12 Mai 2016
“Há necessidade de adequação do sistema à situação de saúde, e uma proposta que visualiza o atendimento a essa necessidade é a estruturação do sistema em uma rede de atenção, tendo a atenção primária à saúde como coordenadora dessa rede”, diz a coordenadora dos projetos da área de TI do Ministério da Saúde no Rio Grande do Sul.
Imagem: www.jaraguanoticia.com |
De acordo com Veralice, a atual realidade demográfica e epidemiológica do Brasil demanda “um modelo de atenção voltado às doenças crônicas, por exemplo, de acompanhamento sistemático e cuidados integrados que estão vinculados mais à prevenção e controle e à redução dos seus fatores de risco do que do uso de tecnologias e procedimentos de alto custo”. Contudo, pontua, o atual “financiamento é inadequado e insuficiente”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, ela destaca ainda que a transição demográfica que vivemos “aponta para o aumento de 100% das pessoas idosas nos próximos vinte anos, o que significa um maior número de doenças crônicas, como hipertensão e diabetes. A transição nutricional mostra que hoje a metade da população total e a terça parte da população de crianças de cinco a dez anos de idade está em sobrepeso ou obesidade. A transição epidemiológica demonstra 14,8% de doenças infecciosas e desnutrição, 10,2% de causas externas, 8,8% de causas maternas e perinatais e 66,2% de doenças crônicas”. Apesar disso, adverte, “o sistema está organizado de forma a priorizar o atendimento às condições agudas e à agudização das condições crônicas”.
Veralice também comenta os riscos de desmantelamento do SUS, e afirma que a “cobrança por serviços de saúde é uma proposta que lesa os direitos sociais”, lembrando que o atendimento feito pelo SUS não é gratuito, dado que “a população já contribui com impostos”. A proposta de cobrança pelos serviços à saúde, avalia, está embasada “em interesses econômicos que visualizam a saúde como um bom negócio. A questão é que, além de ser inconstitucional, em uma incorreta alternativa de medida de reajuste econômico da atual crise, a maior necessidade de atendimento às condições crônicas de saúde não são de interesse do mercado privado”.
Veralice Maria Gonçalves esteve no Instituto Humanitas Unisinos – IHU no dia 10-05-2016, onde ministrou o Seminário de socialização dos processos de aprendizagem e sistematização e oficina sobre as realidades e as bases de dados do DATASUS.
Veralice Maria Gonçalves é doutora em Psiquiatria e Ciências do Comportamento e mestre em Ciências da Saúde em Psiquiatria, pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, especialista em Informação e Informática em Saúde pela Fundação Oswaldo Cruz - Fiocruz, e graduada em Tecnólogo em Processamento de Dados pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos. Coordena os projetos da área de TI do Ministério da Saúde no Estado do Rio Grande do Sul, respondendo pela gerência local do Departamento de Informática do SUS - DATASUS. É professora convidada da Escola do Grupo Hospital Conceição e da Escola de Saúde Pública do RS.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - O Brasil vive uma batalha contra doenças vetoriais, Zika, Dengue, entre outras. O que os dados do Sistema Único de Saúde – SUS revelam acerca desses cenários? O que pode explicar a dificuldade em debelar doenças vetoriais e antecipação da incidência de doenças virais, como a gripe?
Foto: Carolina Lima / ObservaSinos - IHU
Veralice Maria Gonçalves - O controle das doenças vetoriais (Zika, Dengue e outras) depende de ações conjuntas de todos os níveis de atenção à saúde, e com grande envolvimento da população. Na década de 1930 as doenças transmissíveis por vetores foram a principal causa de óbito nas capitais brasileiras. Porém, as melhorias sanitárias, o desenvolvimento de novas tecnologias (vacinas, antibióticos) e a ampliação de acesso aos serviços de saúde, em conjunto com medidas de controle, modificaram aquele quadro até os dias atuais. Apesar disso, fatores de ordem biológica, geográfica, ecológica, social, cultural e econômica agem ao mesmo tempo na produção, distribuição e controle das doenças.
O fato de que esse grupo de doenças diminuiu significativamente no grupo de doenças do perfil de mortalidade brasileira não significa que ele não tenha impacto importante na morbidade. Algumas doenças podem ocorrer em proporções muito pequenas em comparação a outras, mas não significa que tenham sido erradicadas. Essa é uma falsa percepção, e muitas vezes isso contribui para que as ações de prevenção e controle sejam subestimadas, e os índices de infestação vetorial aumentem, com aumento de transmissão da doença.
Diferentemente das doenças de transmissão vetorial, a Influenza A ou H1N1 é uma infecção humana causada pelo vírus Influenza A (H1N1), novo subtipo viral, resultante da recombinação genética do vírus suíno, aviário e humano, com potencial de disseminação global. Esse vírus foi detectado inicialmente nos Estados Unidos em 2009 e a seguir no México e Canadá. Na época, a Organização Mundial de Saúde - OMS emitiu um alerta aos países membros e declarou esse evento como Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional - ESPII. Após identificação do vírus no Japão, Reino Unido, Chile e Austrália, a OMS elevou o nível de alerta para pandemia em progressão, tendo se disseminado em mais de dois continentes.
