15 Novembro 2007
San Salvador, quinta-feira, 16 de novembro de 1989. São 2h28min. Estamos nos arredores do Complexo Militar. A rua iluminada está deserta. A noite está calma. São 2h30min. Um estrondo violento denuncia que as portas foram arrombadas. Cada quarto da residência dos jesuitas da Universidade Centro-Americana - UCA – em San Salvador, El Salvador, é invadido por homens armados de metralhadoras e fuzis. Seis jesuítas e a esposa e a filha do jardineiro são assassinados (1). Trata-se de Ignacio Ellacuría e seus companheiros.
Celebrando a memória desse martírio, a IHU On-Line entrevistou, por email, Héctor Samour, coordenador do Doutorado em Filosofia Ibero-Americana na Universidade Centro-Americana - UCA - San Salvador, El Salvador.
Héctor Samour, é autor, entre outros, de História, praxis e libertação no pensamento de Ignacio Ellacuría, que foi apresentado no Primeiro Congresso Internacional Xavier Zubiri, em 1993; Globabalización, cultura y identidad, publicado pela revista ECA: Estudios Centroamericanos, 2006; e El significado de da filosofía de la liberación hoy, publicado na revista Diálogo filosófico, no. 65, 2006. No livro Interpelação ética, organizado por Antonio Sidekum, e publicado pela editora Nova Harmonia, em 2003, Héctor Samour publicou o artigo “Filosofia e Libertação”.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - O que significa a civilização da pobreza no pensamento de Ignacio Ellacuría e qual é a sua contribuição para os dias de hoje?
Héctor Samour - Para Ellacuría, é um fato evidente que a maior parte das nações e a maior parte dos seres humanos vivem não somente em condições muito desiguais em relação às minorias ricas, mas em condições absolutamente desumanas. E é este fato que, segundo Ellacuría, denuncia o mal comum que promove a atual civilização mundial por meio de suas estruturas e processos. O resultado é a ruptura da solidariedade do gênero humano que leva à absolutização do indivíduo, da classe social, da nação ou do bloco econômico acima de todo o resto, até mesmo acima da própria humanidade.
Esta ruptura da solidariedade humana, que supõe, no fundo, uma ruptura do próprio fundamento dos direitos humanos (a unidade histórica do gênero humano), traz consigo uma permanente violação desses direitos, que se manifesta na situação dramática dos povos oprimidos e das maiorias empobrecidas a nível mundial.
Dada esta situação, Ellacuría propõe uma nova civilização, um projeto global que seja universalizável e onde haja a possibilidade de sobrevivência e humanização para todos. Este projeto de uma nova ordem mundial consiste na proposta de uma civilização da pobreza ou do trabalho, entendida como negação superadora da civilização do capital ou da riqueza e da sua dinâmica fundamental. Trata-se de passar de uma civilização que faz da acumulação do capital o motor da história, da sua possessão e uso elitista o princípio de humanização, e do direito de todos o direito de uns poucos, a uma civilização da austeridade compartilhada.
A crise que a sociedade capitalista contemporânea atualmente enfrenta abre posibilidades para implementar este projeto humanista e alternativo à globalização neoliberal que promova a construção histórica de uma nova civilização, que inclua a todos em seus benefícios, garanta, de modo estável, a satisfação das necessidades básicas e torne possível o acesso às fontes comuns do desenvolvimento pessoal e as posibilidades de humanização.
A tarefa hoje é a de imaginar e tratar de criar essa nova civilização, porque não há nenhuma certeza de que a passagem de uma sociedade histórica à outra, diferente, será melhor em termos humanos e liberadores. A sociedade capitalista está claramente em crise, se definimos “crise” como uma situação em que as expectativas da maioría não podem ser satisfeitas por causa da lógica do sistema. Mas isso não significa necesariamente que haja uma crise do capitalismo, que é algo muito diferente. Esta expressão carece de sentido até que chegue o momento em que as forças antisistêmicas disponham de projetos alternativos coerentes e factíveis capazes de superá-lo.
IHU On-Line - Qual é a importância do pensamento de Ignacio Ellacuría no âmbito acadêmico? Qual é a sua contribuição na constituição do que podemos chamar de “filosofia da libertação”?
Héctor Samour - Ellacuría coloca a necessidade de lançar mão da filosofia, e de outras disciplinas, especialmente no que diz respeito ao fomento e à provocação de uma consciência coletiva, que possibilite a transformação da realidade histórica, e seja capaz de criar novos modelos econômicos, políticos e culturais que possibilitem a civilização da pobreza.
Para Ellacuría, a avaliação da originalidade e a efetividade libertadora de uma filosofia deve partir do compromisso com uma práxis histórica de libertação, avaliando sua validez de acordo com os resultados que traz para o processo histórico. Trata-se de fazer filosofia no seu nível formal, em relação com uma práxis libertadora e desde as maiorias pobres como sujeito e objeto dessa práxis. Isto não implica uma diminuição da exigência e do rigor da atividade filosófica, mas, pelo contrário, uma exigente e laboriosa elaboração intelectual. Neste esforço, as ciências e as outras formas de saber não ficam excluídas, porque, no método filosófico ellacuriano, as ciências, assim como outras formas de acesso à realidade, não são algo extrínseco, mas um momento constitutivo da reflexão filosófica.
