11 Novembro 2014
Em 1980, o assassinato de quatro religiosas norte-americanas (foto) chamou a atenção sobre o envolvimento dos Estados Unidos em El Salvador. Quase 35 anos depois, o caso continua a dar voltas surpreendentes.
A reportagem é de Clyde Haberman, publicada no sítio do jornal The New York Times, 09-11-2014. A tradução é de Claudia Sbardelotto.
Embora o velho ditado "longo é o braço da lei" pareça estar ultrapassado, a lei de fato tem um alcance e seu braço pode se estender bastante. Nos últimos anos, a lei esticou a mão para pegar os estrangeiros que encontraram refúgio nos Estados Unidos após cometer ou aprovar assassinatos políticos, tortura e outras violações dos direitos humanos em seus países de origem. Centenas deles foram deportados, incluindo funcionários governamentais e capangas brutais de lugares com passados conturbados, como Ruanda, Peru, Bósnia, Argentina, Haiti, Guatemala e Libéria. Alguns ex-guardas de campos de concentração nazistas foram despachados para a Alemanha e outros países europeus.
A lógica por trás das deportações é simples: os responsáveis por atos monstruosos, independentemente de quão longe e há quanto tempo, não tem nenhuma razão de estar aqui [nos Estados Unidos]. Nesse sentido, a série de documentários em vídeo sobre notícias passadas e suas conseqüências, conhecida como Retro Report1, volta sua atenção esta semana para El Salvador, exemplificando algumas das complexidades legais quando se trata de extirpar e depois mandar embora aqueles considerados culpados.
Se os tribunais de imigração forem bem sucedidos, as fileiras dos deportados incluirá dois generais salvadorenhos que foram ministros da defesa em 1980, ano encharcado de sangue no país. Esses homens, José Guillermo García, agora 81, e Carlos Eugenio Vides Casanova, 77, vivem na Flórida há um quarto de século. Eles foram autorizados a se estabelecer lá durante a presidência de George Bush, que, como o seu antecessor, Ronald Reagan, considerava-os aliados e baluartes contra uma insurgência esquerdista apoiadoa por Moscou.
Entretanto, as administrações mudam, assim como as atitudes do governo. Ao longo dos últimos dois anos e meio, os juízes de imigração na Flórida decidiram que os generais foram responsáveis por assassinatos e massacres, e merecem agora ser "removidos" - terminologia para "deportados". Ambos estão apelando as decisões, o que significa que por enquanto eles não vão a lugar nenhum. Dadas as suas idades, seus casos podem ser, para todas as partes, uma corrida contra o tempo.
Brutalidade foi o que não faltou em El Salvador durante os 12 anos de guerra civil, que terminou em 1992 com um acordo de paz entre o governo dominado pelos militares de direita e os grupos guerrilheiros de esquerda. A Comissão da Verdade, das Nações Unidas, em 1993, concluiu que o conflito havia deixado cerca de 75 mil mortos e um milhão de deslocados - isso em um país de cinco milhões de habitantes. Ambos os lados aterrorizaram civis. Mas esmagadoramente, no entender da Comissão, as atrocidades foram realizadas pelas forças armadas apoiadas por Washington e pelos esquadrões da morte aliados. Em um massacre de 1981, examinado minuciosamente, soldados mataram mais de 200 homens, mulheres e crianças em uma vila chamada El Mozote. Foi somente em 2011 que o governo salvadorenho desculpou-se pela "violência cega do Estado" e pediu perdão.
Os assassinatos que chocaram profundamente muitos ao redor do mundo foram os de clérigos e mulheres que falavam em nome das massas empobrecidas de El Salvador. Em 1989, seis padres jesuítas, a sua empregada e a filha dela foram mortos por soldados na capital, San Salvador. Nove anos antes, o arcebispo católico de San Salvador, Óscar Arnulfo Romero, que pregava contra a injustiça social e a violência sancionada pelo Estado, tinha sido morto a tiros enquanto celebrava a missa. (O Vaticano sinalizou recentemente que pode acelerar o caminho de Dom Romero em direção a uma possível santificação. Esse processo esteve congelado sob o Papa João Paulo II, um anti-comunista polonês com uma aversão a qualquer coisa que cheirasse ao movimento da teologia da libertação. O Papa Francisco, argentino, tem sido considerado por autoridades do Vaticano como alguém com maior afinidade ao salvadorenho e gostaria que ele fosse beatificado, o penúltimo passo para a santidade.)
Para muitos norte-americanos, os assassinatos que tiveram o maior impacto no solo nacional aconteceu em 02 de dezembro de 1980, pouco mais de oito meses após o assassinato do arcebispo. Eles são o foco do vídeo do Retro Report. Guardas nacionais salvadorenhos - cinco foram finalmente considerados culpados - assassinaram quatro religiosas dos Estados Unidos que trabalhavam com os pobres naquele país. Três eram freiras católicas: Ita Ford, Maura Clarke e Dorothy Kazel. A quarta, Jean Donovan, era uma missionária leiga. Elas foram espancadas, estupradas e executadas com tiros na cabeça. Seus corpos nus foram largados à beira de uma estrada. Camponeses locais as vestiram e as enterraram em uma cova rasa.