No Brasil, este ano a doença chegou mais cedo. Uma hipótese apresentada pelos infectologistas é a questão dos fenômenos climáticos como El Niño. Outra questão a ser levada em consideração é o período de contaminação, que ocorre antes da presença dos sintomas da gripe, sem a pessoa saber que está infectada. Além disso, o vírus se propaga por tosse e espirro e podem percorrer cerca de cinco metros de distância. Porém, a transmissão também pode se dar simplesmente ao falar perto de uma pessoa, de uma distância de até dois metros, sendo que máscaras comuns não barram as micropartículas.
Os dados anuais de todo o Brasil mostram o grande número de casos de Influenza no ano de 2012, com aumento de 10% no ano de 2013. Comparando o ano de 2012 ao de 2014, houve uma diminuição de 2% no índice total. No ano de 2015 o número de casos diminuiu 8% do total do ano anterior. Importante lembrar que esses dados são globais, não representando as realidades regionais ou estaduais, que para maior análise deveriam ser detalhados.
De qualquer modo, a melhor forma de evitar a transmissão é lavar frequentemente as mãos, utilizar lenços descartáveis e colocar a mão na boca ao tossir e espirrar. Ao perceber os primeiros sinais de febre alta, acima de 38º, dor muscular, de cabeça, de garganta ou nas articulações, buscar logo atendimento médico.
"Conhecermos os dados gerados nas ações do SUS é fundamental para a implementação das políticas públicas em todo o seu ciclo" |
IHU On-Line - Por que é importante conhecer dados acerca das ações do SUS? Como buscar esses dados e como essa informação pode contribuir para a implementação de uma estratégia de polí¬tica pública em saúde?
Veralice Maria Gonçalves - Conhecermos os dados gerados nas ações do SUS é fundamental para a implementação das políticas públicas em todo o seu ciclo – da elaboração à avaliação de sua execução. Isso significa dizer que é o registro das ações o responsável pelo início do processo da produção da informação, que será o insumo básico para a análise final. De alguma forma, pode parecer que essa é uma questão básica e óbvia, porém a qualidade desse registro é que promoverá a correta avaliação de situação da questão que está sendo analisada. Também, o conhecimento por parte do coletador sobre a importância do seu papel nesse início de processo é fundamental.
Com base nos dados produzidos pelas ações do SUS e nos dados de outras agências produtoras de informação, como o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE e a Previdência Social, podemos traçar o diagnóstico da situação de saúde de uma população. Com esse diagnóstico e as recomendações das Conferências de Saúde, devem se definir as políticas e os programas a serem implementados e que são descritos nos Planos de Saúde. As necessidades de recursos orçamentários para a execução do Plano também são descritas em outro instrumento de gestão, a Programação Anual de Saúde, e a comprovação de sua execução, no Relatório Anual de Gestão. Assim, tanto o processo de operacionalização dos serviços de saúde como o de análise epidemiológica e pesquisas são baseados e produzem informações para a manutenção sistêmica do processo de gestão.
IHU On-Line - Como avalia a estrutura do SUS, hoje, enquanto política de saúde pública? Quais os avanços e limitações nesses últimos anos?
Veralice Maria Gonçalves - O maior avanço em relação ao SUS refere-se ao direito à saúde conquistado pela sociedade brasileira – Artigo 196 da Constituição Federal (CF) de 1988. É o maior sistema público de saúde do mundo, do qual dependem exclusivamente para tratar a saúde, em torno de 80% da população, e estamos falando de mais de 204 milhões de brasileiros, conforme o IBGE.
A estrutura do SUS deve garantir, por meio de políticas sociais e econômicas, a redução do risco de doença e de outros agravos e o acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação, conforme a Constituição. Esse direito foi regulamentado (art. 3º da Lei nº 8.080, de 1990) e estabeleceu que a saúde tem como “fatores determinantes e condicionantes, entre outros, a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais”. A norma reconhece também a influência sobre a saúde de ações que garantam às pessoas e à coletividade as condições de bem-estar físico, mental e social. Isso significa dizer que saúde, em termos legais, envolve ações e serviços de responsabilidade de vários órgãos públicos – e não apenas os que são realizados no âmbito do Ministério da Saúde e das secretarias de saúde - e só pode ser garantida por meio de uma política governamental integrada.
Assim, os fatores condicionantes e determinantes da saúde estão inseridos nas mais diversas áreas da Administração Pública. Vale dizer, órgãos e entidades do SUS devem conhecer os fatos que interferem na saúde da população para a adoção das medidas necessárias, mas o dever de adotar políticas sociais e econômicas que visem evitar o risco da doença é do Governo como um todo (políticas de governo), e não apenas do setor saúde (políticas setoriais).
