27 Agosto 2014
A verdade horrível do atual momento no Iraque é que ele é, finalmente, um momento de clareza. A lucidez, se ousarmos chamá-lo assim, que surge a partir da longa névoa de guerra é uma cena de total futilidade e devastação. Os símbolos hediondos que marcam este momento são a luta final dos cristãos e de outras minorias religiosas antes dos extremistas brutais do mais virulento dos grupos terroristas pan-nacionais que emergiram no Oriente Médio.
A opinião é expressa pelo editorial da revista norte-americana, National Catholic Reporter, 25-08-2014. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
O Estado Islâmico no Iraque e na Síria atualmente é um Estado apenas em abstrato; é uma afirmação que tem mais a ver com certa ambição do que com a realidade. No entanto, o grupo tem tomado o poder de grandes regiões da Síria e do Iraque, incluindo fontes de petróleo e instalações geradoras de energia elétrica, em sua tentativa de construir um califado local. Mais violento e dogmático do que a al-Qaeda, o Estado Islâmico se tornou a ameaça mais recente para qualquer um que tenha esperança de que o Iraque possa, de alguma forma, retomar o seu equilíbrio e formar estruturas de governo representantes de todas as etnias e religiões contidas em suas fronteiras.
O Estado Islâmico não quer nada disso, nada de governança inclusiva. Ele está forçando conversões sob ameaça de morte. Centenas de milhares de cristãos estão abandonando o território que remonta às raízes mais profundas da história do cristianismo. Não se trata mais de uma geopolítica “complexa” ou de guerra do petróleo. A política disso tudo pode, com certeza, gerar alianças estranhas: a dinâmica do “inimigo do meu inimigo” está acontecendo em várias direções, porém esta urgência tem a ver com o ataque a inocentes feitos por fanáticos religiosos e políticos que não têm consideração alguma pela lei, cultura ou vida humana.
Assim como John Kozar, presidente da Associação Católica para o Bem-Estar no Oriente Próximo – CNEWA (na sigla em inglês), disse: “Estamos testemunhando, nas mãos de bandidos extremistas, a erradicação do cristianismo no berço da civilização”. Numa nota recentemente divulgada pela CNEWA, lê-se que 150 mil cristãos continuam no Iraque, onde mais de 1 milhão coexistiam com múltiplas comunidades islâmicas e de outras religiões antes de 1991.
Podemos perigosamente distorcer a realidade do momento, no entanto, caso reservemos a nossa indignação moral aos atos sem dúvida repulsivos do Estado Islâmico. Isso porque esta ameaça não surgiu do nada em meio aos desertos do Oriente Médio.
O ano de 1991 é importante, pois foi o ano em que os Estados Unidos deram os seus primeiros passos num caminho lamentável que vem se estendendo por quase um quarto de século. Este caminho tem levado a muito mais caos e destruição do que à paz. Com os últimos remanescentes da população cristã indo agora para as fronteiras em busca de refúgio em outros países para escapar dos saqueadores do Estado Islâmico, a fruta amarga de décadas de loucura militar se mostra por completo. A analogia feita pelo ex-secretário de Estado americano, Colin Powell, se tornou realidade: destruamos este país completamente e pagaremos por isso num futuro distante.
Não estaremos entendendo nada caso ignorarmos todo o arco sangrento dos 24 anos que testemunharam a destruição criminosa de um país:
• desde a guerra pelo petróleo do George Bush pai;
• através dos 10 anos de sanções do governo de Bill Clinton que foram diretamente responsáveis pelas mortes de meio milhão de iraquianos com menos de 5 anos de idade, e pelo colapso total da infraestrutura do Iraque e de sua classe média instruída;
• através da loucura que foi a ocupação do Iraque concebida pelo George Bush Filho, com as alegações demonstravelmente falsas do vice-presidente Dick Cheney e do secretário de Defesa, Donald Rumsfeld.
Que Cheney tem acesso aos fóruns nacionais a partir dos quais continua levando adiante as suas desilusões sobre este período da história não é um sinal de tolerância política, mas de confusão política em curso. Para nós, a lição deveria estar bastante clara: o nosso motivo rápido e repetido para a guerra e o uso brutal de sanções produziram uma colheita amarga. O que criamos foi uma condição infinitamente pior do que o mal que estávamos tentando tratar.
