16 Dezembro 2014
"Prefiro pensar o filme 'Êxodo: Deuses e Reis' como sendo a visão pessoal que Ridley Scott tem de Deus e também de sua luta através desta arte como sendo as consequências daquilo que significa dizer 'Eu acredito'", escreve Rose Pacatte, diretora do Pauline Centerfor Media Studies, na Califórnia e mestra em Estudos Midiáticos pela Universidade de Londres, em análise publicada pelo National Catholic Reporter, 12-12-2014. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Eis a análise.
O mais recente épico do diretor Ridley Scott – “Êxodo: Deuses e Reis” – é uma tentativa de contar a história bíblica de Moisés desde o momento em que ele sabe ser um hebreu até o momento em que recebe os Dez Mandamentos no Monte Sinai. A produção termina com ele em idade avançada, montado numa carroça com a Arca da Aliança, como o povo hebreu se locomovia no deserto.
Usei a palavra “tentativa” acima porque o filme é uma extrapolação artística dos textos bíblicos que mostra o óbvio e inventa ou, simplesmente, omite o que os cineastas não parecem estar em condições de entender ou pensar como sendo importante. O filme enfatiza a imaginação do espetáculo visual por parte do diretor para com os elementos mais óbvios do êxodo (Êxodo, 12,31; 14,29) numa escala que deixa comendo poeira o filme “Os Dez Mandamentos” (de Cecil B. DeMille, 1923) e o seu remake de 1956, vencedor do Oscar.
Moisés é, certamente, o personagem central na história, mas ele não se parece nenhum pouco com o Moisés que vimos até então. Ele nunca havia sido pensado como um militar e um guerreiro, mas sim sempre como um líder. Aqui, o diretor Scott funde estes elementos no personagem de Moisés. Talvez Scott e os quatro roteiristas (Adam Cooper, Bill Collage, Jeffrey Caine, Steven Zaillian) pensam que a audiência contemporânea não possa compreender as lutas e desafios espirituais, o mistério e milagres, sem ser um ataque descarado sobre os sentidos de um conflito militar cinematográfico.
O filme começa com o faraó, ou Seti (John Turturro), dando espadas quase idênticas ao seu filho, Ramsés (Joel Edgerton), a seu sobrinho, Moisés (Christian Bale). Seti então troca-as, dizendo ao jovem para lutar no intuito de salvar a vida do outro em batalha.
Enquanto isso, uma sacerdotisa prevê que alguém irá salvar a vida do líder e se tornará, por sua vez, o líder. Moisés e Ramsés foram criados juntos e são como irmãos. Esta previsão oracular cria uma tenção entre eles – uma rivalidade de irmãos.
Quando retornam da batalha, Seti diz a Ramsés para ir a Mênfis para se certificar quanto a um vice-rei corrupto (Ben Mendelsohn) responsável pelos escravos hebreus que estão construindo a cidade. Ramsés não quer ir, e então Moisés é quem vai. Aí, ele vê o sofrimento dos hebreus. Encontra-se com um jovem chamado Joshua (Aaron Paul) e seu pai, Nun (Ben Kingsley), que diz a Moisés sobre algo que ele, há muito, suspeitava: Moisés não é quem pensa ser. Ele é um hebreu. Nun dá a Moisés uma vara que estava junto dele quando foi encontrado num cesto levado pelas águas enquanto era bebê.
Esta informação leva Moisés a um confronto com Ramsés, com sua mãe adotiva, Bítia (Hiam Abbass), e com Míriam (Tara Fitzgerald), que leva Moisés de volta a Nun, o qual lhe explica mais sobre os eventos. Enquanto ele sai da habitação de Nun, um soldado egípcio o ataca, porém acaba sendo morto por Moisés. Ransés, então, expulsa Moisés para o deserto.
Moisés anda por um longo tempo até chegar a um oásis, onde encontra Zípora (María Valverde), filha de Jetro (Kevork Malikyan), que são pastores. Moisés se casa com Zípora, e eles têm um filho, Gérson (Hal Heweston). Os dois formam uma família muito unida.
Quando Moisés vai atrás das ovelhas que se perderam na montanha, é surpreendido por um deslizamento de terra. Aqui, Moisés enxerga uma sarça ardente com um jovem menino, Malaque (Isaac Andrews), que fala sobre o sofrimento do povo hebreu.
Se estivermos familiarizados com o Livro de Êxodos, poderemos ver que a versão de Scott segue a narrativa em traços largos, e não de perto; na realidade, ele faz algumas mudanças. Por exemplo, a vara que Nun aperta contra as mãos de Moisés.
O rabino Yitzchok Adlerstein, diretor para assuntos inter-religiosos no Simon Wiesenthal Center, em Los Angeles, também esteve presente na sessão de exibição em que participei. Ele disse ter chagado à conclusão de que a vara era, provavelmente, uma superstição que remonta à Cabala, interpretação mística das Escrituras. O personagem Malaque faz pilhas de pequenas pedras ao longo do filme inteiro, e Adlerstein não soube dizer significação disso a partir da perspectiva do judaísmo ortodoxo. Fico me perguntando se não se trata de mais uma superstição relacionada à incompreensão da Cabala – de outro modo, não faço a mínima ideia do que tal prática poderia significar.
O rabino elogiou a fotografia e os efeitos especiais da obra. Porém, segundo ele, há um grande problema relacionado a Malaque, o “menino” que fala por Deus e que se mostra duro em atitude e nas palavras para com Moisés. Malaque tem o temperamento exato do Deus do Antigo Testamento, que prevalece na cultura popular, mas não nas mentes e corações dos fiéis.
“Ramsés tem mais compaixão do que este seu personagem”, disse Adlerstein. Ele rejeita a ideia de que este menino pudesse ser um anjo – embora exista uma menção a um anjo na versão elohista da Escritura – ou Deus, que nunca teria estado visível.
O rabino acrescentou:
“O Deus menino, o porta-voz de Deus no filme, se comporta como se merecesse uma boa surra. Ele não tem a ver com a liberdade, compaixão ou justiça – só exige uma conformidade forçada através de demonstrações de poder. Pais humanos iluminados sabem agir melhor do que a forma apresentada. Deus não é isso, nem é esta a história. O Deus da Bíblia ajuda os egípcios com avisos e mais avisos, com chances e mais chances, antes que a pirotecnia comece. Há uma gradação para as pragas: elas primeiro afetam os bens de consumo e as propriedades, em vez de infligir dor e perdas de vidas. O Deus da Bíblia responde aos gritos das pessoas. Ele quer que as pessoas – tanto os israelitas quanto os egípcios – compreendam a sua singularidade, sua compaixão e amor, bem como sua justiça. Moisés se relaciona com ele de maneira próxima e pessoal quando faz seus desejos, e não fica esperando no escuro por uma pista.”
Para mim, o episódio da sarça ardente no filme foi a maior decepção. Na Escritura e na versão de DeMille, esta cena é uma epifania, sim, mas uma epifania onde Moisés “vê” Deus através de sua alma e se transforma. É um dos momentos mais surpreendentes e profundos dos momentos místicos presentes na Escritura. No entanto, aqui, Moisés está atolado na lama, como se tivesse sido atingido na cabeça. Ele realmente aceita, entretanto, o dizer que o menino lhe dá e começa a sua jornada de volta ao Egito.
Um outro grande problema para mim foi a Páscoa. Embora Moisés diga aos hebreus para matarem um cordeiro e marcarem suas portas com o sangue escorrido, ele praticamente não explica por que motivo isso deveria ser feito – embora, de fato, diga que, no futuro, iríamos nos lembrar do sangue destes cordeiros.
As pragas são bem trabalhadas e ameaçadoras, mas Scott deixa claro que há uma explicação natural para o que acontece. Jacarés atacam pessoas no rio, o que faz com que o rio corra com sangue em suas águas. Então as pragas começam. Com as mortes dos primeiros nascidos no Egito, temos uma dica, finalmente, da proteção divina para com os hebreus quando Moisés diz a Ramsés que nenhum filho hebreu morreu naquela noite.
Seria fácil continuar falando sobre o que ficou faltando no filme ou que foi refeito pelo diretor. Porém, isso não seria tão útil quanto incentivar as pessoas a pegarem as Escrituras e lerem o Livro de Êxodo, imaginando por elas mesmas o mistério de como as coisas podem ter acontecido.
No fim do filme, quando os subiram os créditos, notando que 15 mil pessoas trabalharam nele, o público na sala reconheceu a grandiosidade. Penso que isso aconteceu porque, apesar da diminuição da intervenção divina no que é fundamental e, sem dúvida, uma das histórias mais significativas e vívidas da Bíblia, emerge uma inspiração a partir da narrativa e do personagem de Moisés. Moisés, que se recusou a ser humilhado, rende-se a Deus no final. Liberta o seu povo da escravidão e o conduz à liberdade.
Após esta libertação momentânea do povo hebreu, fica faltando a importância do Livro de Êxodo em termos de apresentação dos Dez Mandamentos através de Moisés e de como as pessoas adorariam ao Senhor. Este momento é quase que uma nota de rodapé no filme. Os que conhecem a história do Êxodo irão se decepcionar com a versão do diretor Scott, penso eu, muito embora a atuação seja excelente, a trilha sonora seja bela e expressiva e os efeitos visuais sejam deslumbrantes. Ele quase não dá lugar ao milagroso.
Alguém na sessão de exibição disse que Scott quis fazer um filme diferente daqueles que vieram antes, incluindo “O Príncipe do Egito”, de 1998. Com certeza ele conseguiu este feito. Prefiro pensar o filme “Êxodo: Deuses e Reis” como sendo a visão pessoal que Ridley Scott tem de Deus e também de sua luta através desta arte como sendo as consequências daquilo que significa dizer “Eu acredito”.
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O Filme “Êxodo: Deuses e Reis” é impressionante, mas quase não dá espaço ao milagroso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU