19 Junho 2015
O Papa Francisco se apresenta hoje como a voz global mais autorizada contra a tecnocracia e os problemas ecológicos e humanos que ela produz. Certamente, não há uma esquerda mundial (muito menos italiana e europeia) que hoje seja capaz de dizer o que diz o bispo de Roma.
O comentário é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor de história do cristianismo da University of St. Thomas, em Minnesota, nos EUA. O artigo foi publicado no sítio TheHuffingtonPost.it, 18-06-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
A encíclica Laudato si' sobre o cuidado da casa comum foi publicada depois de um longo período de espera e, para alguns, também de trepidação: nunca uma encíclica tinha sofrido uma chuva de tiros preventiva (nos Estados Unidos da América, especialmente) por parte dos católicos neoconservadores.
No fatídico ano de 1968 da Humanae vitae, o documento papal mais controverso na era moderna por causa da sua desaprovação da contracepção, não havia as mídias sociais, o catolicismo era mais coeso e guiado por uma hierarquia ainda largamente europeia, e o advento da "biopolítica" não tinha abalado a antropologia religiosa cristã.
Mas, acima de tudo, a Humanae vitae não era uma encíclica de um papa latino-americano, o jesuíta Bergoglio, encomendada a um comitê de estudiosos liderados por um cardeal africano, Turkson: uma mistura inaceitável para o catolicismo branco dos Estados Unidos.
Mas também é diferente o clima curial do pontificado de Francisco, com uma facção consistente do aparato eclesiástico (não só a Cúria Romana) comprometido em sabotar Francisco, o primeiro papa eleito depois da renúncia espontânea do seu antecessor.
Quem buscava descontinuidades doutrinais na encíclica Laudato si' ficou decepcionado. A questão ecológica no texto está diretamente conectada com a questão do aborto (uma verdadeira ecologia não pode aceitar o aborto), bem como a questões mais novas como a da identidade sexual (cuidar da criação também significa respeitar as diferenças sexuais sem desconhecê-las ou achatá-las).
No contexto do pontificado, por outro lado, a Laudato si' se apresenta como a continuação de um discurso iniciado com o outro texto fundamental, a exortação Evangelii gaudium (24 de novembro de 2013). A encíclica apresenta de modo mais completo o Bergoglio pós-moderno (as muitas citações de Romano Guardini) e a sua mística cosmológica (as citações de um jesuíta cientista como Teilhard de Chardin).
O Papa Francisco aceita o consenso dos cientistas sobre as mudanças climáticas, declara a necessidade de uma aliança entre ciências e religiões para o cuidado da criação, e rejeita o malthusianismo daqueles que acreditam que a terra só pode ser salva controlando a bomba populacional.
É uma encíclica ecumênica (com extensas citações do Patriarca de Constantinopla, Bartolomeu) e conclui com uma oração inter-religiosa e uma oração cristã e ecumênica.
Mas a verdadeira mensagem da encíclica é política. No centro da análise está "o paradigma tecnocrático", que impôs um certo modelo de desenvolvimento e de consumo, mas também um certo modelo de domínio da economia financeira sobre a economia real e sobre a "ecologia humana". A encíclica do Papa Francisco também é política porque afirma que é preciso mais política, em uma situação como a atual, em que a tecnologia e a informação podem ser postas ao serviço da economia, dos mercados e das finanças. É a política, afirma a encíclica, que pode proteger os pobres e a criação – os dois verdadeiros protagonistas da Laudato si'.
O mercado criou desigualdades que o paradigma tecnocrático tende a exacerbar (pense-se na relação entre política e economia na União Europeia desde a sua fundação); o mercado cria injustiças quando se torna a única regra, quase divinizada. Palavras duríssimas estão no texto contra a gestão da crise financeira global de 2007-2008 e a decisão de salvar os bancos a todo o custo, cobrando o preço da população.
O Papa Francisco afirma que é necessária mais ação política por parte dos Estados e em nível internacional: um novo sistema de relações internacionais em que a dívida não seja usada como forma de controle sobre os Estados pobres; uma política que não se baseie em pesquisas e em cálculos de curto prazo, mas quem saiba olhar para as gerações futuras e que saiba ouvir as pessoas reais afetadas na sua economia real afetadas pelo paradigma tecnocrático.
Fugir do paradigma tecnocrático também requer a decisão de "desacelerar" (uma palavra que aparece com frequência no texto) e reencontrar um olhar místico sobre a criação: no ambiente, os seres humanos, animais e recursos naturais são um sistema inter-relacionado – não só do ponto de vista biológico, mas também teológico, como um sistema de relações invisíveis e não mensuráveis, mas perceptíveis em nível emotivo e religioso.
É uma apelo a renunciar à ideia de domínio sobre os recursos, mas especialmente sobre as pessoas e os pobres da terra. Nesse apelo, o Papa Francisco chama a consciência dos católicos, mas também das outras Igrejas e religiões, das ciências e de todas as pessoas de boa vontade, traçando um paralelo com a encíclica Pacem in Terris de João XXIII de 1963, publicada no mais dramático da Guerra Fria.
Em uma igreja que é cada vez mais global South, o Papa Francisco fala do ambiente a partir da perspectiva dos países pobres: também por esse motivo, a Laudato si' será acolhida de modo muito diferente, dependendo do contexto econômico e cultural em que se insere, e os próximos seis meses (viagem às Américas, Sínodo dos bispos em Roma, início do Jubileu) fornecerão indicações importantes a respeito.
Mas é claro que o Papa Francisco se apresenta hoje como a voz global mais autorizada contra a tecnocracia e os problemas ecológicos e humanos que ela produz. Resta ver se e como os bispos e o resto das Igrejas locais estarão dispostos a seguir Francisco. Certamente, não há uma esquerda mundial (muito menos italiana e europeia) que hoje seja capaz de dizer o que diz o bispo de Roma.
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O antitecnocrata Francisco e a encíclica Laudato si'. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU