26 Janeiro 2015
O resultado do processo de modernização nos entrega hoje uma religião como a cristã que, mantendo a sua carga totalizante para a vida individual, não cai, por isso, no totalitarismo sociopolítico. Poderá ocorrer o mesmo com o Islã? Ele poderá chegar a aceitar o espírito da democracia, da diversidade, da dimensão plural da existência que o mundo de hoje impõe?
A análise é do teólogo italiano Vito Mancuso, professor da Universidade de Pádua, em artigo publicado no jornal La Repubblica, 22-01-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
"Um fantasma ronda a Europa, o fantasma do comunismo." Assim inicia o Manifesto do Partido Comunista, que Marx e Engels publicaram em Londres em 1848, e, desde então, tiveram que se passar quase 150 anos para que esse fantasma se aplacasse encontrando paz. Quanto tempo terá que passar para que ocorra o mesmo com o fantasma que, nesse meio tempo, tomou o seu lugar? Ainda hoje, de fato, um fantasma ronda a Europa, o fantasma do Islã.
O paralelo com o comunismo não é casual. Bem antes de se tornar totalitário, o comunismo foi, desde logo, totalizante. Isto é, não era só práxis política, mas também dizia respeito à dimensão interior da pessoa, à qual se propunha como cultura, ética, estética, visão global do mundo, não sem uma acentuação religiosa para a fé e a obediência exigidas.
Do mesmo modo, o Islã também é totalizante, no sentido de que não é só religião e aquilo que a religião traz consigo (ética, estética, Weltanschauung); também é política, e, pelo fato de ele também ser isso, muitas vezes, de totalizante, torna-se totalitário.
É possível que uma religião ou uma ideologia totalizante não se torne totalitária? É possível que as religiões (que são todas totalizantes, porque, senão, não seriam religio) não produzam totalitarismos? Ou para que possa haver liberdade e, portanto, democracia, é preciso, necessariamente, a destituição do pensamento totalizante em favor do relativismo?
Para responder, consideremos o cristianismo: por que essa religião, que foi tão totalizante e totalitária ao menos quanto o Islã, hoje não o é mais? A resposta consiste no pronome pessoal "eu": o cristianismo permitiu que a consciência dissesse "eu" e, com isso, se separasse da dimensão totalizante de religião + política.
A separação decisiva ocorreu no dia 18 de abril de 1521, por obra do frei agostiniano Martinho Lutero, que, na presença do imperador Carlos V, durante a Dieta de Worms, depois de ter sido intimado a se retratar pela enésima vez, disse: "Não posso e não quero me retratar de nada, porque é perigoso e injusto agir contra a própria consciência. De outra maneira não posso. Aqui eu estou. Que Deus me ajude! Amém".
Depois veio Descartes que, em 1637, marcou a virada do pensamento filosófico europeu, dizendo: "Eu penso, logo existo" (cogito ergo sum), ou seja, a maior consciência de mim mesmo como homem me foi dada pelo meu ser pensante. Daí se abriu caminho para o Iluminismo e para o caminho cansativo (e sangrento) rumo à democracia, onde o "eu penso" filosófico tornou-se um "eu penso" político e social.
A Igreja Católica se opôs sistematicamente a esse caminho: excomungou Lutero, pôs Descartes e os iluministas no Índex, contrariou toda reivindicação em matéria de direitos humanos, especialmente a liberdade de consciência. Mas no fim teve que ceder e acabou revendo a sua própria doutrina: a liberdade de consciência, que Gregório XVI, alinhado com muitos outros pontífices, tinha definido como um "delírio" (deliramentum), um século depois, no dia 7 de dezembro de 1965, tornou-se parte da doutrina católica com o documento Dignitatis humanae do Vaticano II e hoje é parte integrante da pregação dos pontífices.
A Igreja se converteu? Ela foi forçada a se converter, tendo perdido o confronto com a modernidade. A qual, no entanto, não nos esqueçamos, foi suscitada por crentes como Lutero e Descartes, e alimentada por outros crentes, incluindo os iluministas alemães Lessing e Kant, e se eu enfatizo isso é para evitar conclusões laicistas banais e para fazer com que se entenda como o discurso é dialeticamente muito complexo.
Em todo caso, o resultado do processo de modernização nos entrega hoje uma religião como a cristã que, mantendo a sua carga totalizante para a vida individual, não cai, por isso, no totalitarismo sociopolítico.
Poderá ocorrer o mesmo com o Islã? Ele poderá chegar a aceitar o espírito da democracia, da diversidade, da dimensão plural da existência que o mundo de hoje impõe? Ninguém sabe, e certamente será um processo muito duro, que vai condicionar a vida da Europa por muitos anos vindouros.
O que fazer para favorecer esse processo? Há medidas de curto, médio e longo prazo. Em curto prazo, trata-se de combater o terrorismo com toda a dureza necessária, monitoramento também a pregação dos vários imãs e impedindo aquela que se revela como fomentadora de ódio, mas sem associar jamais ao terrorismo o Islã como tal: a distinção entre terroristas e muçulmanos é absolutamente decisiva, se não quisermos ter um bilhão e meio de inimigos e impedir a evolução positiva do Islã.
Em médio prazo, trata-se de chegar, finalmente, ao reconhecimento oficial do Estado palestino por parte da comunidade mundial e pôr fim, para sempre, à progressiva expansão dos colonos judeus, ao contrário, fazendo com que eles voltem aos territórios de origem.
Hoje, na Europa, é preciso vigiar as sinagogas com as armas, mas o Islã nunca foi antissemita. Os judeus viveram por séculos nos territórios islâmicos, e quando o grande filósofo Moisés Maimônides foi forçado a deixar Córdoba, sua cidade natal, porque tinha chegado ao poder uma dinastia islâmica extremista, ele não pensou minimamente em se refugiar na França cristã, mas permaneceu ainda em terra muçulmana, primeiro no Marrocos, depois no Egito.
Se hoje muitos muçulmanos estão se tornando inimigos dos judeus é só pela humilhação sistemática à qual o povo palestino é submetido há anos, com a complacência dos EUA. A Europa não pode e, portanto, não deve permitir mais o prolongamento dessa injustiça.
Em relação às medidas de longo prazo, entra em jogo o discurso econômico e educativo, ou seja, a capacidade de ter um trabalho e escola. Detenho-me nesta última. A tarefa da escola é oferecer instrumentos para a compreensão do mundo. Ora, é evidente que, sem pôr em jogo a religião, não se entende o mundo hoje.
Nessa perspectiva, a Itália não pode mais se dar ao luxo de desperdiçar uma ocasião tão importante como a aula de religião, de grande importância para a potencialidade geopolítica e, neste momento, bem longe de estar à altura da situação.
É preciso transformar a aula atual de ensinamento da religião católica a uma aula em que sejam apresentadas "todas" as religiões, obviamente, na proporção da importância delas para a Itália, e, portanto, com atenção particular aos monoteísmos, mas sem ignorar as religiões orientais.
Essa aula de "religiões", em que não se trata crer, mas de conhecer, deve ser obrigatória e ter a mesma dignidade curricular das outras. A condição é obviamente tirar da Igreja Católica todo poder em relação a programas e escolha dos professores, construindo uma aula totalmente laica, igualmente respeitosa das diversas religiões e super partes, da qual nenhum cidadão deve temer condicionamentos a priori à consciência, ao menos não de forma diferente daquilo que se teme em relação à aula de literatura ou de filosofia.
Assim, também, os nossos jovens vão aprender, desde pequenos, a conhecer os aspectos positivos das religiões alheias e a não ter medo delas, aquele medo que gera o ódio de que se alimenta o fantasma que atualmente ronda as nossas mentes, mas sem o qual ele poderá se aplacar e, finalmente, encontrar acolhida e paz.
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Um novo fantasma ronda a Europa. Artigo de Vito Mancuso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU