30 Janeiro 2015
"Na polêmica desencadeada entre Patrus e Katia, é impossível dissociar o titulo da obra do professor Fiori, “Propriedade viva e propriedade morta” como identificação rigorosa do posicionamento de um e outra. O que é propriedade morta para Patrus é viva para Katia e o que é propriedade viva para Patrus é morta para Katia", escreve Jacques Távora Alfonsin, advogado do MST, procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul e membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos.
Segundo ele, "se a ministra diz não existir mais latifúndio, toda a propriedade privada, mesmo a de grande extensão de terra, no Brasil, está viva e imune à reforma agrária. Se o ministro diz que as cercas do latifúndio têm de ser rompidas, ele considera a possibilidade de a propriedade aí presente estar morta, devendo ressuscitar justamente pela reforma agrária".
Eis o artigo.
A recente e profunda divergência política sobre a existência ou não de latifúndios no Brasil, acesa publicamente entre o ministro Patrus Ananias, do Desenvolvimento Agrário, e a ministra Katia Abreu, da Agricultura, revela uma das questões polêmicas mais antigas da história da humanidade. Não só pela grosseira e ridícula agressão à realidade praticada pela ministra sobre a inexistência de latifúndios, desmentida por estatísticas históricas sobre a má distribuição e o mau uso de grandes extensões de terra no país, razão de a Constituição Federal ter previsto um capítulo inteiro sobre reforma agrária (arts. 184/191), mas também pela permanente crise econômico-social que o exercício e o gozo do direito de propriedade gera em prejuízo de multidões pobres.
Conflitos de toda a ordem vem se multiplicando na história sobre as causas e os efeitos do direito de propriedade, entre pensadores famosos, conhecidos e criticados pela influência que exerceram sobre esse direito. Entre muitos outros, na análise econômica e política podem ser lembrados Proudhom (1809-1865) e Marx (1818-1883). Na discussão sobre a licitude da propriedade sobre terra, Rousseau (1712-1778), contra, e Voltaire (1694-1778), a favor, mantiveram polêmica igualmente forte; na analise ética e religiosa, mesmo separados por séculos, despontaram São Tomás de Aquino (1225- 1274) e Max Weber (1864-1920).
Mesmo separados por séculos, como acontece com Weber e Tomás, nem a profundidade das mudanças sociais intercorrentes foram (e ainda são) capazes de desviar o foco de um ponto comum a todo esse conjunto de opiniões sobre a propriedade: até onde a liberdade individual do ter, característica do poder econômico, pode existir, valer e exigir tolerância e aceitação por parte do ser de todas as outras pessoas, característica do poder social delas.
O debate se torna sempre mais agudo e quente quando se estabelece, como aconteceu agora entre Patrus e Katia, quando esse direito se exerce sobre terra, bastando lembrar o número e o volume de mortes que as guerras e guerrilhas passadas criaram, fundadas em disputas sobre esse bem de vida, no Brasil e no mundo. Pela razão óbvia de que, sendo a terra um espaço físico limitado, qualquer sujeição com força de direito, sobre qualquer fração dela, exclui a possibilidade de qualquer outra pessoa fazer o mesmo sobre esse mesmo espaço. Significa dizer que, dependendo do tamanho sujeitado por alguém, o efeito de poder faltar espaço para um número indeterminado de outras pessoas é automático.
Em meados do século passado (1958), o falecido professor e filósofo gaucho Ernani Maria Fiori (1914-1985), o mesmo do famoso prefácio oferecido à “Pedagogia do oprimido” de Paulo Freire, escreveu um resumido e substancial estudo identificado como “Propriedade viva e propriedade morta”, editado pelo Instituto de Filosofia da URGS naquele ano. Examinando nada mais nada menos do que a doutrina de São Tomás de Aquino (1225-1274), por aí se vendo quão antigos são os problemas derivados do direito de propriedade, Fiori retomava princípios retirados do direito “natural”, como São Tomás entendia todo o direito ter de ser concebido, imposto e respeitado. Ao que parece, pouco preocupado com as críticas feitas a esse antigo paradigma de fundamentação e interpretação do direito, devendo viger como “natural”, ele se interessou mais em recolher o quanto daquele pensamento poderia ser atualizado.
Afirmações de São Tomás, como: a) “A posse das coisas exteriores é natural ao homem”, b) “quanto ao uso, o homem não deve possuir as coisas como próprias, mas como comuns”, c) “quanto mais elevada uma causa, muito mais numerosos os seres a que se estende sua causalidade”, foram criticadas por Fiori, no contexto socioeconômico do seu tempo, de um modo válido, em grande medida, para os dias de hoje.
Na afirmação sob letra c, por exemplo, não há necessidade de se esclarecer aqui, especialmente para as/os nossas/os leitoras/es não familiarizadas com a linguagem jurídica, as notáveis diferenças existentes entre posse e propriedade de coisas, para se entender São Tomás ter pretendido mostrar como uma “elevada causa”, quanto mais elevada (uma sujeição individual de terra tipo latifúndio por exemplo) se estende fatalmente a uma quantidade maior de “numerosos seres”.
Nisso apareceu, quase certamente, uma das mais fecundas sementes da árvore que os séculos futuros viram crescer jurídica e economicamente como função social da propriedade, uma tentativa repetida insistentemente na história de defender “numerosos seres” dos efeitos nocivos da apropriação ilimitada (causa elevada), seja da riqueza, seja da terra. E de garantir-se, inclusive, o bem comum, isto é, uma comunhão universal de bens, como a do solo, e de vidas e liberdades, como a de todas as pessoas e de toda a natureza. Segundo Fiori, tudo o que se encontrar além do “espaço vital”, assim por ele denominada a sujeição individual de coisas indispensáveis à vida “deve submeter-se a uma disciplina comunitária”, chegando ao ponto de afirmar:
“A propriedade é garantia de liberdade, mas também fonte de poder e de domínio pessoal. Assegurado o estreito círculo em que a pessoa se encastela e defende sua liberdade individual, no que concerne à disposição dos bens relacionados com as necessidades da família e do trabalho pessoal, abrem-se, além, ameaçadoras, as possibilidades da propriedade fazer-se causa de opressão, econômica, social e política. Portanto, o que ultrapassa o referido “espaço vital”, sejam bens diretos ou indiretos,deve ser regulado tendo-se em vista, predominantemente, o interesse, material e moral, da comunidade. Isso significa o fim da propriedade capitalista e a reestruturação jurídico-social da propriedade em novas bases.” Esse bem comum “reclama um regime econômico-social em que a propriedade não se possa tornar meio de escravização pessoal, mas continue sendo a garantia da liberdade de todos, no cumprimento de sua igual vocação humana. À luz dos princípios estabelecidos, a demarcação da fronteira divisória dos dois setores, só pode ser delineada, do ponto de vista econômico e concretamente, em função do conjunto de bens de que dispõe o todo social.”
Tanto o número de necessitadas/os, portanto, quanto a garantia de suficiência dos bens disponíveis para todas/os, aparecem nessa lição, como condição inafastável de exercício e gozo do direito de propriedade, coisa praticamente desconsiderada pelo sistema econômico, político e jurídico capitalista.
Uma crítica dotada desse poder de contundência não podia ser aceita, depois, pela ditadura militar implantada no Brasil. O filósofo foi destituído de sua cátedra, na URGS, e viu-se obrigado a um demorado exílio no Chile.
Na polêmica desencadeada entre Patrus e Katia, é impossível dissociar o titulo da obra do professor Fiori, “Propriedade viva e propriedade morta” como identificação rigorosa do posicionamento de um e outra. O que é propriedade morta para Patrus é viva para Katia e o que é propriedade viva para Patrus é morta para Katia. Se a ministra diz não existir mais latifúndio, toda a propriedade privada, mesmo a de grande extensão de terra, no Brasil, está viva e imune à reforma agrária. Se o ministro diz que as cercas do latifúndio têm de ser rompidas, ele considera a possibilidade de a propriedade aí presente estar morta, devendo ressuscitar justamente pela reforma agrária. Com toda a certeza, para não continuar provocando milhares de outras mortes todos os anos, de quilombolas, índias/os e agricultoras/es sem-terra, senão pela mão de jagunços, pela exploração predatória da terra e pelo descumprimento da função social inerente ao direito que a titula.
O título da obra do professor Ernani Maria Fiori, assim, não poderia exprimir melhor as grandes diferenças existentes entre as concepções de propriedade da ministra Katia e do ministro Patrus. O mais surpreendente na origem do conflito de opiniões entre ela e ele, contudo, é não se ter conferido antes os danosos efeitos que daí decorrerão, pelo fato de ter sido escolhida para cuidar da nossa agricultura, da terra que nos alimenta e nos abriga, uma pessoa cujo passado e cujo presente, pelo que disse e pelo que diz, pelo que fez e faz, defendia e defende uma concepção do direito de propriedade ultrapassada por um padre que viveu há mais de sete séculos.
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Patrus X Katia: São Tomás e Ernani Maria Fiori explicam - Instituto Humanitas Unisinos - IHU