Robert E. White, na época, embaixador dos Estados Unidos em El Salvador, estava presente quando os corpos foram exumados. Era evidente, recordou o Sr. White para o Retro Report, que o exército salvadorenho estava "fora de controle" e "mataria qualquer um". Mas por que estas mulheres? "Aos olhos dos militares, a identificação com os pobres era o mesmo que a identificação com a revolução", disse ele.
Sete semanas depois desses assassinatos, Ronald Reagan assumiu a presidência. O Sr. White não durou muito tempo no cargo. Ele estava fora de sintonia com a nova administração, que apoiava os direitistas salvadorenhos. Ele também estava desanimado com aquilo que interpretou como um esforço de Washington para livrar-se dos assassinatos. Jeane J. Kirkpatrick, que logo se tornaria a embaixadora americana nas Nações Unidas, descreveu as religiosas como "ativistas políticos", não como freiras. Isso não estava certo, disse o Sr. White. Alexander M. Haig Jr., então secretário de Estado, sugeriu que as mulheres pudessem ter sido executadas ao se depararem com um bloqueio na estrada, e mortas em uma troca de tiros. Nada disso era verdade.
Em 1998, alguns dos guardas condenados disseram, em entrevistas, que eles atuaram com "ordens de cima." Eles não apontaram ninguém. Mas em casos judiciais de imigração conduzidos nos Estados Unidos, a responsabilidade caiu sobre dois generais, entre outros, que estavam vivendo suas vidas normalmente na Flórida. Nove meses atrás, um juiz de imigração em Miami decidiu contra a permanência contínua do general García nos Estados Unidos, dizendo que ele "sabia ou deveria saber" sobre as atrocidades que ocorreram sob seus cuidados. Outro juiz de imigração emitiu uma avaliação semelhante do general Vides em 2012, e ordenou a sua deportação.
Até uma década atrás, o conceito de que os Estados Unidos não deveria ser um refúgio para infratores estrangeiros de direitos humanos tinha sido aplicado principalmente para aqueles que faziam parte da máquina de destruição nazista, muitos deles como guardas nos campos de concentração. Alguns fizeram o seu caminho até os Estados Unidos nos primeiros anos após a Segunda Guerra Mundial, basicamente mentindo sobre seu passado. Mas mais do que uma dúzia de outros, no mínimo, foram convidados para se reassentar aqui e receberam cobertura por agências de inteligência dos Estados Unidos, de acordo com recentes revelações de Eric Lichtblau, repórter do New York Times. Ele descreveu esses homens como entre os mais de mil nazistas utilizados pelas agências como espiões anti-soviéticos e informantes na Europa e nos EUA durante a Guerra Fria.
Processos contra os suspeitos nazistas foram conduzidos pelo Gabinete de Investigações Especiais, do Departamento de Justiça, que foi criado em 1979, mas absorvido há quatro anos por uma nova seção do departamento. Ao todo, 107 pessoas foram deportadas ou despojadas de sua cidadania americana. (No dia 19 de outubro, a Associated Press causou um rebuliço com um relatório que dizia que várias dezenas de pessoas que ajudaram os nazistas, todas muito velhas, foram autorizadas a manter os benefícios da Previdência Social, uma política criticada por alguns funcionários eleitos e outros.)
Nos últimos anos, com base em uma lei de 2004 que proíbe os violadores dos direitos humanos de entrar ou viver nos EUA, Washington ampliou seu escopo para incluir os infratores de todo o mundo. O ramo de Imigração e Alfândega, do Departamento de Segurança Interna, informou em dezembro passado que, ao longo da década anterior, tinha obtido ordens de deportação para mais de 640 pessoas.
Alguns ativistas de direitos humanos dizem que o braço da lei poderia ser ainda maior na busca de transgressores. Entre eles está Pamela Merchant, até recentemente diretora executiva do Centro de Justiça e Responsabilidade. Seu grupo, com sede em San Francisco, iniciou processos contra uma ampla gama de violadores dos direitos acusados, incluindo os generais salvadorenhos na Flórida. "Eu acho que há um compromisso muito mais forte para manter homens como estes fora do país", disse Merchant, mas ela detectou "alguma ambivalência" em Washington em relação a mandar embora "as pessoas que já estão aqui".
Ainda assim, ela reconheceu, o espírito que prevalece hoje é muito diferente daquele de anos atrás. Outro ditado diz que "justiça atrasada é justiça negada". Mas o sentimento entre as pessoas como a Sra. Merchant é que, se isso significa negar um santuário a assassinos e torturadores, justiça atrasada ainda é justiça.
Nota:
1 - O vídeo relacionado a esse artigo é parte de uma série de documentários apresentados pelo The New York Times e pode ser visto aqui.
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Delineando o caso para a deportação de transgressores dos direitos humanos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU