01 Junho 2007
Enquanto o Governo Federal se prepara para aprovar um projeto de lei que permite que grandes empresas mineradoras explorem territórios indígenas, a IHU On-Line entrevistou, por telefone, o vice-presidente do Conselho Indigenista Missionário - CIMI, Saulo Feitosa. Na entrevista, Saulo nos conta que tipos de conseqüências teremos com a “invasão” das terras indígenas por parte dessas mineradoras e relata ainda o que tem acontecido com as terras exploradas ilegalmente pelos garimpeiros e da formação da Comissão Nacional de Política Indigenista.
O projeto que prevê a inserção dessas empresas nos locais pertencentes aos índios será apresentado na semana que vem a esta comissão. Redigida pelos Ministérios da Justiça, das Minas e Energia e pelo Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, o projeto prevê o pagamento de royalties (1) por parte das empresas sobre o faturamento para as comunidades indígenas. Com isso, o governo pensa regularizar e controlar a exploração das terras que hoje são utilizadas por garimpeiros que, além de atuarem de forma ilegal, causam conflitos sociais e grande impacto ambiental.
Saulo Feitosa é graduado em filosofia e história, com especialização em Bioética. Atualmente, ocupa o cargo de Vice-presidente do Cimi. Desde 1980, vem trabalhando junto aos povos indígenas, acompanhando suas lutas pela recuperação étnica, territorial e cultural.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quais são as conseqüências da inserção de mineradoras em áreas indígenas?
Saulo Feitosa – Atualmente, é proibido minerar em terra indígena. A Constituição de 1988 abriu a possibilidade de que haja exploração mineral em terra indígena por empresas de capital nacional. Antes da Constituição de 1988, era vedada a qualquer empresa explorar minério em terra indígena. Mas essa definição na Constituição Federal necessita ainda de uma lei que possa regulamentar a forma de se fazer a exploração. No nosso entendimento, essa lei deve ser feita através do Estatuto dos Povos Indígenas, que visa a regulamentar todos os aspectos da vida dos povos indígenas. Essa lei, até o momento, não existe porque o Estatuto está paralisado em sua tramitação na Câmara Federal desde 1994. Como houve essa paralisação, que se deu por parte de influência do Governo FHC, os outros temas de interesse dos índios não foram até agora regulamentados, assim como também a questão da mineração.
Esse contexto traz bastante pressão, porque as mineradoras querem agilizar o processo de autorização para exploração mineral. E aí começam a surgir projetos de lei independentes, que tramitam de forma avulsa dentro do Congresso Nacional, para beneficiar os interesses das mineradoras. Esse é o grande problema no momento. No nosso entendimento, não faz sentido algum o Congresso Nacional aprovar um projeto só para minerar em terra indígena e deixar engavetado o projeto de lei que trata do Estatuto dos povos indígenas, onde deveria estar inserida também a questão mineral. Agora, dada essa proibição legal, não há nenhuma empresa minerando em terra indígena. O que existe hoje são garimpos ilegais. A informação que temos, apresentada pelo próprio governo, é que haveria em torno de 193 garimpos ilegais em terras indígenas. Eles trazem conseqüências graves, além do conflito que é instalado com a invasão. É um grande problema essa aproximação com as comunidades indígenas, pois isso traz conseqüências sociais graves. Inclusive, temos registrados casos de abuso sexual, de presença de doenças sexualmente transmissíveis.
Agora, os que defendem a regularização da mineração por grandes empresas dizem que essa seria uma forma de proteger os índios da garimpagem, pois ela é feita de maneira ilegal e acaba sendo mais prejudicial. E, como esse número é grande, ele de fato assusta. Nós achamos que deveria haver a proibição desses garimpos, pois, se é proibido para as grandes empresas, deveria ser proibido para aqueles também. O Governo Brasileiro não está sendo eficiente na sua competência, na sua atribuição de impedir essas invasões. Daí essa realidade torna-se cada vez mais complicada.
IHU On-Line – Como é que o CIMI está vendo esta situação hoje?
Saulo Feitosa – Em função da pressão das empresas mineradoras, nós temos informação de que o Governo Brasileiro já minutou um anteprojeto de lei que estará sendo enviado ao Congresso em breve. E, independente do projeto do governo, já tramitam outras iniciativas, como a do senador Romero Jucá (2), que é o projeto de lei número 1610, que já passou pelo Senado Federal e já está na Câmara. Isso é muito ruim, pois não tem nenhuma preocupação em proteger as comunidades indígenas, mas apenas viabilizar o acesso das empresas mineradoras às terras. Já tivemos acesso a essa minuta do anteprojeto de lei, embora ela não tenha sido colocada para discussão pelo movimento indígena e pelos seus aliados. A informação que temos, extra-oficialmente, é que o Governo Brasileiro estaria apresentando-a à Comissão Nacional de Política Indigenista na semana que vem. Esta comissão foi criada pelo Governo Lula e é composta por representantes de doze ministérios, dez representantes indígenas e dois representantes de Entidades Indigenista, tendo como presidente o senhor Mércio Gomes (3). Essa comissão foi criada há mais de um ano, mas a sua primeira reunião só acontecerá agora, nos dias 04 e 05 de junho. A informação que temos é que nessa comissão o Governo já apresentará esse anteprojeto de lei, e será a primeira vez que os índios poderão analisá-lo.
IHU On-Line – A Constituição prega que os povos devem ser consultados, mas não fala em poder de veto. O senhor acredita num convívio pacifico entre essas mineradoras e os povos indígenas se os próprios índios coordenassem a mineração?
