31 Março 2016
A lei de águas parece ser uma lei maldita, devido à quantidade de interesses e visões que afeta e porque não conseguiu ser aprovada. Do agronegócio às comunidades de Totonicapán, muitas forças se opõem a uma regulação dos recursos hídricos do Estado.
A reportagem é de Sebastián Escalón, publicada por Plaza Publica, 28-03-2016. A tradução é de Eduardo Herrmann.
Nos últimos 30 anos, 12 projetos de lei chegaram ao Congresso para tentar colocar ordem na utilização dos recursos hídricos da Guatemala. Todas fracassaram. As 12 tentativas se estatelaram contra um muro de interesses contraditórios.
Agora, em 2016, um novo grupo de deputados volta à carga para elaborar uma nova iniciativa. Entre eles, o deputado Leocadio Juracán, do partido Frente Convergência Nacional (FCN), e o deputado Ferdy Elías, eleito pela Unidade Nacional da Esperança (UNE), mas agora membro da bancada da FCN. Ambos lideram a Comissão de Recursos Hídricos do Congresso. A nova proposta deve surgir de uma mesa técnica interministerial que os dois estão promovendo, e do diálogo com movimentos sociais.
Se os deputados perseverarem nesta enésima tentativa de regular a água na Guatemala, terão que enfrentar uma dura luta. Quais são os interesses que rejeitam sistematicamente todos os projetos para criar uma lei de águas?
Yuri Melini, diretor do Centro de Ação Legal, Ambiental e Social (Calas), não tem dúvidas a respeito: “São as elites, que atuam como sanguessugas, que não querem que haja uma regulação da água. Elas produzem o óleo ou açúcar com a água, que não lhes custa nada. Assim como as hidrelétricas, que produzem e exportam eletricidade utilizando a água, pela qual não pagam taxa de aproveitamento”, exclama o ambientalista.
“O problema, no fundo, são os vínculos entre os setores econômicos e a classe política. A falta de regulação beneficia os grandes usuários de água, enquanto os setores populares são afetados”, argumenta Jorge Cabrera Hidalgo, consultor de assuntos ambientais da Associação de Pesquisa e Estudos Sociais (Asies). Até agora, não existe regulação sobre a utilização e o pagamento pela água.
No entanto, os representantes destes setores econômicos têm um discurso diferente. Por exemplo, Juan Carlos Zapata, diretor da Fundação para o Desenvolvimento da Guatemala (Fundesa), um think tank do setor privado organizado, afirma que legislar sobre a água é uma obrigação constitucional que deve ser acatada. Ele acrescenta que a Fundesa está elaborando uma proposta de lei a respeito.
Por sua vez, Carla Caballeros, porta-voz da Câmara da Agricultura (Camagro), nega que o agronegócio seja contra a regulação da água. “Nós queremos que se regule o acesso à água, mas a partir de critérios técnicos. Deve haver uma gestão dos direitos de uso que leve em consideração todos os usuários. E também devem ser fortalecidas as instituições, para dar visibilidade à lei”.
Um discurso no qual Yuri Melini não acredita. “Não se deve perguntar a eles se querem uma lei de águas; mas sim se estão dispostos a pagar pela água que consomem”. A essa pergunta, Carla Caballeros disse não poder responder. “Os detalhes deste conteúdo estão sendo discutidos por nossos membros”.
"Esta gente nunca vai querer pagar pela água que usa, nem está disposta a aceitar o princípio de que aquele que contamina, paga”, exclama Melini.
Segundo a ex-deputada Lucrecia Marroquín de Palomo, que presidiu a Comissão de Meio Ambiente no Congresso em 2005 — e que agora lidera um movimento para reativar a pena de morte —, a oposição do agronegócio nunca foi pública. Mas, na verdade, explica, ele usa a sua influência sobre muitos deputados para paralisar as iniciativas de lei.
Quem se opõe de maneira pública e radical às propostas anteriores são os 48 cantões de Totonicapán, assim como outras organizações campesinas. As razões são distintas, inclusive diferentes das do agronegócio. O destino fatal da iniciativa 3118, em 2005, é uma amostra desta paradoxal convergência entre setores tão antagônicos.
A morte da 3118
Em 2005, o representante de Chimaltenango, Alfredo Cojtí, decidiu promover uma lei de águas. Para redigir o novo projeto de lei, foi formado um sólido time de ambientalistas, entre os quais estavam Yuri Melini, Jorge Cabrera Hidalgo e Elisa Colom, advogada com muita experiência no manejo dos recursos hídricos.
Juntos, eles elaboraram o projeto 3118, que obteve o apoio da Comissão de Meio Ambiente e Recursos Naturais, presidida por Lucrecia Marroquín de Palomo, da Frente Republicana Guatemalteca (FRG). A maior parte das bancadas grandes viam a iniciativa com bons olhos. De vento em popa, a equipe que liderava o projeto trabalhava durante meses na socialização da proposta. “Foi o primeiro projeto de lei que teve consenso entre todos os municípios”, recorda Lucrecia Marroquín. Além disso, foram organizados inúmeros workshops com ONGs, organizações campesinas, sindicatos e representantes do agronegócio e dos 48 cantões de Totonicapán.
Segundo Yuri Melini, a iniciativa 3118 tinha assegurados 108 votos no Congresso para a sua aprovação. Mas, de repente, o panorama mudou.
No dia 6 de setembro de 2005, moradores de Momostenango, município de Totonicapán, bloquearam a rodovia interamericana na altura de Cuatro Caminos, para protestar contra a iniciativa. No dia seguinte, na entrada de Totonicapán, houve violência: um grupo de pessoas incendiou a delegacia e a casa do prefeito, aproveitando uma manifestação contra a lei das águas. No dia 9 de setembro de 2005, ao grito de “Não à privatização da água”, dezenas de milhares de pessoas da região oeste foram para a rua novamente e bloquearam a rodovia interamericana em vários pontos.
Na mesma manhã, delegados dos 48 cantões de Totonicapán chegaram à capital para negociar com os deputados e o presidente Óscar Berger. Antes do meio-dia, todo o imbróglio fora resolvido: o Congresso arquivou a lei de águas e os manifestantes liberaram as rodovias.
Diferentes motivos, um mesmo fim
A queda da iniciativa 3118 ensina uma lição que os deputados interssados em retomar o tema da água devem aprender.
Enquanto se socializava o projeto de lei de águas, não houve oposição pública por parte do setor privado. Nem comunicados, nem anúncios pagos, nem declarações como as que se viu contra iniciativas de lei como a do Desenvolvimento Rural. “Eles não disseram nada, trabalharam de outro modo. Não posso provar, mas acredito que influenciaram muitos deputados dos departamentos”, explica Lucrecia Marroquín.
Segundo a ex-congressista, a proibição aos desvios de rios e a regulação de poços e águas subterrâneas motivaram a oposição desonesta dos grandes da agricultura e de empresas e indústrias não menos poderosas. “Quem mais trabalhou contra a lei foi o deputado (Eduardo) Zachrisson Castillo. Os Castillo têm, dentro da propriedade El Zapote, uma nascente de água de onde sai a água Salvavidas. Por isso não estavam de acordo com a lei que diz que as águas são do Estado”, acrescenta Lucrecia Marroquín.
Chegamos, então, ao paradoxo: uns, para manter a privatização de fato dos recursos hídricos, e outros, querendo evitar sua privatização, os dois setores conseguiram deter a iniciariva. Para Yuri Melini, o fato não é uma casualidade: “A lei estava bem fundamentada e consensuada, tanto a nível acadêmico quanto com os prefeitos. Mas tudo se complicou quando Óscar Berger e seu secretário particular, Alfredo Vila, se deram conta que a lei ia contra os seus interesses, os interesses dos proprietários de plantações de cana e do CACIF. O CACIF instrumentalizou um grupo de Totonicapán chamado 48 cantões para que se opusesse à lei, dizendo que ia contra os interesses das comunidades. Quando, na verdade, a lei reconhecia os direitos das comunidades indígenas”. O diretor do Calas acrescenta que uma instrumentalização dos 48 cantões já havia acontecido em 1998, com o corta da reforma da lei do Imposto Único sobre Imóveis (IUSI), que também colocou no mesmo grupo a organização totonicapense e o setor privado.