Faz-se necessário carregar o fardo desta história para dentro da urgência do atual momento, pois parte desta história foram as vozes negligenciadas ou ignoradas de líderes religiosos – papas, religiosas, grupos pacifistas de leigos e pastores locais – insistindo que a guerra não era a solução.
Estes mesmos líderes e grupos, enquanto pedem à comunidade internacional por qualquer assistência que possa dar, são também os mais envolvidos diretamente no trabalho nas regiões de fronteira onde os refugiados estão chegando aos montes em busca de refúgio seguro.
A Associação Católica para o Bem-Estar no Oriente Próximo, organização sem fins lucrativos com sede em Nova York, é uma agência da Santa Sé que trabalha, principalmente, no Oriente Médio. Ela lançou uma campanha para apressar a ajuda de emergência a dezenas de milhares de cristãos forçados a abandonar a cidade de Mosul, no norte do Iraque.
A agência com sede nos Estados Unidos chamada Serviços Católicos de Assistência firmou parceria com a Caritas Internationalis, consórcio internacional de agências católicas, para fornecer ajuda aos refugiados do Iraque. Mais informações sobre este trabalho na região e as formas de contribuir podem ser acessadas no aqui.
O Papa Francisco apelou à comunidade internacional, principalmente “através das normas e mecanismos do direito internacional, a fazerem todo o possível para deter e evitar o aumento da violência sistemática contra minorias étnicas e religiosas”.
Dom Joseph Kurtz, presidente da Conferência dos Bispos Católicos dos EUA, repetiu as palavras do papa numa recente carta ao presidente Barack Obama, pedindo que este país “responda a este chamado do papa em conjunto com a comunidade internacional”.
Aos que interpretam as palavras do Papa Francisco ditas durante a coletiva de imprensa dada em seu avião de volta da Coreia do Sul como uma permissão à guerra, pedimos que leiam o que ele falou logo em seguida. Sim, o papa disse que era “lícito” deter um agressor injusto. Porém qualificou esta declaração: “Destaco o verbo ‘deter’. Não estou dizendo ‘bombardeiem’ ou ‘façam guerra’, mas apenas ‘detenham’”. Como o agressor deve ser detido fica para a comunidade internacional decidir, e não segundo a decisão de um país apenas. O papa sugeriu que a ONU seja o local para isso.
Talvez o mais revelador seja o seu alerta de que “nós precisamos nos lembrar de quantas vezes, usando a desculpa de se deter um agressor injusto, alguns países poderosos dominaram outros povos, fazendo uma verdadeira guerra de conquista”. Numa curta frase, Francisco parece não apenas voltar a pergunta ao questionador, mas também a fazer uma micro-história dos últimos 24 anos de envolvimento americano no Iraque.
Ousamos não ficar conformados em, finalmente, termos um inimigo com o qual todos podem concordar a respeito. O inimigo tem muito da nossa própria estupidez nacional e do nosso desejo por guerrear, sem mencionar o armamento que deixamos para traz.
Já passou da hora em que deveríamos ter alguns resultados razoáveis no Iraque. A história mostra a dificuldade de se desligar a máquina de guerra antes que seja tarde demais, e a batalha com forças extremas provavelmente vá continuar durante um futuro previsível. Frente a esta perspectiva sombria, nos esforçamos para não perder as esperanças e para termos uma resposta a esta pergunta: O que podemos fazer?
Como país, temos posto enormes quantidades de dinheiro naquilo que se tornou na destruição do Iraque e na dispersão de seu povo. Como pessoas de fé, as nossas reservas financeiras podem parecer minúsculas, mas são uma maneira de como podemos mostrar solidariedade com os que sofrem as consequências da violência internacional. Tanto a CNEWA quanto a CRS são organizações que valem a pena receber qualquer contribuição que possamos dar. Além disso, Dom Joseph Kurtz propôs duas coletas especiais de dízimos no começo de setembro para auxiliar os necessitados no Oriente Médio. Informe-se sobre isso em sua paróquia.
As pessoas de fé podem participar deste momento de urgência tendo presente as duras lições dos últimos 24 anos e fazendo doações para ajudar aqueles cujas vidas foram mudadas pelos demônios da guerra e da intolerância religiosa.
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O caminho para a destruição do Iraque começou em 1991, atesta revista americana - Instituto Humanitas Unisinos - IHU