Saulo Feitosa – O que existe, de fato, é uma grande quantidade de pedidos por parte de várias mineradoras para fazer a pesquisa para virem a minerar em terra indígena. Segundo um levantamento feito em 2005 pelo Instituto Sócio-Ambiental Brasileiro, havia, na época, cerca de quatro mil requerimentos de pesquisa em terras indígenas. Esses requerimentos eram feitos por pessoas e empresas, como a Odebrecht e a Vale do Rio Doce. Seriam 123 terras indígenas afetadas por esses requerimentos. Essas empresas estão aguardando aprovação da lei a que me referi. Só que, no nosso entendimento, não faz nenhum sentido a lei e os requerimentos anteriores serem aprovados agora, pois qualquer empresa que teria interesse em fazer pesquisa deveria apresentar novos requerimentos. Isso porque os requerimentos só passam a valer após a aprovação de uma lei.
Então, o que há hoje de fato é uma pressão das mineradoras sobre o governo e uma sensibilidade do governo sobre esse trabalho. Mas o governo ainda não autorizou.
IHU On-Line – Qual é a importância hoje da Comissão Nacional de Política Indigenista?
Saulo Feitosa – Situações como essa em que a gente está tratando da mineração e essas investidas de projetos que tramitam de maneira isolada sem respeitar o que está articulado no Estatuto dos Povos Indígenas é uma demonstração de que há uma necessidade dessa Comissão. A reivindicação dos povos indígenas e seus aliados sempre foi a constituição de um Conselho Nacional de Política Indigenista. Infelizmente, nesse governo só se avançou até a criação de uma Comissão. Nós entendemos a importância dela a partir do momento em que os temas, que são de interesses dos povos indígenas, passarem a ser discutidos. Temas esses que são, por exemplo, a questão da mineração, a demarcação de terra, a educação, a saúde etc. Nós pretendemos que essa comissão de fato cumpra um papel de estar refletindo e formulando propostas para uma política indigenista conseqüente. Porque até hoje, durante esses mais de 500 anos de história de presenças de não-índios dentro dos territórios indígenas e dentro da construção do Estado Brasileiro, os índios nunca foram consultados na elaboração de políticas que digam respeito a suas vidas. Essa comissão poderá vir a dar essa oportunidade. Daí ela ser tão relevante e de interesse dos povos indígenas.
IHU On-Line – Quais foram os ganhos que os indígenas tiveram com as discussões feitas no V CELAM?
Saulo Feitosa – O V CELAM, na verdade, não trouxe novidades em relação à temática indígena. O que já havia acontecido em Puebla e em Santo Domingo me parece que, no máximo, vai ser mantido. O Papa Bento XVI teve uma infeliz fala durante a sua visita e a abertura da conferência. Depois, ele fez uma tentativa de corrigir, de se explicar, mas houve muita reação por parte do movimento indígena. Em termos concretos, no que significa um maior comprometimento da Igreja na América Latina com a Pastoral indigenista, nos próprios temas mais diretamente relacionados a questões religiosas, como a teologia indígena e as questões eclesiais, não identificamos avanço nenhum. Acho que não houve também nenhum retrocesso, apenas se mantém um tipo de atenção em relação à pastoral indigenista que já está sendo dada. Infelizmente, não se aproveitou o espaço para se avançar no dialogo inter-religioso, por exemplo.
IHU On-Line – Como o senhor analisa o discurso do Papa Bento XVI?
Saulo Feitosa – Num primeiro momento, logo quando Bento XVI chegou, saudou os povos indígenas, fez referência à quantidade de povos, o que foi muito simpático da parte dele. Mas, num segundo momento, ao tratar especificadamente da questão da evangelização aqui nas terras americanas e ao dizer que a fé cristã católica chegando aqui não teria, a princípio, trazido nenhuma impositiva, ele realmente negou nossa história.
Todos nós sabemos as conseqüências do primeiro processo de evangelização e, inclusive, o Papa anterior reconheceu isso. De fato, faltou uma preparação maior do Papa para trabalhar essa temática e acabou que o discurso dele foi muito ruim. Ele não preparou-se para esse tema. Poderia ter, em seu pronunciamento, destacado inclusive os avanços das igrejas, porque a Igreja tem avançado. No ano passado, ainda no mês de outubro, todas as pastorais indigenistas da América Latina e Caribe estiveram reunidos com muitos bispos do CELAM, discutindo a questão das teologias indígenas e a pastoral indigenista. Há um acúmulo de assuntos e o Papa não apropriou-se desse acúmulo. O discurso dele foi totalmente descontextualizado, inclusive desconhecendo essa caminhada nossa.
IHU On-Line – O governo Lula permitiu um avanço ou um retrocesso nas questões indígenas brasileiras?
Saulo Feitosa – O Governo Lula, em relação à questão indígena, não significou avanços. É um governo contraditório. Eu diria que se assemelha, infelizmente, aos governos anteriores. As questões mais gritantes, como a demarcação de terras indígenas, violência, se mantêm. Uma novidade é a constituição da Comissão Nacional de Políticas Indigenistas, dependo de como ela atuará. O governo atual não chegou a construir uma política para os povos indígenas no Brasil. Então, mantém-se assim como seus antecessores, tratando a questão indígena como um problema e não reconhecendo os povos indígenas como importantes segmentos da sociedade brasileira.
Notas:
(1) É a importância cobrada pelo proprietário de uma patente de produto, processo de produção, marca, entre outros, ou pelo autor de uma obra, para permitir seu uso ou comercialização.
(2) Senador pelo PMDB de Roraima.
(3) Presidente da Funai.
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Mineradoras e os povos indígenas. Entrevista especial com Saulo Feitosa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU