08 Outubro 2014
Em Roma, o Sínodo dos bispos é como ter um circo na cidade. Há muita coisa acontecendo para colocar tudo isso em resumos de notícias breves, especialmente quando a marginália não está diretamente relacionada àquilo que foi a narrativa principal do dia.
A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada no sítio Crux, 07-10-2014. A tradução é de Claudia Sbardelotto.
Aqui estão duas dessas notas laterais do dia de ontem, dia da abertura do Sínodo que acontece de 5 a 19 de outubro, cada uma das quais revela algo sobre o estado das coisas.
Um estímulo para o orgulho norte-americano
Embora possa haver uma abundância de falhas em outras questões neste Sínodo dos bispos sobre a família, um forte consenso parece já ter se formado em uma frente: a necessidade de um sistema mais rápido e mais simples para a concessão de anulações.
Independentemente dos méritos dessa ideia, isso, sem dúvida, representaria um impulso ao orgulho católico norte-americano.
Isso porque a racionalização das anulações iria oferecer mais um caso onde uma abordagem pioneira da Igreja nos Estados Unidos, que não há muito tempo era visto com ceticismo em outros lugares, está se tornando a norma mundial de facto.
A anulação é a declaração de que, apesar de duas pessoas terem tido um casamento na Igreja, o sacramento do matrimônio não existiu, porque um ou mais dos testes de validade não foi cumprido. As pessoas que buscam uma anulação passam por um processo detalhado de escrutínio sob a legislação canônica, que alguns acham complicado, demorado e invasivo, para não mencionar ocasionalmente caro.
Durante o discurso de abertura do Sínodo, o cardeal Péter Erdö da Hungria disse que "muitos casamentos celebrados na Igreja podem ser inválidos" porque os casais não vão com a intenção de fazer um compromisso de vida. A implicação seria a de que a Igreja deveria estar disposta a conceder mais anulações.
Erdo lançou a ideia da criação de um processo "extra-judicial", permitindo que os bispos emitam uma anulação por decreto administrativo, sem a necessidade de um veredicto legal, a fim de acelerar as coisas. Durante uma coletiva de imprensa do Vaticano, Erdö disse que incluiu a ideia em seu discurso, porque muitas conferências episcopais de todo o mundo haviam sugerido algo parecido, o que sugere um apoio bastante forte.
Embora Erdö não chegou a dizê-lo em voz alta, a sugestão é que o resto do mundo está se aproximando do modo americano de fazer as coisas.
Por uma ampla margem, os Estados Unidos lideram o grupo em termos do número de anulações concedidas a cada ano. Com apenas 6% da população católica do mundo, os Estados Unidos são responsáveis por algo entre 55 e 70% das cerca de 60.000 anulações emitidas anualmente em todo o mundo.
Os críticos, incluindo um número de advogados da Igreja em Roma e até mesmo algumas autoridades do Vaticano, reclamam há muito tempo que os Estados Unidos são uma "fábrica de anulações", lamentando que os bispos norte-americanos e os tribunais da Igreja são muito permissivos.
Os prelados nos Estados Unidos, geralmente, respondem que eles dão mais anulações porque levam o sistema a sério, investindo em tribunais e no treinamento de canonistas para que as pessoas cujos casamentos não dão certo possam fazer o que for possível para corrigir a situação com a Igreja.
O fato da questão é que, com base nos comentários de Erdö e outros, parece que o resto do mundo católico está se movendo na direção do exemplo norte-americano.
A mesma coisa já aconteceu em outras áreas.
Foi a Igreja dos Estados Unidos, por exemplo, que desenvolveu a política original da "tolerância zero" para o clero sexualmente abusivo, uma postura que uma década atrás era desprezada por algumas das altas autoridades do Vaticano e prelados de outras partes do mundo como um tipo de justiça "cowboy" e uma traição da filosofia do direito canônico. Hoje, muitas autoridades do Vaticano citam o sistema norte-americano como prova de que a Igreja virou a página e se tornou uma nova folha.