José Luis Sapón foi o presidente dos 48 cantões em 2013. Advogado e notário, ele foi um dos legistas que estudaram a iniciativa 3118 e considerou que organização deveria combatê-la.
A intromissão do Estado da Guatemala na administração da água de Totonicapán expõe um problema quase que de soberania nacional.
Sapón menciona algumas das razões desta oposição: “Rejeitamos a necessidade de fazer solicitações ao Estado para obter o direito à água. Tampouco havia representação indígena nas instituições que administrariam a água. Além disso, abria-se a possibilidade de autorizar o uso de água a empresas privadas mediante concessões. A água se converteria, assim, em um objeto de comércio”.
Quanto à declaração de Yuri Melini, Sapón responder: “Não me recordo de reuniões com o CACIF para falar sobre a lei de águas, mas eu não estava na junta diretiva. Porém, não descartamos a possibilidade de que nossos interesses coincidam às vezes com os de outro setor. O que é certo é que nossa análise da lei mostrava que ela não nos beneficiaria”.
Todos contra o Estado
Talvez não seja necessário especular um conluio secreto entre dois setores tão diferentes, com visões e objetivos tão distantes uns dos outros, para explicar que o agronegócio e os 48 cantões trabalharam para o fracasso da lei de águas em 2005. As duas forças têm um ponto em comum: a rejeição da intromissão do Estado em seus assuntos.
Aversão ao Estado, que expressam claramente os intelectuais “libertários”, para quem a água deve ser privatizada e ser produto do comércio.
Em uma coluna de opinião intitulada “Uma lei de águas não é a solução”, José Fernando Orellana Wer, colunista do El Periódico, escreve: “Se deixamos de considerar a água como um bem público e o consideramos como econômico, sujeito aos direitos de propriedade para regular o seu aproveitamento, seriam criados os incentivos necessários para o fomento do investimento, exploração, distribuição e conservação do mesmo”. Orellana Wer é membro do Estudantes pela Liberdade e membro da Rede de Amigos da Natureza (Rana), um grupo que se define como ambientalista, ainda que negue enfaticamente a existência das mudanças climáticas.
O jornalista Luis Figueroa, também integrante do grupo Rana, opina no mesmo jornal: “A coletivização e o estatismo fracassam em fornecer água aos pobres, como fracassam em dar-lhes boa educação e fracassam em provê-los com telefones”.
Essas duas opiniões se enquadram dentro do pensamento “libertário” que nutre as ideias de boa parte das elites econômicas da Guatemala. Uma das características dessa ideologia é a rejeição a toda intromissão da política em assuntos que considera de domínio exclusivo do livre mercado. Nesse sentido, negam que a água deva ser regulada de outra forma que não por contratos privados.
Além da ideologia, estão as práticas habituais de muitas empresas agroexportadoras, hidrelétricas ou industriais. Os desvios de rios, o uso abusivo de aquíferos subterrâneos, a contaminação por águas não tratadas e a falta de respeito de caudais ecológicos são delitos que uma lei de águas deveria sancionar com rigor.
Os 48 cantões também enxergaram com desconfiança o papel que a iniciativa 3118 outorgava ao Estado. Por razões muito diferentes.
Um verdadeiro Estado dentro da Guatemala, os 48 cantões dispõem de um território, de leis e regras próprias, e de um poder executivo (a junta diretiva) tutelado pela Assembleia. A organização é capaz de influenciar em muitos aspectos da vida diária de sua população, e uma parte importante de sua razão de ser é defender e administrar as florestas, a água e a terra.
A administração da água nesse território é tão restrita quanto eficiente, e sujeita a regras que todos os habitantes conhecem. “Nossa regulamentação é simples: há trabalhos a fazer para a manutenção e proteção da água e das nascentes, e todas as comunidades devem participar. A comunidade que trabalha, tem água. A que não trabalha, não tem água. Se alguém contamina ou prejudica, não tem acesso à água. Os conflitos por nacentes ou questões como a água se resolvem na Assembléia dos 48 cantões”, explica José Santos Sapón.
A intromissão do Estado da Guatemala na administração da água de Totonicapán expõe um problema quase que de soberania nacional. É como se México e El Salvador, que recebem as águas dos rios Usumacinta e Lempa, quisessem supervisionar a regulação da água na Guatemala.
É bem certo que a proposta legislativa reconhecia explicitamente o direito indígena e consuetudinário e as práticas ancestrais no que diz respeito ao manejo de águas. Mas o simples fato de ter que pedir uma permissão de uso da água para o Estado e ter que justificar essa solicitação motivou grande parte da rejeição. A orientação do Ministério do Meio Ambiente, entidade estranha à comunidade, que não suscita mais do que desconfiança, era inaceitável. Também era a possibilidade de o mesmo Estado entregar concessões de uso a empresas e indústrias sem pedir permissão à organização, como explicou Sapón.
“Não queremos institutos da água nem vice-ministérios da água, queremos que a entidade reguladora seja o governo local”, explicou ao El Periódico Carlos García, então presidente dos 48 cantões, em setembro de 2005.
“Em cada território, estão organizados os povos kaqchikeles, quichés, etc. Eles são os que devem decidir sobre o uso dos recursos, como está escrito na convenção da OIT”, indica José Santos Sapón, em referência à Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho.
Além de tudo, os 48 cantões enxergam no Estado uma entidade corrupa, destruidora e violente, que sempre se posiciona contra as comunidades indígenas e a favor do agronegócio. “O Estado promove projetos de criação de riquezas baseados na destruição do ambiente. Como acreditar que vai proteger a água?”, argumenta José Santos Sapón. Casos como o massacre de Alaska sinalizam a origem dessa desconfiança.
A centralização da decisão sobre a água é um motivo genuíno de receio, explica Elisa Colom. “Os 48 cantões têm razão sobre isso: se é proposta uma lei de águas em que um diretor, despachando na capital, decide que tal pessoa ou tal empresa pode ir até a sua comunidade e explorar a água, como acontece com as hidroelétricas, isso não seria justo”.
“Eu não acredito em um sistema em que três tecnocratas bem pagos, em um escritório bonito, com seu sistema de informação geográfica, decidem tudo. Ninguém vai lhes dar atenção. É necessário começar pelo caminho contrário, para que, pouco a pouco, se crie a confiança”, acrescenta Colom, que cita como exemplo o modelo francês, em que “as autoridades da bacia hidrográfica surgem a partir da base, da comunidade, e da comunidade para o município, e só depois ao país”.
Água mole em pedra dura…
O escândalo dos roubos dos rios Madre Vieja e Achihuate na Costa Sul reacendeu o clamor entra a sociedade civil por uma regulação das águas. Porém, depois de 30 anos de tentativas infrutíveras, que oportunidades teria hoje uma nova lei de águas? Dez anos depois da morte da iniciativa 3118, os congresisstas terão que fazer frente a conflitos sociais e ambientais ainda mais duros que os de 2005.
Para Yuri Melini, as opções para conseguir isso são nulas: “Eu não vejo viabilidade no tema da lei de águas. É uma perda de tempo”. Sentimento compartilhado por José Santos Sapón: “Vai ser difícil, porque há muitos interesses contrários”.
O deputado Leocadio Juracán é mais otimista: “Eu creio que é possível. Estamos em um contexto em que há conflitos e destruição massiva do recurso hídrico, e devem ser tomadas ações. Há condições, acredito eu, e, com um pouco de vontade, pode-se chegar a um equilíbrio.”
Se, levando nas costas o peso da história, os novos deputados persistirem com seus anseios, inevitavelmente toparão com o mesmo obstáculo: o que fazer com o Estado? Que poderes dar a um Estado débil, pobre, enfermo, desinformado, corruptível e no qual ninguém acredita nem confia? Estado que, apesar de tudo, é o único dono das águas superficiais e subterrâneas, e que é chamado para administrar e priorizar entre os usos distintos, cobrando taxas, punindo delitos, investindo em infraestrutura e favorecendo o acesso à água à população que não possui.
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A lei maldita (IHU/Adital) - Instituto Humanitas Unisinos - IHU