03 Novembro 2014
As palavras do papa aos movimentos populares são um destilado de saberes, experiências e reflexões sedimentado em anos de lutas sociais, especialmente da América Latina.
A opinião é do escritor italiano Guido Viale, publicada no jornal Il Manifesto, 31-10-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Do discurso do papa no seu encontro do dia 28 de outubro com os movimentos populares, podemos obter um programa político e social de fôlego planetário, do qual não poderemos mais abrir mão, porque reúne em grande parte as reivindicações que orientam o nosso agir, projetando-as em um cenário engloba todo o planeta.
Certamente, as palavras do papa são um destilado de saberes, experiências e reflexões sedimentado em anos de lutas sociais, especialmente da América Latina (mas não faltam referências a contextos mais familiares a nós, como o europeu).
Mas, se o que lhe inspirou foi deus, e se deus pensa assim, seja muito bem-vindo também ele entre nós: o que vai verificar a tradução das suas palavras em iniciativas e em mobilizações será a verificação dos fatos. A plataforma delineada no encontro com o papa tem três nomes: trabalho, terra e casa: "direitos sagrados", define-os o pontífice.
Sobre o trabalho, o papa diz: "Não existe pior pobreza material do que a que não permite que se ganhe o pão e priva da dignidade do trabalho". É preciso reivindicar e obter "uma remuneração digna, a segurança social, uma cobertura previdenciária, a possibilidade de ter um sindicato". "O desemprego juvenil, a informalidade e a falta de direitos" são o resultado de "um sistema econômico que coloca os benefícios (o lucro) acima do homem".
E aqui o papa se refere a um tema longamente tratado por Zigmunt Bauman (em Vita di scarto); por outro lado, dentre os seus interlocutores, estão os cartoneros, que vivem recuperando resíduos. Esse sistema iníquo é o produto de "uma cultura do descarte que considera o ser humano como um bem de consumo, que pode ser usado e depois jogado fora".
Gerações no triturador
Às formas tradicionais de exploração e de opressão, acrescentou-se outra, a de tornar os seres humanos supérfluos: "Aqueles que não podem se integrar, os excluídos, são descartes, excedências... Isso acontece quando no centro do sistema econômico está o deus dinheiro e não a pessoa humana". Assim, "descartam-se as crianças e descartam-se os idosos, porque não servem, não produzem". E "o descarte dos jovens" levou a "anular uma geração inteira... para poder manter e reequilibrar um sistema em cujo centro está o deus dinheiro".
E naqueles que, como os cartoneros, vivem justamente recuperando resíduos, o papa vê uma alusão a um modo completamente alternativo de conceber o trabalho: "Apesar dessa cultura do descarte, das excedências, muitos de vocês, trabalhadores excluídos, excedências para esse sistema, inventaram o seu trabalho com tudo o que parecia que não podia ser mais utilizado, mas vocês, com a sua artesanalidade, com a sua busca, com a sua solidariedade, com o seu trabalho comunitário, com a sua economia popular, conseguiram... Isso, além de trabalho, é poesia!".
Falando da terra – entendida no duplo significado de ambiente (o planeta Terra) e de solo, objeto do trabalho dos camponeses – em grande parte presentes no encontro, com a sua associação planetária Via Campesina –, o papa apela, acima de tudo, ao sentido profundo do trabalho camponês, que não é o de explorar e devastar a terra com o agronegócio, mas o de guardá-la: cultivando-a e fazendo isso "em comunidade".
Por isso, é preciso combater "o desenraizamento de tantos irmãos camponeses", provocado pela apropriação das terras, pelo desmatamento, pela apropriação da água, pelos agrotóxicos inadequados. Essa separação "não é só física, mas também existencial e espiritual" e corre o risco de levar à extinção as comunidades rurais.
O inimigo dessa cultura camponesa, assim como dos direitos do trabalho, é a especulação financeira, que "condiciona o preço dos alimentos, tratando-os como uma mercadoria qualquer", provocando aquela outra "dimensão do processo global" que é a fome, justamente enquanto se descartam e se jogam fora toneladas de alimentos.
Sobre a casa (que significa "habitar" em um contexto social de proximidade), o papa quer "que todas as famílias tenham uma casa e que todos os bairros tenham uma infraestrutura adequada: esgotos, luz, gás, asfalto, escolas, hospitais, pronto socorro, clubes desportivos e todas as coisas que criam vínculos e unem".
E acrescenta: "Um teto, para que seja uma casa, também deve ter uma dimensão comunitária: o bairro, e é precisamente no bairro onde se começa a construir essa grande família da humanidade, a partir do mais imediato, a partir da convivência com os vizinhos". É justamente graças a essas relações, onde elas ainda existem, que "nos bairros populares subsistem valores já esquecidos nos centros enriquecidos", porque lá "o espaço público não é um mero lugar de trânsito, mas uma extensão do próprio lar, um lugar para gerar vínculos com os vizinhos".
O furto da terra
"Como são belas – acrescenta – as cidades que superam a desconfiança doentia e integram os diferentes e que fazem dessa integração um novo fator de desenvolvimento." Estamos tão acostumados a ver situações de privação a ponto de chamar quem não tem casa, incluindo as crianças, de "pessoas sem residência fixa", um eufemismo que é o cúmulo da hipocrisia.
Mas, "por trás de todo eufemismo – lembra – há um crime". É o crime dos despejos forçados, que afetam milhões de habitantes, vítimas do grabbing da terra, mas também favelas urbanas e tantas situações italianas.
Em todos esses três âmbitos – trabalho, terra e casa –, o obstáculo que se interpõem à realização dos objetivos pelos quais lutam os pobres da Terra é o "império do dinheiro"; o capitalismo financeiro, diríamos nós. Mas "os pobres não só padecem a injustiça, mas também lutam contra ela". E "não se contentam com promessas ilusórias, desculpas ou pretextos... não estão esperando de braços cruzados a ajuda de ONGs, planos assistenciais ou soluções que nunca chegam" ou que "vão em uma direção ou de anestesiar ou de domesticar".
Eles "querem ser protagonistas, se organizam, estudam, trabalham, reivindicam e, sobretudo, praticam essa solidariedade tão especial que existe entre os que sofrem, entre os pobres, e que a nossa civilização parece ter esquecido ou, ao menos, tem muita vontade de esquecer". Essa solidariedade "é muito mais do que alguns atos de generosidade". É participação: "Pensar e agir em termos de comunidade, de prioridade de vida de todos sobre a apropriação dos bens por parte de alguns".
Palavras com as quais é posto em discussão todo o universo da propriedade privada, que é sempre apropriação: um ato, um agir contra outros, e não um estado, uma realidade imutável. Por isso, "a solidariedade, entendida em seu sentido mais profundo, é um modo de fazer história, e é isso que os movimentos populares fazem".
E ainda: "Como é lindo, ao contrário, quando vemos em movimento os Povos, sobretudo os seus membros mais pobres e os jovens. Então, sim, se sente o vento da promessa que aviva a esperança de um mundo melhor" (palavras que não remetem a um além, mas a este mundo e a esta vida). Portanto, que esse vento se transforme em furacão de esperança. "Esse é o meu desejo." E também é o nosso.
Conversão ecológica
Esse furacão é a conversão ecológica. Porque, ao lado do deus dinheiro, causa principal da miséria em que os pobres se debatem, os seus outros alvos são a guerra e a devastação do ambiente: "Não pode haver terra, não pode haver teto, não pode haver trabalho se não temos paz e se destruímos o planeta" (e aqui o papa anuncia uma próxima encíclica sobre a ecologia).
"Há sistemas econômicos que, para sobreviver, devem fazer a guerra. Então, fabricam e vendem armas e, com isso, os balanços das economia que sacrificam o homem aos pés do ídolo do dinheiro, obviamente, ficam saneados." E "um sistema econômico centrado no deus dinheiro também precisa saquear a natureza para sustentar o ritmo frenético de consumo".
Mas "a criação não é uma propriedade da qual podemos dispor ao nosso gosto; muito menos é uma propriedade só de alguns, de poucos: a criação é um dom, é um presente, um dom maravilhoso que Deus nos deu para que cuidemos dele", utilizando-o em benefício de todos.
Devemos mudar, diz o papa, "temos que voltar a levar a dignidade humana para o centro, e que, sobre esse pilar, se construam as estruturas sociais alternativas de que precisamos." E eis então uma lista das virtudes que mudam o mundo: "É preciso fazer isso com coragem, mas também com inteligência. Com tenacidade, mas sem fanatismo. Com paixão, mas sem violência. E entre todos, enfrentando os conflitos sem ficar presos neles"; e praticando "uma cultura do encontro, tão diferente da xenofobia, da discriminação e da intolerância".
Trata-se de uma luta que é, ao mesmo tempo, global e local: nasce das relações de proximidade, mas abrange todo o planeta: "Eu sei que vocês trabalham dia após dia no próximo, no concreto, no seu território, seu bairro, seu lugar de trabalho: convido-os também a continuarem buscando essa perspectiva mais ampla, que nossos sonhos voem alto e abranjam tudo".
A autonomia dos movimentos
Seguem algumas recomendações relativas à organização e à reconfiguração da democracia: "Nunca é bom espartilhar o movimento em estruturas rígidas. (…) Também não é bom tentar absorvê-lo, dirigi-lo ou dominá-lo; movimentos livres têm a sua dinâmica própria, mas, sim, devemos tentar caminhar juntos".
E "os movimentos populares expressam a necessidade urgente de revitalizar as nossas democracias, tantas vezes sequestradas por inúmeros fatores. É impossível imaginar um futuro para a sociedade sem a participação protagônica das grandes maiorias, e esse protagonismo excede os procedimentos lógicos da democracia formal. A perspectiva de um mundo da paz e da justiça duradouras (…) nos exige criar novas formas de participação que inclua os movimentos populares e anime as estruturas de governo locais, nacionais e internacionais com essa torrente de energia moral que surge da incorporação dos excluídos (…) com ânimo construtivo, sem ressentimento, com amor".
Limitei-me a poucos comentários. E tenho bem pouco a acrescentar.
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Papa Bergoglio, uma doutrina que nasce das lutas sociais - Instituto Humanitas Unisinos - IHU