04 Dezembro 2014
O cardeal George Pell, prelado australiano encarregado de limpar as finanças do Vaticano, decidiu falar abertamente sobre a bagunça terrivelmente corrupta que encontrou quando começou o seu trabalho, no início deste ano.
Num artigo escrito para a revista britânica The Catholic Herald, o prefeito da Secretaria para a Economia – um cargo totalmente novo no Vaticano – diz que recentemente foi perguntado por um membro de uma delegação parlamentar da Inglaterra: “Por que as autoridades [vaticanas] permitiram que esta situação chegasse a esse ponto, desconsiderando os padrões contábeis modernos, por tantas décadas?”
A informação é publicada por The Spectator, 03-12-2014. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
A sua resposta exige uma análise minuciosa.
"Comecei observando que esta pergunta era uma das primeiras que ocorreria para nós, falantes de língua inglesa, mas que também era uma pergunta que bem poderia ser a última da lista para pessoas vindas de uma outra cultura, tal como a italiana.
Estes na Cúria estavam seguindo padrões há muito tempo estabelecidos. Assim como os reis haviam permitido a seus legisladores, príncipes e governadores uma liberdade de exercício quase completa para controlar as suas respectivas terras, desde que equilibrassem as contas, o mesmo fizeram os papas com os cardeais curiais (tal como eles ainda fazem com os seus bispos diocesanos)."
E, a seguir, escreveu:
"É importante destacar que o Vaticano não está quebrado (...) Na verdade, descobrimos que a situação está muito melhor do que parecia, porque algumas centenas de milhões de euros estavam escondidas em contas particulares e não apareciam nos balancetes”.
Esta é uma revelação extraordinária. Pell não dá detalhes, mas há alguns indícios:
"As congregações, os conselhos e, especialmente, a Secretaria de Estado defendiam e desfrutavam de uma independência sadia. Os problemas eram mantidos ‘em casa’ (...). Poucos eram tentados a dizer ao mundo o que estava acontecendo, exceto quando precisavam de ajuda externa".
As tentativas de reformar o Banco Vaticano vacilaram, diz Pell:
"Quando nos reportamos aos últimos anos do pontificado de Bento XVI, sabemos que estes problemas retornaram ao Banco Vaticano. O diretor do banco, Ettore Gotti Tedeschi, foi demitido pelo conselho formado por leigos e uma luta de poder no Vaticano resultou no vazamento regular de informações. O escândalo explodiu quando Paolo Gabriele, o mordomo papal, divulgou à imprensa milhares de páginas de documentos privados fotocopiados do Vaticano. A minha primeira reação foi perguntar como um mordomo pôde ter desfrutado de um acesso assim, a documentos tão sensíveis. Parte da resposta é que ele partilhava de um grande escritório sem divisórias com os dois secretários papais. Tudo isso foi severamente prejudicial à reputação da Santa Sé e constituiu uma cruz pesada para o Papa Bento...
Nesta quinta-feira, poderemos ler o artigo completo do cardeal Pell, quando a revista deve publicar em sua edição.
Uma reportagem publicada no próprio site da revista [The Catholic Herald] baseada no artigo foi publicada sob o título “We’ve discovered hundreds of millions of euros off the Vatican’s balance sheet, says cardinal” [Descobrimos centenas de milhões de euros que não constavam no balancete do Vaticano, diz cardeal]. No artigo escrito, a Sua Eminência estabelece as políticas da Secretaria para a Economia, que serão implementadas mas não formuladas por ele. Esta Secretaria reporta-se ao independente Conselho para a Economia criado pelo Papa Francisco e ao qual Pell pertence.
Segundo o jornal The Spectator, três coisas chamam a atenção:
Em primeiro lugar, o cardeal Pell está insinuando uma frustração enorme sentida por muitos analistas, inclusive da imprensa, quanto à forma italiana de fazer as coisas. Eu chegaria ao ponto de dizer que alguns projetos do Vaticano tiveram, no passado, a mão da Máfia ou de Berlusconi. Observemos que Pell ressalta a Secretaria de Estado (equivalente ao governo do Vaticano e que realiza os serviços de um Ministério do Exterior), cujo ex-chefe, o cardeal Tarciso Bertone, enfrenta investigações após um suposto “mau uso” de 15 milhões de euros. Ele nega qualquer irregularidade. A referência do cardeal Pell a uma “independência sadia” soa, a sim, com um tom sarcástico.
Em segundo lugar, Pell está claramente implementando as reformas exigidas e concebidas pelo papa. Ele está agindo em nome do pontífice e também de muitos cardeais que manifestaram horror quanto ao caos financeiro do Vaticano durante o Conclave.
Em terceiro lugar, o cardeal Pell observa que as dioceses ao redor do mundo ainda desfrutam de uma “liberdade de exercício quase completa” quando se trata de gastar. O seu artigo enfatiza que a autonomia local é importante. Porém, ele deve estar ciente de que muitas conferências episcopais nacionais e cúrias diocesanas desperdiçam o dinheiro vindo do dízimo em certos projetos sem grandes impactos, em geral com um sabor de politicamente correto, cujos objetivos concretos são difíceis de se identificar. Se a Secretaria para a Economia perscrutasse os livros das dioceses inglesas e galesas, vale se perguntar o que ela encontraria.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
“Centenas de milhões de euros” estavam escondidos no Vaticano, diz cardeal - Instituto Humanitas Unisinos - IHU