24 Novembro 2015
"O que a ocupação das escolas estaduais paulistas está a dispor como desafio é para que cada um de nós assuma por inteiro a defesa desse patrimônio coletivo, única garantia de uma cultura de paz contra a barbárie, requisito maior de qualquer sonho civilizatório igualitário", escreve Francisco Foot Hardman, historiador e professor de teoria e história literária da Universidade Estadual de Campinas - Unicamp, em artigo publicado pelo jornal O Estado de S.Paulo, 22-11-2015.
Eis o artigo.
Uma coisa é certa: a ocupação de mais de 60 escolas da rede estadual de ensino em todo o Estado de São Paulo por seus alunos, apoiados por pais, professores, funcionários e alguns movimentos sociais, trouxe uma visibilidade inesperada para a escola pública. Esse espaço, hoje em flagrante degradação não só no Brasil e que, até a geração passada, conheceu a aura de nossos melhores sonhos iluministas, volta, por obra de crianças e jovens pobres e em geral invisíveis, a adquirir inusitada vitalidade nas imagens vibrantes que fazem transparecer alegria e real desejo de permanência na e da escola como lugar de educação dos sentidos (do corpo, da vida, da nação).
É aula prática de democracia para todos os governos do País, que continua sendo, no que toca à educação pública, uma pátria enganadora. É aula de solidariedade, pela imensa e espontânea rede de apoios que tem conquistado. É aula de cidadania real, ao demonstrar para toda a sociedade a cegueira dos seus dirigentes, a surdez dos administradores e a prepotência do Estado.
Por mais que a racionalidade tecnoburocrática de uma gestão no mínimo temerária recomende a remoção de mais de 300 mil alunos e o fechamento de mais de 90 escolas, o que o movimento de milhares de adolescentes periféricos está a nos suplicar é que não deixemos morrer aquele espaço hoje detonado, ruinoso, precário, mas ainda assim casa lúdica do saber primeiro, espaço ora passível de reencantamento por obra e graça dos seus hóspedes principais. São meninas e meninos convertidos em artífices da educação contra a expulsão, da alegria infanto-juvenil de aprender contra o gélido descaso de adultos enrijecidos, da afeição despojada pela magia desses santuários de giz e lousa contra a incúria sem noção de governantes. Para estes, seria necessário lembrar, ao revés de sua parolagem teimosa: “Não é a economia nem a gestão numérica abstrata, estúpidos, é a educação!”
O canal de diálogo aparentemente aberto na audiência de conciliação no Tribunal de Justiça, no último dia 19, poderia ser uma estrada trilhada antes de qualquer ocupação, se bom senso e boas práticas cidadãs tivessem prevalecido. E ao Estado cabe sim a responsabilidade pela iniciativa de propor e propiciar um diálogo efetivo e de base, centrado nas escolas-alvo e em suas comunidades, e não o recurso ao piloto automático da reintegração de posse e da tropa de choque da PM. É de esperar que o governo estadual não cometa o suicídio político de repetir os métodos truculentos do confrade Beto Richa, governador tucano do vizinho Paraná, ao tratar da greve geral docente como caso de polícia. Seria a deseducação, em sentido amplo e específico. Quem sabe esse movimento comovedor de nossos jovens pobres comece a produzir alguma mudança de atitude nas autoridades: seria a reeducação de valores e posturas. Seria talvez pedir demais, mas se há esperança ela está dentro das escolas ocupadas, nunca fora. Ensinamento que não deve ser esquecido.
Mas uma palavra também se faz necessária com respeito ao comprometimento das universidades estaduais paulistas para com a crise da educação fundamental e média no sistema público.
Reitores, professores, funcionários, estudantes, entidades, com honrosas exceções que confirmam a regra, têm tido uma postura deplorável, que vai da indiferença ou arrogância à negação pura e simples do real, como se se tratasse de vidas alienígenas, paralelas, e não da mesma sociedade e, a rigor, do mesmo sistema educacional público e nacional. Que tal pensarmos em ações conjuntas de nossos conselhos universitários com os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário para implantar, o mais breve possível, cota de 50% das vagas de todos os nossos cursos de graduação para alunos provenientes da escola pública? Que tal encaminharmos um pacto de aceleração efetiva da universalização da universidade pública, a começar pela população pobre das periferias?
Num dos filmes mais belos e tocantes do cinema chinês contemporâneo, Nenhum a Menos, dirigido por Zhang Yimou (1999), verdadeiro épico da transformação revolucionária daquele país, vemos, numa localidade rural remota, um velho professor de uma escolinha primária, ao ter que se afastar para cuidar da mãe doente, recomendar à sua improvisada substituta, uma adolescente recém-saída do ciclo fundamental, que não permita, sob hipótese alguma, nenhuma desistência, nenhuma evasão de alunos. Seguindo à risca o mestre, a professora-menina faz longa viagem até a cidade mais próxima, para trazer de volta à escolinha o único aluno que tinha abandonado a classe e vagava sem eira nem beira pelos desvãos da urbe.
O que a ocupação das escolas estaduais paulistas está a dispor como desafio é para que cada um de nós assuma por inteiro a defesa desse patrimônio coletivo, única garantia de uma cultura de paz contra a barbárie, requisito maior de qualquer sonho civilizatório igualitário. Nenhum aluno a menos, nenhuma escola a menos. Que aqui, em nosso contexto, poderia se traduzir: muitíssimos alunos, escolas e mestres a mais. Remoção e fechamento, jamais.
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