08 Janeiro 2015
A alienação e supervalorização da economia do mundo atual, desconectada da base social e ambiental real, ficou clara na crise financeira que teve seu pico em 2009. De lá para cá, acirraram-se crises em diversas dimensões. A desigualdade e o clima são dois pontos de um sistema que urge por mudanças. Frente essas evidências, o que os chefes de estado que se reuniram em Lima, no Peru, em dezembro de 2014, para a COP-20 (Conferência das Nações Unidas para as Mudanças Climáticas) decidiram? Mudar muito pouco, apostar em tecnologia e, principalmente, no próprio mercado, aquele que já se mostrou motor dos abismos sociais e da degradação ambiental do planeta. Mas essa não é a única opção. Foi o que mostrou a Cúpula dos Povos, evento que ocorreu simultaneamente à COP-20, reunindo organizações da sociedade civil do mundo inteiro para debater propostas de mudanças mais profundas na sociedade.
A reportagem é de Camila Nobrega, publicada pelo Canal Ibase e reproduzida pelo portal Envolverde, 06-01-2015.
Membro da organização da Cúpula (Cumbre de los Pueblos, em espanhol), o sociólogo chileno Ricardo Jimenez, do Pro Andes e da Secretaria de Imigrantes no Chile disse, em entrevista ao Canal Ibase, que “a única forma material de fazermos a diferença é alcançar governos que tenham vontade política e espaços em seus programas para desenvolver novas políticas e legislações, além de uma opinião pública autenticamente comprometida e eficaz contra as mudanças climáticas e pelo equilíbrio do meio ambiente”. Jimenez ressaltou que a sociedade civil tem mostrado, até agora, capacidade para resistir, reduzir o impacto sobre as populações e alcançar medidas pontuais em casos muito graves de danos ambientais. Um fator importante, para ele, tem sido a tomada de consciência das populações impactadas pelo modelo de desenvolvimento atual – projetos de mineração, geração de energia, entre muitos outros.
Multiplicam-se conflitos ambientais na América Latina
No entanto, o próprio anfitrião da Cúpula dos Povos este ano, o Peru, tem aprovado uma série de pacotes de medidas que reduzem controles e a força de algumas instituições ambientais que já antes eram frágeis. A consequência disso o crescimento vertiginoso dos conflitos ambientais. Segundo a Defensoria del Pueblo – um órgão autônomo estabelecido por lei para acompanhar a garantia dos direitos das cidadãs e cidadãos chilenos – nos últimos cinco anos houve um aumento de 300% na frequência desses conflitos. Desses, 70% referem-se a embates que extrapolam a questão ambiental em si, sendo classificados como socioambientais nos últimos relatórios divulgados. Entre os problemas mais recorrentes aparecem a ausência de participação efetiva da sociedade nas decisões sobre projetos ambientais, a proteção frente a contaminações, questões sobre ordenamento territorial, entre outros.
O impacto sobre as populações tradicionais tem se tornado o maior enfrentamento político dos últimos dez anos, segundo Jimenez, como mostram casos como o “Baguazo”, na Amazônia e o projeto “Cajamarca”.
Qualquer semelhança não é mera coincidência. Esse movimento de flexibilização das legislações socioambientais tem sido recorrente em países latino-americanos. No Brasil, o debate sobre o Código Florestal é um exemplo e, mais recentemente, a tentativa de aprovação da PEC 215 pela bancada ruralista, com uma proposta que pode colocar os povos indígenas em grave risco, é outra.
Moema Miranda, diretora do Ibase que esteve presente na Cúpula dos Povos, no Peru, avalia que esses são sinais de um esgotamento do modelo de desenvolvimento da América Latina, completamente alicerçado no sistema econômico internacional. “A América Latina está se confrontando com os limites do desenvolvimento atual. Até este momento, alguns países, como o Brasil, conseguiram reduzir desigualdades sociais, porém sem mexer na estrutura dos mais ricos. Estava todo mundo ganhando. Mas isso tem um limite e ele chegou.” Para Moema, o grande problema é que a discussão do clima fica baseada apenas em argumentos mais científicos, quando, na verdade, trata-se de um paradigma de sociedade, já que os modos de vida da maioria das populações hoje existentes no planeta, especialmente das nações ricas, ultrapassam os limites reais do planeta. “Não dá para ficar falando só em dois ou três graus centígrados, até porque, dessa forma, apenas os cientistas controlam esse diálogo. A questão do clima é ambiental, é social. Essa visão fragmentada é completamente míope e não resolverá problema algum”.
Iara Pietricovsky, do Inesc, afirma que, frente aos desafios colocados, a Cúpula dos Povos terá de se repensar, para ampliar a força: “A Cúpula é um espaço importante e necessário de resistência. Mas só terá efeito e impacto sobre os acordos pautados pela mercantilização se for capaz de produzir mobilizações massivas, mensagens claras e compreensíveis pela população e propostas que possam ser aceitas e defendidas por essa mesma população. Falta ainda, um elemento de comunicação mais ampla.”
Segundo Iara, o maior desafio é unificar forças na diversidade, algo que, na avaliação dela, já aconteceu em outros momentos históricos dos movimentos sociais. “Se conseguirmos montar uma agenda comum na América Latina, com mais flexibilidade em nosso espectro de alianças, teremos mais chances de efetividade.”
A carta final preparada a muitas mãos pela Cúpula dos Povos de Lima vai exatamente nesse sentido. O posicionamento das organizações da sociedade civil que lá estiveram reunidas é contra soluções que mais falam em pequenas adequações do sistema, como se isso fosse melhorar a vida de todos. A aposta em tecnologia para adaptação às mudanças climáticas, por exemplo, renova meios de produzir desigualdade, uma vez que apenas as nações mais ricas terão condições de investir nesse tipo de solução.
O mesmo acontece com propostas de pagamentos por serviços ambientais a populações, como o mecanismo de Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação (REDD), que preocupa muito por impor uma mercantilização da natureza e da vida. É o que afirma um trecho do texto final da Cúpula: “O capital procura fazer, frente à sua crise sistêmicas, a captura dos bens da natureza, como a água, saques de territórios e de património natural, a produção de combustíveis fósseis, além do aumento da exploração dos trabalhadores, a repressão dos movimentos sociais e violência física e psicológica, múltiplas formas de crescente criminalização das lutas dos povos, a militarização e o controle territorial.” (Veja aqui declaração na íntegra, no site do MST)
Além do posicionamento único dos movimentos sociais, houve também proposições e avaliações importantes, como dos movimentos das juventudes. Os povos indígenas divulgaram uma carta afirmando que “as negociações dos chefes de estado não frearão o desastre que se impõe à Terra Mãe”, em referência ao planeta. A Rede Brasileira pela Integração dos Povos (Rebrip) também lançou um texto.
Já os líderes dos países que participaram da COP-20, a reunião oficial da ONU, porém, desempenham um papel de cegueira sobre estas questões. Eles disputam novos acordos, quando nem mesmo os compromissos firmados anteriormente, como o Protocolo de Kioto, foram cumpridos, especialmente pelos maiores emissões de gases de efeito estufa do planeta, China e Estados Unidos. Depois de longas sessões de discussões, que prorrogaram a conferência por dois dias devido às diferenças de posicionamento entre os países chamados “desenvolvidos” e os “em desenvolvimento”, a COP-20 chegou a um acordo sobre um texto que servirá de base para a próxima COP, em Paris, em 2015. O projeto de 22 pontos e quatro páginas foi aprovado no último minuto pelos delegados de 195 países que participaram da conferência, depois de duas semanas de negociações, para que a sensação de fracasso pudesse ser minimizada. O documento reconhece a responsabilidade comum e diferenciada dos países pelo aquecimento e estabelecer mecanismos para lidar com perdas e danos por fenômenos climáticos extremos, especialmente nos países pobres e ilhas sob ameaça.
Os países devem anunciar, nos próximos meses, os seus compromissos para reduzir as emissões globais entre 40% a 70% até 2050, com a necessidade de limitar a 2°C o aumento da temperatura global.
E sobre mudanças mais profundas no sistema, que possam trazer um modelo alternativo, com justiça socioambiental? Nada. Que venha a resistência, anunciam os povos indígenas. Será um 2015 de muita luta da sociedade civil, dentro e fora do Brasil.
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