09 Dezembro 2015
"A Igreja que começa este Ano da Misericórdia vem sendo energizada por um papa jesuíta que parece muito mais disposto a um “aggiornamento” aberto ao futuro do que um papa que a traçar um plano de “reformas” com longo alcance. Francisco é um excelente estrategista, mas não um planejador. O Jubileu de João Paulo II, pelo contrário, veio após um longo período preparatório, iniciando-se com documentos magisteriais tais como a sua carta apostólica de 1994 intitulada Tertio Millennio Adveniente", escreve Massimo Faggioli, professor de história do cristianismo e diretor do Instituto para o Catolicismo e a Cidadania na University of St. Thomas, em Minneapolis-St. Paul (EUA), em artigo publicado por Global Pulse, 07-12-2015. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Eis o artigo.
Dia 8 de dezembro marca vários eventos importantes no calendário da Igreja Católica, incluindo a solenidade da Imaculada Conceição de Nossa Senhora, que Pio IX proclamou em 1854, e o encerramento do Concílio Vaticano II, em 1965.
Neste ano ele também marca o milésimo dia do pontificado de Francisco e a abertura do Jubileu Extraordinário da Misericórdia. Este será o primeiro Ano Jubilar na Igreja universal dos últimos 15 anos, seguindo-se ao Grande Jubileu que João Paulo II lançou em 2000.
Muita coisa aconteceu na Igreja e no mundo durante este período.
Em primeiro lugar, o Jubileu de 2000 foi celebrado em um mundo anterior ao 11 de setembro, no qual a relação entre religião e violência era relevante somente em algumas poucas regiões geográficas e políticas. Hoje, ela domina o diálogo sobre o papel da religião nos assuntos internacionais.
Somente alguns meses antes do encerramento do Grande Jubileu é que João Paulo II visitou lugares santos muçulmanos na Síria. Muito embora estivesse sob uma terrível ditadura, a Síria era um país pacífico e um modelo no Oriente Médio para a coexistência inter-religiosa.
Isso encontra-se em grande contraste hoje pela sensação bastante presente de que os cristãos, em algumas regiões do mundo, estão vivendo uma era de perseguições religiosas que supera o período de martírio no Império Romano antes que Constantino oficializasse o cristianismo no século IV. Nesse contexto, será uma tarefa bastante complexa aos fiéis abraçarem a ênfase do Papa Francisco na misericórdia, seja em termos teológicos, seja em termos psicológicos.
O mundo era muito mais otimista e esperançoso em 2000 do que em relação a hoje.
A União Europeia ainda era desejada e estava preparando a transição das moedas nacionais para o euro. Na época, ela era vista como um agente poderoso para a unidade e estabilidade do continente.
No Oriente Médio, a “segunda intifada” começou somente no final de 2000 e existiam ainda esperanças por uma “solução de dois Estados” entre Israel e a Palestina.
No ocidente, os Estados Unidos ainda possuíam um papel de liderança, não manchada por uma série de decisões estratégicas catastróficas que foram tomadas na década seguinte.
E a questão ambiental não parecia tão terrível e potencialmente apocalíptica como hoje.
Em segundo lugar, o Jubileu de 2000 aconteceu numa Igreja Católica que era muito mais segura de si. Isso se devia não só à popularidade de idoso João Paulo II, mas também porque a ampla maioria dos fiéis não tinha conhecimento da dimensão dos casos de abusos sexuais clericais mundo afora. (Muitos bispos, cardeais e canonistas sabiam, mas falharam em reconhecê-los ou agir para detê-los.)
O grau de corrupção no Vaticano (e não só em seu setor financeiro) era também uma questão menos conhecida em 2000, na maior parte limitando-se aos envolvidos e os que investigavam. Com certeza, a corrupção vaticana não se fazia tão presente na imprensa como atualmente. E agora o Jubileu da Misericórdia abre-se numa Igreja que tem pessoas encarceradas na própria prisão do Vaticano, e que está julgando, em seu tribunal civil, pessoas que romperam com a lei.
A Igreja que começa este Ano da Misericórdia vem sendo energizada por um papa jesuíta que parece muito mais disposto a um “aggiornamento” aberto ao futuro do que um papa que a traçar um plano de “reformas” com longo alcance. Francisco é um excelente estrategista, mas não um planejador.
O Jubileu de João Paulo II, pelo contrário, veio após um longo período preparatório, iniciando-se com documentos magisteriais tais como a sua carta apostólica de 1994 intitulada Tertio Millennio Adveniente.
Outras iniciativas preparatórias para o Grande Jubileu incluíram os muitos pedidos de João Paulo por perdão aos pecados da Igreja, mesmo antes da memorável liturgia em 12 de março de 2000, que destacou estes pedidos.
Os congressos organizados pelo Vaticano sobre a história do antijudaísmo e antissemitismo também fizeram parte do esforço de “purificação da memória”. E as viagens, em 2000, ao Monte Sinai, à Terra Santa e a Fátima foram centrais para o Jubileu.
Vários documentos que modelaram a recepção magisterial do Vaticano II, especialmente Nostra Aetate, foram igualmente lançados no período de preparação do Grande Jubileu. Eles incluíam o texto de 1998 produzido pela Comissão para as Relações Religiosas com o Judaísmo, intitulado “Nós recordamos: Uma reflexão sobre o Shoah”, e o texto de 1999 que a Comissão Teológica Internacional produziu, chamado “Memória e Reconciliação”.
Em outras palavras, o Jubileu de 2000 fazia parte de um plano teológico e espiritual complexo no qual João Paulo II transformou elementos ad extra (o ecumenismo, o diálogo inter-religioso, pedidos de perdão dirigidos ao mundo exterior) em um foco central da Igreja. Certamente estes foram mais fundamentais e inovadores do que os seus esforços em reconciliar a Igreja ad intra, algo que não era muito o seu forte.
O Ano da Misericórdia continuará a redefinir a relação entre a Igreja de Roma, as outras igrejas, as religiões não cristãs e o mundo. Mas, em contraste com o seu antecessor polonês, o Papa Francisco quer que o Jubileu Extraordinário se foque na reintegração e na nova unidade das culturas internas e sensibilidades frequentemente fraturadas de dentro do catolicismo.
O esforço de purificação do Jubileu anterior ficou marcado por várias contradições típicas do pontificado de João Paulo II. De um lado, ele se centrou muito mais em Roma do que no nível local. E portanto a logística de seus eventos gerou uma grande oportunidade para sedimentar a relação, menos que transparente, entre o Vaticano, a Itália e a cidade de Roma.
Grande parte dos anos anteriores ao Jubileu de 2000 eu passei no Vaticano, pesquisando nos Arquivos Secretos para a minha tese. E, em 2000, ficou claro que o Ano Jubilar estava sendo usado não só para trazer peregrinos a Roma, mas também quantidades significativas de dinheiro. Somente parte disso tudo era para, de fato, renovar a infraestrutura pública exigida para acomodar os peregrinos.
Diferentemente, Francisco tem mostrado uma determinação em manter sob controle os políticos e outros aproveitadores italianos, o que vai fazer ser interessante assistir este Jubileu da Misericórdia.
É óbvio que o Ano Santo que o Papa Francisco convocou será também apenas mais um na longa história dos jubileus da Igreja. Mas este bem poderá ser um jubileu que, finalmente, venha a manifestar a teologia e a eclesiologia do Vaticano II, em lugar de ser somente mais um ponto na trajetória das celebrações anteriores.
Não só haverá um papel significativamente reduzido de Roma no evento que começa nesta terça-feira, o que está em conformidade com a visão eclesiológica do papa. Este Ano Santo também será marcado pela redefinição mística de Francisco sobre a relação entre a Igreja e o mundo.
A sua decisão de convocar o Jubileu da Misericórdia não se baseia em considerações teológicas e eclesiais somente. Pelo contrário, ela manifesta o seu entendimento profundo sobre as atuais necessidades do mundo contemporâneo. Os riscos neste tipo de jubileu vêm – como costumamos dizer – naturalmente, e agora em particular eles dizem respeito ao catolicismo no mundo global.
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Dois papas, dois jubileus. 15 anos que mudaram o mundo e a Igreja - Instituto Humanitas Unisinos - IHU