Na concepção de Ellacuría, a filosofia, como todo modo autêntico de saber, por seu caráter teórico e por sua relativa autonomia, tem possibilidades e exigências que são independentes da qualquer práxis social. Contudo, ele considera que a pura autonomia da filosofia não é suficiente para que esta possa desenvolver o seu potencial libertador, ou seja, ela precisa assumir conscientemente a sua dependência da realidade histórica.
IHU On-Line - Qual é a função social da filosofia, segundo Ignacio Ellacuria?
Héctor Samour - A filosofia não pode se realizar em toda a sua plenitude se não se compreender como um momento de uma práxis histórica global, que a condiciona e lhe dá sentido. E num contexto histórico de opressão e desumanização, a função libertadora da filosofia somente ser realizará, integral e adequadamente, se a filosofia se coloca explícitamente a favor de uma práxis libertadora, concretada nas lutas de resistência que é levado a cabo, na atualidade, por uma multiplicidade de movimentos sociais nas diversas partes do mundo que se opõem à tendência de homogeneização da globalização neoliberal e propugnam a libertação.
Estas práxis históricas de libertação podem ser de índole diferente e adquirir diversas características, modalidades, objetivos e metas, segundo o momento do processo histórico e de acordo com a natureza dos processos opresivos que predominem em cada região, em cada povo ou em nível global da humanidade, os quais não necesariamente têm que ser de caráter socioeconômico ou político, mas que podem ser de caráter étnico, religioso, ecológico, tecnológico, de gênero etc. Para Ellacuría, a função libertadora da filosofia é sempre uma tarefa concreta, e o modo de desenvolvê-la terá que ser diferente em cada situação.
Não há uma função libertadora abstrata e a-histórica da filosofia, e por isso será necessário determinar previamente o “quê”, o “como” e o “aonde” da libertação. Por isso, não pode haver uma única filosofia da libertação, mas pode haver várias, segundo as diferentes situações e segundo as distintas épocas que podem se configurar no processo histórico. Em cada caso, tratar-se-á de refletir filosoficamente, de fazer filosofia no seu nível formal desde a própria realidade histórica, buscando introduzir nessa reflexão os graves problemas que afetam a maioria da humanidade, com o objetivo de contribuir para uma práxis histórica de libertação. Isso resultará numa filosofia original e libertadora, para cada situação ou para cada época histórica.
IHU On-Line – Por que muitas vezes a filosofia está à margem dos desafios sociais? As linhas de pesquisa não teriam que trabalhar mais desde a ótica de uma filosofia que ajude a compreensão da realidade histórica?
Héctor Samour – As universidades deveriam enfocar o estudo da realidade histórica, dos principais problemas que afetam a maioria dos seres humanos em suas situações concretas e das possibilidades que oferece para abrir processos libertadores, com o fim de desenhar soluções e alternativas viáveis e factíveis à situação na que se encontram nossos povos da América Latina. Os diversos informes mundiais, especialmente do Pnud e de outros organismos internacionais, mostram que a pobreza e a desigualdade continuam sendo, atualmente, os principais obstáculos para conseguir uma real democratização das sociedades latino-americanas. Os processos da globalização neoliberal agravaram estes problemas, além da deterioração contínua do meio ambiente, que chega a níveis alarmantes e irreversíveis. As universidades deveriam contribuir academicamente com suas pesquisas na elaboração de alternativas viáveis para construir sociedades autenticamente democráticas, eqüitativas e ambientalmente sustentáveis.
A filosofia se marginaliza dos desafios sociais quando se dedica ao cultivo do saber pelo saber, pretendendo abstrair-se da realidade histórica e da situação concreta que determina a própria reflexão filosófica. Pretender a assepssia e a neutralidade na prática filosófica é algo ilusório e mistificador, produto da crença de que o trabalho intelectual é uma atividade pura e totalmente autônoma da realidade histórica, sem nenhuma conexão com os condicionamentos materiais e sociais que a orientam num ou em outro sentido.
Assumindo a radical historicidade da filosofia, o que Ellacuría demandará sempre é que o exercício filosófico se faça sem que se perca a liberdade, a capacidade de crítica e a criatividade que devem caracterizar, em qualquer circunstância histórica, a prática filosófica. Aqui é o lugar onde encontra seu pleno sentido a referência que Ellacuría faz ao filosofar de Sócrates. Assim como este, Ellacuría exigirá do filosófo fidelidade à própria vocação filosófica e a si mesmo, rigor e profundidade teóricas, distância crítica frente a qualquer forma de poder e de práxis, e compromisso vital, existencial, com a busca da verdade e a sua realização práxica na própria realidade histórica, com o fim de posibilitar maiores cotas de humanização e de liberdade para todos e não somente para uns poucos privilegiados, sejam indivíduos, classes ou nações.
IHU On-Line – Ellacuría é estudado nas universidades? Na sua opinião, Ellacuría é somente um discípulo de Zubiri?
Héctor Samour -O pensamento de Ellacuría é ainda pouco conhecido na maioria das universidades da região e, menos ainda na Europa. Para nós é um desafio fazer com que o seu pensamento seja conhecido e difundido para, desse modo, mostrar a sua atualidade no debate filosófico contemporâneo e a sua potencialidade para construir um pensamento libertador à altura dos tempos. Zubiri (2) tem uma grande influência na filosofia de Ellacuría, mas não se pode considerar que a sua produção intelectual seja uma mera repetição mecânica do seu pensamento. Ellacuría também dialoga com toda a tradição do pensamento crítico, tanto a européia (Hegel-Marx) quanto a latino-americana (socialismo latino-americano), e busca construir uma filosofia que incida na realidade histórica da América Latina num sentido crítico e libertador, combatendo as ideologizações que pretendem justificar as situações opresivas e de dominação e propondo modelos alternativos que apresentem soluções, tanto conjuntarais quanto estruturais, em todos os âmbitos da sociedade. Isto é algo que o diferencia claramente de Zubiri, cujo trabalho intelectual estava orientado mais ao cultivo de uma filosofia pura sem uma clara intencionalidade política.
IHU On-Line – Qual é o significado dos mártires da Universidade Centro-Americana – UCA – para a Companhia de Jesus?
Héctor Samour – Os mártires da UCA estavam comprometidos com a libertação e com uma universidade orientada toda ela para a mudança social. A docência, a pesquisa e a projeção social da universidade deveriam estar orientadas para conhecer rigorosamente e com profundidade a realidade nacional e internacional, com a finalidade de construir um saber crítico e criativo que incidisse na marcha histórica dos nossos países num sentido libertador, iluminar caminhos de transformação e libertação para que fossem transitados pelos “pobres com espírito” e por todas aquelas forças sociais que lutavam pela libertação.
A contribuição deles não se reduziu a formular e fundamentar um novo modelo de universidade inspirada num cristianismo libertador, mas também e, sobretudo, eles se comprometeram com um estilo de vida de acordo com aquilo que inspirava a sua produção intelectual. A totalidade da sua vida e do seu pensamento adquiriu uma tríplice característica de inteligência, compaixão e serviço. Neles, a libertação não foi um mero tema externo ao seu trabalho intelectual, ao redor do qual construíam argumentos para fundamentar sua necessidade e sua bondade, mas ela se constituía em algo que tinha muito a ver com a própria vida deles como intelectuais; foi algo que assumiram como um princípio constitutivo da sua própria existência. E, conseqüente com isso, os mártires optaram por viver num mundo de oprimidos; se localizaram conscientemente no lugar da realidade histórica onde não há “possibilitação” mas opressão, isto é, no lugar das vítimas despojadas de toda figura humana, e foi aí que entregaram sua vida que lhes foi violentamente arrebatada.
Notas:
1.- As mulheres assassinadas são:
Elba Ramos (1947-1989) - ela se dedicava ao comércio de frutas e trabalhava na residência dos jesuítas, esposa de Obdúlio, jardineiro.
Celina Ramos (1973 -1989) - filha de Elba e Obdúlio Ramos.
"Elba tentou proteger a filha até a morte. Seu corpo foi encontrado sobre o de Celina, tentando evitar desesperadamente que a filha fosse alvejada. Seu esposo Obdúlio plantou 4 roseiras vermelhas no lugar onde encontrou o corpo dos quatro jesuítas. No meio delas, plantou duas roseiras amarelas, para Elba e para Celina. Aos visitantes, explicava o significado das roseiras" (Mártires da UCA. Ninguém tem maior amor... de Adair José dos Santos Rocha, Porto Alegre, 2007, p. 11).
Os seis jesuítas assassinados:
Joaquín López Y López - 1918-1989;
Segundo Montes - 1933-1989;
Juan Ramon Moreno - 1933- 1989;
Armando López - 1936 - 1989;
Ignacio Martín-Baró - 1942 - 1989;
Ignacio Ellacuría - 1930 - 1989.
2.- Xavier Zubiri, filósofo espanhol, nascido em 1898, foi aluno de Ortega y Gasset, Husserl e Heidegger e trabalhou com o filólogo Emile Benveniste. Zubiri é autor de uma vasta obra filosófica. Ignacio Ellacuría é reconhecido como um dos seus principais discípulos. Faleceu em Madrid, em 1983. Para conhecer as teses e obras sobre Zubiri, clique aqui.
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Inteligência, compaixão e serviço. Celebrando o martírio de Ignacio Ellacuría e companheiros. Entrevista especial com Héctor Samour - Instituto Humanitas Unisinos - IHU