Foi também a Igreja nos Estados Unidos que desenvolveu sistemas mais transparentes para a gestão do dinheiro ainda na década de 1980 e 1990, com o desenvolvimento de muitos conselhos financeiros diocesanos credíveis, solicitando auditorias anuais independentes, e publicando os seus resultados. Esses passos, na época, eram muitas vezes vistos como um floreio tipicamente norte-americano ou desnecessário, ou inadequado, para outras partes do mundo.
Agora, uma trajetória semelhante de seguir a liderança norte-americana está aparentemente emergindo sobre as anulações.
Com certeza, muitos católicos norte-americanos têm queixas sobre a forma como o sistema funciona. Alguns pensam que é demasiado permissivo e uma ameaça aos casamentos, outros acham que é muito complicado, e ambos podem ficar assustados ao ouvir que os EUA são considerados precursores. No entanto, quaisquer que sejam os defeitos do modelo norte-americano, o resto da Igreja parece estar se aproximando dele.
Em outras palavras, o Sínodo dos bispos, em 2014, já pode estar levando para casa uma perspectiva chave: cuidado quando a Igreja nos EUA espirra, porque mais cedo ou mais tarde, o resto do catolicismo pode provavelmente estar pegando um resfriado.
Uma menção para Kasper
Em 1985, o Papa João Paulo II convocou um Sínodo dos bispos para recordar o Concílio Vaticano II em seu 20º aniversário de encerramento. A preparação para esse sínodo foi dominada por um intenso debate sobre os pontos de vista sobre o Vaticano II delineadas pelo czar doutrinal de João Paulo II, o cardeal alemão Joseph Ratzinger, em um livro-entrevista chamado de "Relatório Ratzinger". (Ratzinger acabou tornando-se Papa Bento XVI.)
Durante uma conferência de imprensa em 1985, um dos palestrantes ficou tão frustrado com mais uma pergunta sobre o livro de Ratzinger que ele retrucou: "Este é um sínodo sobre um concílio, não sobre um cardeal!".
Embora ninguém tenha usado uma versão dessa frase ainda no Sínodo dos Bispos de 2014 sobre a família, ela bem que poderia ser usada facilmente à luz de tanto debate sobre a comunhão aos católicos divorciados e recasados a ponto de ser enquadrado como um "sim" ou "não" para as visões do cardeal alemão aposentado Walter Kasper.
Em fevereiro, o Papa Francisco convocou todos os cardeais do mundo a Roma para uma reunião para preparar o sínodo deste mês. Ele indicou Kasper para dar a palestra de abertura, e Francisco certamente sabia o que iria resultar. Já em 1993, Kasper tinha sido um dos três bispos alemães que adotaram uma política que permitia católicos divorciados e recasados a receber a comunhão sob certas circunstâncias, que foram depois repreendidos por Roma.
Kasper fez um forte argumento para uma abordagem mais permissiva em fevereiro e acabou de publicar o seu discurso em forma de livro. Desde então, os pesos pesados de todos os lados se alinharam a favor ou contra Kasper.
Ontem à noite, Kasper ganhou um poderoso endosso de um colega alemão, cardeal Reinhard Marx, de Munique. Marx não é apenas o presidente da Conferência dos Bispos da Alemanha, ele também é um membro do "G8", o conselho de cardeais assessores do papa e chefe de seu novo e poderoso Conselho de Economia - em outras palavras, um negócio muito grande, de fato.
Falando durante uma conferência de imprensa realizada à noite na Rádio Vaticano, Marx disse que "a maioria dos bispos alemães estão com Kasper", e embora ele não chegasse a dizer explicitamente, ele deixou a impressão de que suas simpatias estão com Kasper, também.
Talvez possa não parecer surpreendente ouvir um alemão apoiar outro, mas tente lembrar que quando Kasper e seus colegas entraram em conflito com o Vaticano mais de 20 anos atrás, era um alemão, Ratzinger, que liderava a repressão. Lembre-se, também, que um dos maiores críticos de Kasper desta vez foi mais um czar doutrinal do Vaticano, o cardeal alemão Gerhard Müller.
Dado o quanto os alemães foram protagonistas nesse debate, não é pouca coisa ouvir o seu membro mais poderoso declarar em voz alta de que lado está a maioria.
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Sínodo: um estímulo para o orgulho norte-americano e uma menção para Kasper - Instituto Humanitas Unisinos - IHU