1) Os clubber são pessoas que seguem a ideologia do PLUR, que em inglês significa: Peace(Paz) Love(amor) Unity(união) Respect(respeito). Os clubbers se vestem de uma maneira extravagante; em geral, é possível reconhecê-los pelas blusas coloridas, com personagens de desenhos japoneses, saias e calças coloridas, leggins, tênis coloridos. O armário é geralmente 50% verniz, maquiagens que brilham no escuro, estrelinhas, glitter, glimmer, sombras coloridas etc.
(2) Denomina-se cultura punk os estilos dentro da produção cultural que possuem certas características comuns àquelas ditas punk, como, por exemplo, o princípio de autonomia do faça-você-mesmo, o interesse pela aparência agressiva, a simplicidade, o sarcasmo niilista e a subversão da cultura. Entre os elementos culturais punk, estão o estilo musical, a moda, o design, as artes plásticas, o cinema, a poesia, e também o comportamento (podendo incluir ou não princípios éticos e políticos definidos), expressões linguísticas, símbolos e outros códigos de comunicação. A partir do fim da década de 1970, o conceito de cultura punk adquiriu novo sentido com a expressão Movimento Punk, que passou a ser usada para definir sua transformação em tribo urbana, substituindo uma concepção abrangente e pouco definida da atitude individual e fundamentalmente cultural pelo conceito de movimento social propriamente dito: a aceitação pelo indivíduo de uma ideologia, comportamento e postura supostos comum a todos membros do movimento punk ou da gangue ou ramificação/submovimento que ele pertence. O movimento punk é uma forma mais ou menos organizada e unificada, com o intuito de alcançar objetivos – seja a revolução política, almejada de forma diferente pelos vários subgrupos do movimento, seja a preservação e resistência da tradição punk, como forma cultural deliberadamente marginal e alternativa à cultura tradicional vigente na sociedade ou como manifestação de segregação e auto-afirmação por gangues de rua. A cultura punk, segundo esta definição, pode então ser entendida como costumes, tradições e ideologias de uma organização ou grupo social.
(3) Chegou ao Brasil em 1919 e dez anos depois deu início à sua atividade na área têxtil.
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A moda e as relações humanas. Entrevista especial com Alexandre Bergamo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU