27 Novembro 2014
Durante uma breve coletiva de imprensa a bordo do avião papal na terça-feira, voltando da viagem de um dia a Estrasburgo, um jornalista francês perguntou ao Papa Francisco se ele se considera um social-democrata. A pergunta baseou-se num trecho de um dos discursos proferidos em Estrasburgo no qual o pontífice citava as empresas multinacionais.
A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada por Crux, 26-11-2014. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Caso você não esteja familiarizado com a política europeia, os social-democratas formam o principal partido de centro-esquerda, algo parecido com o que compreendemos por democrata nos EUA.
Ao ouvir a pergunta, Francisco deu uma risada e, em seguida, disse: “Caro, questo è un riduzionismo!”
Traduzindo do italiano, o dizer basicamente significa: “Meu caro amigo, isto é um reducionismo!”. Francisco continuou sua resposta, dizendo que ele tenta seguir o Evangelho e o ensino social da Igreja Católica, e não uma cartilha partidária. Terminou agradecendo ao jornalista, Renaud Bernard, do canal de TV France 2, por fazê-lo esta pergunta.
O que esta questão, bem como a resposta do papa, ilustra é que a breve viagem deste pontífice, na terça-feira, ao Parlamento Europeu e ao Conselho da Europa apresenta um exemplo típico de como as narrativas midiáticas configuram/modelam a forma como percebemos as figuras públicas.
Na verdade, a ideia de que Francisco é um social-democrata em Estrasburgo – e, portanto, sendo um repúdio da deriva feita pela Igreja Católica à direita política sob o Papa Bento XVI – depende inteiramente de escutarmos somente a parte do que ele, Francisco, teve a dizer.
A viagem de ontem não foi só a mais curta ida ao exterior na história dos papados: ela também estabeleceu um recorde para o índice de palavras faladas em relação a um período de tempo. A sua fala ao Parlamento trouxe 3500 palavras, e a outra feita ao Conselho da Europa contou com 3100, o que significa que o pontífice pronunciou 28 palavras para cada minuto gasto na visita às mais importantes instituições políticas da Europa.
(Alguns poderão dizer que a verborragia do papa esteve inteiramente adequada, dado que a única coisa que os parlamentares europeus parecem ter aprendido é fazer discursos. Mas isso, porém, é outro assunto.)
Ambos os discursos foram densos, e ambos cobriram uma ampla variedade de assuntos. Em muitos sentidos, eles foram o mais próximo a que Francisco chegou do tipo de retórica associada ao Papa Bento XVI, começando com princípios elevados e abstratos e, então, descendo em direção a conclusões específicas.
A aproximação com Bento é ainda mais visível no nível do conteúdo, porque ambos os discursos proferidos por Francisco, nesta ocasião, foram discursos que podemos facilmente imaginar Bento também fazendo-os. Além do uso de certas frases prontas associadas a Bento, tais como “ditaduras do relativismo”, consideremos os seguintes pontos trazidos por Francisco em Estrasburgo:
• No intuito de estar com saúde, a Europa precisa de Deus: “Uma Europa que já não seja capaz de se abrir à dimensão transcendente da vida é uma Europa que lentamente corre o risco de perder a sua própria alma...”.
• O aborto é um exemplo de uma cultura ocidental que ameaça [tornar] os seres humanos numa “mera engrenagem”. Como exemplo, Francisco citou o “caso dos doentes terminais, dos idosos abandonados e sem cuidados, ou das crianças mortas antes de nascer”.
• A Europa precisa parar de negar a sua identidade cristã: “Uma história bimilenária liga a Europa e o cristianismo. (...) Uma Europa que seja capaz de conservar as suas raízes religiosas (...), pode mais facilmente também permanecer imune a tantos extremismos que campeiam no mundo atual, o que se fica a dever também ao grande vazio de ideais a que assistimos no chamado Ocidente”.
• Uma Europa secular está ficando sem forças. Francisco disse que o mundo atualmente se tornou “menos eurocêntrico”, que hoje a Europa “dá a impressão de estar um pouco envelhecida e empachada”, e que está sendo, cada vez menos, “protagonista”. Está implicado nisto que o pontífice disse que tal declínio deve-se a uma aversão à reprodução, dizendo que o continente é, agora, uma “avó que já não é fecunda nem vizaz”.
Se fosse o Papa Bento XVI quem tivesse ido a Estrasburgo e dito estas coisas, poder-se-ia imaginar que a história teria sido outra: “Papa repreende a Europa por falta de valores”.
Em vez disso, porque foi o Papa Francisco, quem carrega consigo a narrativa de ser progressista e despojado, tais elementos em seus discursos foram, em grande parte, ignorados em favor dos pontos a respeito dos imigrantes, do trabalho, do meio ambiente, do comércio armamentício e do tráfico humano. As manchetes foram: “Francisco pede que a Europa cuide dos pobres”.
Provavelmente, o trecho mais citado do papa em Estrasburgo é aquele em que falou sobre as ondas de migrantes pobres que tentam cruzar o Mar Mediterrâneo para entrar na Europa, arriscando suas vidas. Neste trecho, ele diz: “Não se pode tolerar que o Mar Mediterrâneo se torne um grande cemitério!”
Bento XVI falou coisas semelhantes. A diferença, porém, é que os meios de comunicação, hoje, acreditam que Francisco realmente que dizer estas coisas e, assim, tais pronunciamentos atraem ampla atenção.
Na verdade, Bento tinha uma pauta social tão populista quanto Francisco.
Um tio de Bento XVI por parte de pai, chamado Georg Ratzinger, foi uma das figuras bávaras mais importantes do século XIX; era um sacerdote católico com forte histórico de envolvimento em favor dos pobres.
Por duas vezes se elegeu para as legislaturas bávaras e federal, e ajudou a fundar um partido político, chamado Bauerbund, que representava os interesses dos fazendeiros pobres contra os interesses das grandes empresas capitalistas. O seu principal objetivo era criar um sistema de apoio social que protegesse os fazendeiros pobres e pequenos comerciantes dos ciclos de altos e baixos da economia.
Como resultado, Bento teve um forte traço de ceticismo a respeito do capitalismo de livre-mercado. Quando viajou ao Brasil em 2007, definiu tanto o comunismo quanto o capitalismo como “ideologias fracassadas”, o tipo de linguagem que, frequentemente, Francisco evoca.
Isso não significa que inexistem diferenças entre a era de João Paulo II/Bento XVI no catolicismo e os novos ventos que sopram sob a liderança do Papa Francisco. Hoje, os moderados presentes no rebanho católico se sentem encorajados, enquanto que os conservadores e tradicionalistas estão na defensiva.
Ainda assim, o contraste entre Francisco e Bento não diz somente respeito à substância de seus dizeres, mas também quanto à percepção que se tem. Em nenhum outro momento isto ficou tão claro quanto nesta viagem de Francisco à Estrasburgo, quando proferiu dois discursos bastante similares aos do seu predecessor e, mesmo assim, precisou encarar perguntas sobre se ele se encontrava na esquerda política.
Se fosse Bento quem tivesse ido ao coração da Europa secular e dissesse as mesmas coisas, aquela pergunta provavelmente teria sido: “Santo Padre, o senhor se encontra na extrema direita?” A diferença tem pouco a ver com o que Francisco realmente disse, e tudo a ver com a forma como a narrativa diz que ele deve ser percebido.