15 Fevereiro 2016
O Papa Francisco e o Patriarca Kirill se encontraram em Cuba nesta sexta-feira, 12 de fevereiro. Este encontro entre os chefes da Igreja Católica e da Igreja Ortodoxa Russa é histórico e repleto de significados.
Depois de séculos de distanciamento, as maiores autoridades desses dois ramos do cristianismo dão novo passo para a aproximação e aperfeiçoamento institucional.
A entrevista é de Jeferson Miola, publicada por Carta Maior, 14-02-2016.
O Papa Francisco e o Patriarca Kirill elegeram Cuba para sediar este encontro histórico. Mais que por razões logísticas – vale mencionar que Kirill estará na ilha em visita oficial e Francisco aproveitará a circunstância para fazer escala de passagem ao México, onde cumprirá agenda oficial – a escolha de Cuba tem uma simbologia especial.
Apesar da diminuta dimensão territorial e econômica, Cuba exerceu uma influência geopolítica impressionante sobre as políticas externas da antiga URSS e dos EUA no longo período da Guerra Fria; e continua exercendo ainda hoje. O que este pequenino país fez ou disse sempre foi levado em conta não só pelas principais potências, como também pelo conjunto das nações do globo.
Agora, neste mundo de intolerância, islamofobia, guerras, preconceitos religiosos e ideológicos e crise de valores, Cuba parece ocupar o lugar de quem pode exercer uma importante influência “geo-religiosa”, e se afigura como uma ponte tangível para um mundo de paz, compreensão e diálogo.
Para analisar este encontro histórico e avaliar os significados que a humanidade dele poderá se beneficiar no futuro, a Carta Maior entrevistou em La Habana o Reverendo Joel Ortega Dopigo, Presidente do Conselho de Igrejas de Cuba, instituição que integra o Conselho Mundial de Igrejas.
Eis a entrevista.
Reverendo, o que significa esse encontro histórico entre o Chefe da Igreja Católica e o Chefe da Igreja Ortodoxa Russa?
O primeiro e mais importante significado é que são duas tradições do cristianismo de uma história e uma cultura muito grande que se remonta desde o início do cristianismo, e que em algum momento houve uma separação. No meu entendimento essa aproximação é uma questão de doutrina, mas também cultural, histórica e social.
Isso tem um significado grande, por toda história de séculos destes dois ramos do cristianismo.
É importante mencionar que a Igreja Ortodoxa Russa faz parte do Conselho Mundial de Igrejas, que tem sido uma instituição que tem trabalhado por muitos anos em diálogo sobre a unidade com o Vaticano.
Enfim, não é todo o dia que há um encontro entre duas figuras que representam um setor amplo do cristianismo.
Em segundo lugar, é um encontro que vejo sobretudo como uma mirada ao futuro. Esse encontro ocorre no presente, porém seu impacto não é tanto hoje como será no futuro. Para mim, é um sinal de esperança, que mostra que há um interesse na aproximação, no diálogo e na paz.
Em terceiro lugar, tem um significado de extraordinário valor. um encontro no Aeroporto José Martí é extraordinário. José Martí não é apenas um cubano; José Martí é universal, e teve um pensamento teológico profundo. Inclusive há um artigo dele onde ele diz que “há outro Deus, que não é um Deus que nos divide em grupos de cristãos e não-cristãos, mas de um Deus que nos reúne a todos”.
Por isso, creio que este encontro no aeroporto que leva o nome de José Martí tem em si mesmo uma grande simbologia: não se está reunindo no aeroporto JFK, Charles de Gaulle, de Moscou ou de Roma, mas sim no Aeroporto José Martí.
Martí falava também que cuba era a chave do Golfo entre as duas Américas.
Por isso, tem uma carga de simbolismo neste encontro.
Eu diria que Cuba é o ultimo baluarte da Guerra Fria; é um país que continua bloqueado apesar do restabelecimento das relações diplomáticas com os Estados Unidos. De certa maneira, Cuba demonstra que não se pode bloquear a religião.
Por isso, entendo que este encontro tem a capacidade de olhar o futuro, porque o futuro do planeta e da humanidade tem de ser de paz.
Sabemos de toda a situação que envolve o Islã, os conflitos de guerra e toda uma realidade preocupante, e por isso esse encontro é tão valioso para contribuir para a aproximação e para a paz.
A CELAC declarou a América Latina como zona de paz. Em Cuba está ocorrendo o esforço de paz entre o governo da Colômbia e a Guerrilha. Vimos Raul Castro apertando as mãos do Presidente Santos e de Rodrigo Londoño, representante da guerrilha, antes disso vimos Raul Castro apertando as mãos de Obama, e agora as mãos de Francisco e Kirill que se apertam.
Ou seja, são mãos que se somam em direção a um futuro melhor e de paz, que é o que a humanidade necessita; de um mundo em que não seja necessário oferecer a outra face, porque deve ser um mundo tolerante e de respeito, em que se aceita a diversidade e que somos diferentes. Em síntese, um mundo em que caibam todos.
Finalmente, é provável que neste encontro temas particulares sejam tratados, sobre a relação entre o Vaticano e Moscou.
Qual a contribuição deste encontro para se superar uma realidade de intolerância, ódio crescente, guerras, racismo e ataques a migrantes com fundo religioso, onde a islamofobia é um componente essencial.
Devemos felicitar o Papa Francisco e o Patriarca Kirill pelo gesto, que é um gesto que a humanidade necessita. Se duas tendências do cristianismo que durante séculos estiveram de certa maneira separadas conseguem este passo, eles demonstram que é possível um esforço real não só religioso, mas também um esforço político e econômico, porque no econômico se deve revisar o papel que a indústria bélica e os negócios mundiais de armamento têm na economia que se reforça através das guerras.
É uma cadeia de conflitos que essa situação gera, porque com a guerra vêm as migrações, e com elas os preconceitos e a intolerância, que gera mais intolerância.
E é também uma guerra midiática, que alimenta esta situação. Outro dia o noticiário de Miami fez alarde pelo fato de um prefeito de uma cidade do Estado da Flórida ser muçulmano, e então foi criado todo um pânico. Há muita responsabilidade dos meios de comunicação. Os meios massivos de comunicação manipulam as pessoas e muitas vezes criam conflitos entre o Ocidente e o Oriente, entre as culturas diferentes. É uma guerra midiática também.
Existe muita imprensa irresponsável. Quem diz a verdade? E qual é a verdade? Porque às vezes nem os muçulmanos são tão terroristas e os cristãos somos tão santos. Não é essa a questão. Por isso o encontro está nesta linha de impactar a opinião pública e também despertar a imprensa que é responsável por muitas das coisas que estão ocorrendo.
Então, o que fazem Kirill e o Papa tem um impacto midiático grande, e creio que foi pensado estrategicamente para ter um grande impacto; estão buscando um impacto na opinião pública, chamar a atenção das Nações Unidas, das organizações globais, para que tomem posições sobre esses assuntos que, muitas vezes deixamos o governo norte-americano decidir se quer bombardear ou se não quer bombardear, se quer entrar numa guerra ou se não quer entrar numa guerra.
Por que este encontro ocorre precisamente aqui, nesta pequeníssima ilha de Cuba, e não em outra qualquer parte deste imenso mundo?
Vou falar como cubano que ama Cuba. Cuba têm mostrado ao mundo que mesmo nas condições mais adversas e realidades complexas se pode seguir adiante. Cuba tem travado batalhas e enfrentado situações que muitos poucos países ou povos têm experimentado.
Creio que aí tem uma mensagem. Está em um lugar onde o bloqueio por um lado, os russos, os mísseis, a solidariedade em Angola acontecereram. Cuba, em certa maneira, pode ser uma esperança para o mundo, de que se pode desenvolver uma sociedade onde há valores sociais, onde há educação gratuita, atenção médica. Uma alternativa. Nem o socialismo nem o capitalismo; uma ilha do Caribe onde se pode desenvolver seu próprio projeto. Cuba é um lugar onde temos muçulmanos, temos judeus, cristãos, igreja protestante ortodoxa, católica. Tem comunistas, e nos entendemos todos.
Cuba tem podido - com muitos erros, é verdade -, construir uma sociedade onde há tolerância; onde há negros, brancos. A questão racial tem sua dificuldade como em toda a parte, porém se há logrado um nível de paz aqui.
Também se pode pensar que ambas Igrejas – Ortodoxa e Católica – estão pensando em sua missão na América Latina, em sua mensagem para a América Latina. E de onde é melhor uma mensagem que toda a América Latina receba bem? Penso que é em Cuba.
Creio que é uma mensagem evangélica, evangelística, num momento de ascenso do movimento pentecostal, de todas essas igrejas todas, como no Brasil, vocês bem sabem, e por isso o encontro é uma expressão de presença na região.
Cuba é um lugar neutro.
Uma última pergunta: qual o estágio da relação entre Igreja, Religião e Estado em Cuba hoje?
Cuba é um país aberto, que constrói seu próprio caminho. Eu posso dizer que estamos no melhor momento. Não se pode dizer que tudo é perfeito e que tudo está bem, nunca seria entre Igreja e Estado e Estado e Igreja. Sempre se deve ter elementos de tensão, dinâmicas, para melhorar ambos.
Não há um Estado perfeito e nenhuma Igreja perfeita; tem de partir deste princípio. Estamos num momento de diálogo. Uma vontade importante do Estado cubano é o equilíbrio e a equidade entre todas as religiões. Em Cuba são oito as religiões, espiritualidades, muçulmanos, judeus, cristãos de todos seus ramos; estão as religiões de origem africana, o espiritismo entre outras. E se trata de ter um diálogo e uma atenção respeitando as características de cada qual, assim como a história e a cultura, porque cada uma representa uma riqueza para a Nação.
Então creio que há esta vontade do Estado, que não seria fácil para um Estado ter esse espírito de liberdade religiosa ampla como temos em Cuba.
Tem havido de parte do Estado um reconhecimento do papel da Igreja e da religião na construção deste momento do país.
Há uma vontade do Estado e da liderança da Revolução de que a Igreja e a religião joguem o papel que lhes corresponde neste momento. E creio que tanto Kirill quanto o Papa Francisco conhecem, porque eles têm suas contrapartes aqui, que conhecem a liderança do país, e têm informação de que há esse ambiente, esse espírito.
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Cuba e a 'geo-religião' - Instituto Humanitas Unisinos - IHU