"A estrutura do SUS deve garantir a redução do risco de doença e de outros agravos e o acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação, conforme a Constituição" |
Avanços no SUS
Podemos citar como avanços do SUS o fortalecimento da Atenção Primária à Saúde, com a Estratégia de Saúde da Família, as ações de preventivas, o desenvolvimento de sistemas de informação e de gestão para monitoramento dos resultados, a maior participação e controle social dos Conselhos de Saúde, entre outros.
Quanto ao financiamento, a Emenda Constitucional 29 (EC29 de 2000) assegurou a coparticipação da União, dos Estados e dos Municípios, estabelecendo limites mínimos de aplicação de recursos em saúde (Piso constitucional de Aplicação em Saúde). Sendo um avanço na regulamentação, ainda é um desafio para sua completa implementação e está dentre os principais problemas enfrentados desde a criação do Sistema Único de Saúde.
Outro grande desafio está relacionado à precarização do trabalho e às questões da regulamentação dos direitos trabalhistas dos profissionais no âmbito da saúde, além da necessidade de integração da formação com a prática de atuação no serviço. A qualificação dos profissionais em seus múltiplos âmbitos de vínculo com o sistema é fundamental para a qualificação da prestação dos serviços. Qualificar os profissionais significa integrá-los em uma proposta permanente de pensar o sistema com base nas necessidades da população, influenciadas pelas suas condições sociais, econômicas, culturais, e no uso das novas tecnologias.
IHU On-Line - Como compreender o que está por trás de propostas que visam desestruturar a formatação do SUS, como, por exemplo, a cobrança por serviços de saúde? Quais os riscos à polí¬tica pública de saúde e ao próprio sistema?
Veralice Maria Gonçalves - A cobrança por serviços de saúde é uma proposta que lesa os direitos sociais. A saúde que temos não é gratuita. Existe uma forma de cobrança porque a população já contribui com impostos. Essa e outras propostas estão embasadas em interesses econômicos que visualizam a saúde como um bom negócio. A questão é que, além de ser inconstitucional, em uma incorreta alternativa de medida de reajuste econômico da atual crise, a maior necessidade de atendimento às condições crônicas de saúde não são de interesse do mercado privado.
Nossa atual realidade demográfica e epidemiológica demanda um modelo de atenção voltado às doenças crônicas, por exemplo, de acompanhamento sistemático e cuidados integrados que estão vinculados mais à prevenção e controle e à redução dos seus fatores de risco do que do uso de tecnologias e procedimentos de alto custo.
Na proposta de cobrança pelos serviços, restaria ao SUS a solução dos atendimentos para os casos que não geram lucros.
IHU On-Line - Quais os desafios para se pensar o futuro do SUS?
Veralice Maria Gonçalves - Apesar de o SUS ter sido a maior política de inclusão social da história do Brasil, há muitos desafios para serem enfrentados. Temos uma Constituição e legislação para a garantia da implementação das normas, mas isso parece não bastar – o financiamento é inadequado e insuficiente.
Há uma diferença entre o tempo das mudanças que ocorrem muito rapidamente, como a demográfica, nutricional, epidemiológica e a inovação tecnológica, e a baixa velocidade de adaptação do sistema a essas mudanças.
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"Na proposta de cobrança pelos serviços, restaria ao SUS a solução dos atendimentos para os casos que não geram lucros" |
A transição demográfica que vivemos aponta para o aumento de 100% das pessoas idosas nos próximos vinte anos, o que significa um maior número de doenças crônicas, como hipertensão e diabetes. A transição nutricional mostra que hoje a metade da população total e a terça parte da população de crianças de cinco a dez anos de idade está em sobrepeso ou obesidade. A transição epidemiológica demonstra 14,8% de doenças infecciosas e desnutrição, 10,2% de causas externas, 8,8% de causas maternas e perinatais e 66,2% de doenças crônicas. Apesar disso, o sistema está organizado de forma a priorizar o atendimento às condições agudas e à agudização das condições crônicas.
Há necessidade de adequação do sistema à situação de saúde, e uma proposta que visualiza o atendimento a essa necessidade é a estruturação do sistema em uma rede de atenção, tendo a atenção primária à saúde como coordenadora dessa rede.
IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?
Veralice Maria Gonçalves - A informação é a melhor arma para o combate às doenças, em busca da prevenção. A nossa participação nas discussões do Sistema Único de Saúde, nas comunidades, associações de representantes de usuários, trabalhadores, gestores e prestadores de serviço, bem como nos Conselhos de Saúde, é fundamental para a construção de um SUS de mais qualidade para cuidar bem das pessoas. Precisamos garantir o cumprimento dos nossos direitos e somente faremos isso com base em informação de qualidade.
Por João Vitor Santos
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A cobrança por serviços de saúde lesa os direitos sociais. Entrevista especial com Veralice Maria Gonçalves - Instituto Humanitas Unisinos - IHU