06 Junho 2016
Nós viemos de 30 anos em que, progressivamente, erodiu-se qualquer possibilidade de "discernimento" para afirmar apenas "valores e verdades objetivas" sobre as quais se achatou o Evangelho, por medo e desconfiança. Francisco, que herdou essa herança muito pesada, simplesmente recuperou, ao lado dos princípios e das normas gerais, as relações e os casos particulares. Essa é a posição equilibrada e prudente, enquanto todos tínhamos nos acostumado ao estilo drástico do "aut-aut".
A opinião é do teólogo italiano Andrea Grillo, leigo casado, professor do Pontifício Ateneu S. Anselmo, de Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, de Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Giustina, de Pádua.
O artigo foi publicado no seu blog Come Se Non, 03-06-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
No diálogo que se abriu com Aldo Maria Valli, a quem eu agradeço pela resposta, eu acredito que é justo pôr em jogo também as profissões e competências diferentes. E se não é de todo raro que um teólogo possa fazer um jornalismo ruim ou até mesmo péssimo, o mesmo pode acontecer com um bom jornalista, que se torna vítima – e se faz paladino – de uma teologia ruim ou até mesmo péssima.
Então, eu quero continuar o diálogo com Aldo Maria Valli, que eu considero um jornalista atento e competente, a quem sempre reconheci autoridade de crônica e de informação, assinalando que, na sua intervenção de "réplica" [disponível aqui, em italiano] às minhas objeções, na realidade, ele não replica, de fato, aos meus argumentos de contestação, mas continua nas suas narrativas de desconforto, que, no entanto, parecem ser sustentadas por raciocínios frágeis e aproximativos demais, por se basearem em preconceitos devidos a uma leitura teológica do pontificado de Francisco totalmente inadequada, falsa e profundamente desviante. Quando digo falsa, não ponho em dúvida as reações de Valli, mas a pertinência a Francisco daquilo que Valli sente como desconforto.
Em particular, gostaria de assinalar seis preconceitos, aos quais Valli atribui autoridade, mas que continuam sendo mal-entendidos graves e injustificados, dependentes de estereótipos teológicos que, há décadas, tentamos fatigantemente superar. Um jornalista, obviamente, pode ignorar todo esse trabalho da teologia, mas nunca deveria chegar a inferir a partir das suas categorias velhas e inadequadas um julgamento sobre a (suposta) inadequação do papa, de um teólogo como Scannone ou do teólogo e cardeal Schönborn.
O problema é que Valli não consegue ouvi-los realmente, mas projeta sobre eles apenas os seus legítimos medos, alimentados por um antimodernismo generalizado e por uma nostalgia pervasiva, que vicia toda a sua análise.
Considero seis estereótipos-chave do seu discurso:
a) Uma reconstrução do pontificado de Francisco totalmente unilateral e falsa (e, inversamente, uma projeção sobre os papados anteriores daquilo que não se compreende do papado atual)
Todos podem expressar livremente todas as opiniões que desejam. Mas, quando as argumentam, devem se referir à realidade, não aos seus pesadelos. Se se reconstrói o pontificado de Francisco como perda de referência à verdade e atenção apenas ao sujeito, então, decididamente, já se ultrapassou o limiar da definitiva incompreensão. Se, depois, coloca-se em comparação essa caricatura com outra caricatura, ou seja, a de um antecessor unicamente equilibrado, atento e prudente, então a confusão se torna irremediável.
Aqui é preciso dizer com grande clareza que as coisas são exatamente o oposto disso. Nós viemos de 30 anos em que, progressivamente, erodiu-se qualquer possibilidade de "discernimento" para afirmar apenas "valores e verdades objetivas" sobre as quais se achatou o Evangelho, por medo e desconfiança.
Francisco, que herdou essa herança muito pesada, simplesmente recuperou, ao lado dos princípios e das normas gerais, as relações e os casos particulares. Essa é a posição equilibrada e prudente, enquanto todos tínhamos nos acostumado ao estilo drástico do "aut-aut", do qual Valli parece ter se tornado um nostálgico bastante intenso.
b) Uma compreensão da relação entre doutrina e pastoral como "dedução"
Também nesse lado, ou seja, na relação entre doutrina e pastoral, Valli repete os estereótipos de uma visão intelectualista e metafísica que está superada pela história e pela evidência há ao menos 50 anos. Certamente, citando seletivamente Ratzinger e Biffi, ou assumindo as definições da Wikipédia, ele se sente fortalecido no próprio desprezo. Mas a que preço?
Quem defendeu essas teses teve a coerência de tirar as últimas consequências desse projeto e renunciou. Teriam um pouquinho dessa coerência aqueles que pensam que a renúncia de Bento XVI é apenas uma "fraqueza", enquanto foi a sua verdadeira força? A doutrina, se quiser ser "nutritiva", deve se fazer pastoral, caso contrário é letra vazia, torna-se pedra e obsessão idealizada. E, por isso, se faz agressiva e violenta. Afirmar que "sem doutrina a pastoral é cega" é um modo de levar as questões novamente para antes do Vaticano II: eu tenho a sensação de que Valli não está totalmente consciente disso.
c) Um uso dos conceitos de "lei", "consciência", "juízo", "juízo universal" e "indulgência" muito superficial
No seu texto de réplica, Valli enche o texto de definições, implicações teóricas, catequéticas e pastorais, muitas vezes, totalmente fora de controle. Se eu falo do "juízo" – apenas para criticar a conhecida frase de bom senso com que Francisco disse "quem sou eu para julgar?", referindo-se ao juízo moral sobre o comportamento de um colaborador – e o associo ao "juízo final", eu faço uma sonora confusão, que só confunde as águas e impede que se elabore uma verdadeira opinião fundamentada.
Pode-se dizer o mesmo do modo desenvolto com que os conceitos de "lei" ou de "consciência" são usados, colocando em concorrência aquilo que, ao contrário, deve colaborar. O mérito de Francisco é o de ter reaberto a relação entre lei e consciência, não o de ter afirmado a segunda contra a primeira. Fazer acreditar que é como não é, parece ser um péssimo serviço para a comunicação à informação.
Sem falar das "indulgências" que Valli trata como "prova" de uma fraca sensibilidade escatológica de Francisco, não compreendendo nem a instituição da indulgência, nem o documento de Francisco. Valli nunca descobriu que o texto fundamental sobre o "juízo final" é Mateus 25? Ele nunca ouviu falar que "antecipar o juízo final" é uma típica reivindicação das seitas e dos fundamentalistas, e que a diferença entre juízo final e juízo atual é conservada pela prudência eclesial e não pela pressa dos moralistas?
d) Uma suposição equivocada e distorcida do conceito de "sociedade líquida", cunhado por Bauman para descrever a realidade, não para julgá-la
O tom com que Valli fala da "sociedade líquida" também está diretamente transcrito pelo registro apologético mais clássico, no qual a modernidade é confundida com o demônio. Hoje, não se diz mais "sociedade moderna", mas "líquida" para formular o mesmo julgamento.
Valli nunca pensou que a sociedade começou a se tornar "líquida" quando reconheceu uma igual dignidade a todos os cidadãos? Quando superou a escravidão? Quando reconheceu também às mulheres uma igual dignidade em relação aos homens, e às esposas em relação aos maridos? Ele nunca ouviu falar do fato de que todas essas grandes conquistas do mundo moderno tiveram que ser feitas quase sempre "apesar da Igreja Católica"? E não seria a hora de admitir as próprias responsabilidades – como Francisco faz abertamente na Amoris laetitia e em outros contextos – e parar com esse paternalismo insuportável em relação a tudo e a todos?
e) Uma leitura "pré-moderna" da questão pedagógica (em família e na sociedade civil)
Também sobre outro ponto eu gostaria de assinalar a Valli uma questão de fundo: o pedido de pedagogia, que ele levanta com razão, certamente não pode ser dirigido por ele a Francisco ou a Schönborn. Mas eu entendo, porque, também nesse campo, ele permaneceu em uma concepção da tradição católica e da relação entre Igreja e mundo anterior à Dignitatis humanae, que sanciona a liberdade de consciência como conquista comum de todos os homens e mulheres.
E o erro é de repetir, como Valli faz frequentemente, que Francisco defende o direito e não o dever. Essa é uma grave mentira, que não corresponde nem às palavras de Francisco, nem à consciência eclesial comum, mas que repete as palavras obsessivas dos tradicionalistas e dos reacionários, que conhecem apenas oposições.
Francisco redescobre o "dom da fraternidade", que recebemos em Cristo, e a partir do qual ficam claros, mas complexos, todos os deveres e todos os direitos. O ponto de partida não é uma "obrigação", mas um "dom". Essa é a novidade do Vaticano II, com o qual Valli não parece precisamente sintonizado.
f) A metáfora do pai ausente...
A maior surpresa me veio a partir das considerações conclusivas em que Valli-pai se compara a Francisco-pai e quase o repreende por não saber educar seus próprios filhos. Aqui, parece-me, vai-se além do sinal e se cai – perdoe-me – quase no ridículo.
A experiência paterna deve permitir criar filhos conscientes. Para fazer isso, também é preciso a lei, sem qualquer dúvida. Mas o uso da lei, se não for para ser pais-chefes, não é sem discernimento. Para um filho que chega em casa não às 23h, mas às 2h40 da madrugada, pede-se razão, mas não se aplica a "lei objetiva", nunca. Ele pode ter perdido tempo cantando, pode ter tido um acidente, pode ter ajudado um companheiro que se sentia mal, pode ter brigado com a namorada... os casos são muitos, embora a lei seja uma só. Ela orienta ao bem, mas não é o bem.
Há casos em que um filho "deve desobedecer a lei (paterna)" se quiser crescer em consciência. Valli certamente fez essas experiências como pai, mas não entendo por que, aqui, ele as quer remover e negar: só para acusar Francisco mais facilmente, com base em categorias inadequadas?
Por fim, a questão que Valli levanta não diz respeito nem a Francisco, nem a Scannone, nem a Schönborn, mas sim aos preconceitos mediante os quais ele precisamente não consegue ouvi-los. Se forem impostas categorias tradicionalistas – que opõem lei e consciência, juízo histórico e juízo final – e se se fizer isso de modo "não católico", e não segundo o "et-et", mas com a nostalgia do "aut-aut", o resultado é que o texto de Valli chegou ao meu conhecimento, com pingbacks no meu blog, não a partir do seu site e blog, mas do blog https://anticattocomunismo.wordpress.com...
Se eu fosse Valli, começaria a me preocupar e a verificar as categorias com que ele pretende julgar o papa, os cardeais e os teólogos. Talvez, os seus textos não o convencem apenas porque falam de forma diferente da forma como ele crê que deveriam falar, tendo consultado até agora fontes pouco confiáveis ou superficiais demais.
Por outro lado, se, para interpretar os textos de Francisco, Valli continuará assumindo como boas as caricaturas tradicionalistas e não as realidades efetivas, ele acabará se encontrando em boa companhia apenas com os extremistas, que não estão dispostos a ouvir e leem tudo com as oposições entre preto e branco. Mas eu acharia estranho que um católico de verdade e um jornalista sensível como Aldo Maria Valli preferisse as más ideias do que as boas realidades.
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As caricaturas do Papa Francisco e os estereótipos tradicionalistas dos bons jornalistas. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU